Por Raphael Silva Fagundes
Poucos sabem, mas a amizade era uma maneira que se adotava na
Antiguidade Clássica para a manutenção da relação homoafetiva entre um
homem e um jovem. Enquanto este ainda era um estudante, o termo que se
empregava era pederastia, pederasti, pais, jovem, e erastiés, amante.[1]
Observa-se que a relação entre homens era vista como mais viril que uma
relação com uma mulher. Podemos ver que alguns resquícios dessa cultura
existe até hoje, pois entre as pessoas mais antigas ronda a ideia de
que uma amizade entre um homem e uma mulher é impossível.
Mas a relação entre dois adultos nunca foi bem vista. Por mais que a
idade média tenha reprimido o homossexual, na Florença do século XV,
somente os sodomitas adultos eram reprimidos. Em 1542, punia-se com a
pena capital as ações desses indivíduos de mais de vinte anos.
O livro V das Ordenações Filipinas de 1604, adotado no Brasil
colonial, previa punições para os que cometessem o pecado da sodomia,
com a justificativa do desperdício do esperma. O antropólogo e
historiador Luiz Mott mostra que havia uma “perseguição àqueles que
ousassem ejacular fora do vaso natural da fecundação”.[2] Logo, a própria masturbação era considerada pecaminosa em uma sociedade baseada no “crescei e multiplicai-vos”.
Mais tarde, a medicina ocidental após Samuel-Auguste-David Tissot
adotou o mesmo critério cristão, “com a de perda de substância,
prejudicial ao indivíduo e à sociedade toda”.[3]
Em entrevista ao Roda Viva, o caricato político Enéas, no qual se
inspira o famigerado Jair Bolsonaro, disse exatamente a mesma coisa.
Apoiando-se em sua formação médica condena a homossexualidade como um
risco a humanidade justamente porque a relação entre dois homens não há
reprodução.
O mercado usa a moral contra a esquerda
A questão é que em outros tempos o homossexualismo não era um
movimento de subversão simbólica. Eram atitudes privadas, vigiadas pela
polícia da moral, mas os gays não pretendiam mudar a ordem simbólica,
isto é, a dominação masculina. Hoje, há um interesse não apenas em se
tornar visível (embora a grande mídia divulgue apenas o homossexualismo
que se resume a visibilidade), mas de alterar a questão do gênero, vista
como “uma construção social, uma ficção coletiva da ordem
‘heteronormatica’, que se construiu, aliás, em parte contra o
homossexual”.[4]
Hoje cresce um movimento, principalmente
o queer, que luta por uma nova ordem sexual em que a distinção entre os
diferentes estatutos sexuais seja indiferente
Hoje cresce um movimento, principalmente o queer, que luta por uma
nova ordem sexual em que a distinção entre os diferentes estatutos
sexuais seja indiferente, colocando-se contrários à doxa “direita e de
direita que impõe todo tipo de domínio simbólico (branco, masculino,
burguês)”, afirmando que uma discriminação histórica não é natural.[5]
O próprio movimento queer se posiciona contra a “assimilação da cultura
gay masculina a um sistema capitalista e excludente através do chamado
‘pink money’”. O primeiro ilustre a ser chamado de “queer” foi Oscar
Wilde[6] autor de “A alma do homem sob o socialismo”.
A terceira via, uma opção que se apresentou para além da esquerda e
direita, como nos mostra Anthony Giddens, perdeu o espaço dos movimentos
identitários de rua. O PSDB que apoia causas como a legalização da
maconha e do casamento gay, não tem espaço em meio às manifestações
populares. Essas pautas fazem parte hoje dos partidos à esquerda. Sem
dúvida, é o PSOL o partido que participa das diversas manifestações de
gênero, questões raciais, sobre drogas etc., mas também vemos a presença
do PCdoB e até mesmo do PT nas ruas em defesa das liberdades
individuais.
O crescimento da direita está trazendo consigo o ódio a esquerda e a
tudo o que ela representa. Desta forma, as pautas liberais defendidas
pela nova esquerda que surgiu nos anos 1990 tornou-se o alvo principal
da direita, inclusive, a liberdade de expressão no tocante do projeto do
“escola sem partido”, ou da proibição do aborto até mesmo em caso de
estupro.
A dita “cura gay”, isto é, a terapia de “reversão sexual” liberada
pelo juiz Waldemar Cláudio de Carvalho representa nada mais que os
“novos” ares de uma sociedade que caminha em direção ao passado, ao
retorno a uma moralidade que acreditava garantir a ordem. As classes
dominantes estão com medo do fortalecimento das causas sociais porque
estas, cada vez mais, tendem à esquerda, e para solucionar esse
problema que as afeta, deixa crescer as forças ideológicas
conservadoras, que se pautam, inclusive, no fanatismo.
É uma questão muito mais de política que de psicologia. A psicóloga
Rosangela Alves Justino, que entrou com a ação na Justiça para a
promoção do projeto da “cura gay”, é assessora de um deputado do DEM-RJ,
apadrinhado pelo pastor Silas Malafaia. Já Marisa Lobo, outra psicóloga
que entrou com a ação, articula seu fundamentalismo com parlamentares
como Marco Feliciano e trabalhou na imagem de Marcela Temer na campanha
da mulher “bela, recatada e do lar”.[7]
As esquerdas estavam cooptando parte da classe média para seus
setores através destas causas e, desta forma, as fileiras dos grandes
defensores do espírito capitalista estavam diminuindo o seu comprimento.
As classes dominantes, que não prezam pela moral, mas pela moralidade
dos que consomem para que reproduzam as relações sociais que ossificam o
desejo pela mercadoria, querem evitar o crescimento das esquerdas
deixando a direita ganhar corpo na mídia e nas redes sociais. Tratando
com negligência o amadurecimento dos discursos radicais conservadores,
os grupos dominantes mantêm o controle impedindo o avanço das esquerdas
em um momento em que precisam enrijecer o mercado.
[1] HOYSTAD, Ole Martin. Uma história do coração. Petrópolis: Vozes, 2015. p. 60.
[2] MOTT, Luiz. Por que os homossexuais eram perseguidos? Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 7, n. 73, out. p. 22, 2011.
[3] MUCHEMBLED, Robert. O orgasmo e o Ocidente. São Paulo: Martins Fintes, 2007. p. 295.
[4] BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. p. 146.
[5] Id. p. 147.
[7] www.revistaforum.com.br/2017/09/20/psicologa-da-cura-gay-tem-cargo-sem-concurso-em-gabinete-de-deputado-do-dem/ e www.revistaforum.com.br/2017/09/20/psicologa-da-cura-gay-e-mesma-que-assinou-laudo-contra-patricia-lelis-sem-consulta-la/
Raphael Silva Fagundes é Doutorando do Programa de Pós-Graduação em
História Política da UERJ. Professor da rede municipal do Rio de Janeiro
e de Itaguaí.
Disponível em: https://www.carosamigos.com.br/index.php/colunistas/236-raphael-fagundes/10868-cura-gay-uma-questao-de-politica
Nenhum comentário:
Postar um comentário