As medidas de ajuste fiscal do governo do presidente Michel Temer tendem a elevar ainda mais a desigualdade no Brasil, diz o economista irlandês Marc Morgan Milá, 26.
A entrevista é de Mariana Carneiro e Flávia Lima, publicada por Folha de S. Paulo, 24-09-2017.
Ele afirma que a contenção dos gastos públicos afetará especialmente os mais pobres.
As novas conclusões do economista estão provocando um debate sobre a realidade dos últimos 15 anos: a desigualdade no Brasil não caiu como se pensava até então.
Para ele, os sucessivos governantes brasileiros optaram por não
enfrentar o problema, evitando políticas que poderiam limitar a renda do
topo da pirâmide, como um sistema tributário mais justo.
"A história recente do Brasil nos leva a dizer que houve uma escolha política pela desigualdade."
Morgan está no Brasil, onde participa de estudos com economistas do Ipea
(Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). O grupo pretende lançar,
ainda neste ano, uma série da desigualdade brasileira com início em
1926.
Eis a entrevista.
Os críticos dos governos do PT partem da sua pesquisa para
questionar a leitura de que a desigualdade caiu. O que aconteceu de
fato?
Análise mais minuciosa mostra que, na verdade, não é que a
desigualdade não caiu entre 2001 e 2015, ela não caiu tanto quanto se
imaginava. Meu estudo mostra que a queda da desigualdade é bem menor.
A interpretação anterior estava errada?
É apenas equivocada, não representa a sociedade corretamente. Houve
declínio da desigualdade de renda no mercado de trabalho, como mostra a Pnad [pesquisa por domicílio realizada pelo IBGE]. Mas os mais ricos não respondem a pesquisa ou escondem fontes de riqueza. Então, não há representação acurada do topo.
Quem são os ricos no Brasil?
O grupo dos 1% mais ricos tem cerca de 1,4 milhão de pessoas, com
renda anual a partir de R$ 287 mil. O 0,1% mais rico reúne 140 mil
pessoas com renda mínima de R$ 1,4 milhão. Enquanto isso, a renda média
anual de toda a população é de R$ 35 mil. É uma discrepância muito
grande. Esse é o ponto importante no caso brasileiro: a concentração do capital é muito alta.
O Brasil é um caso extremo?
O Brasil é um animal diferente. É o país mais desigual do mundo, com exceção do Oriente Médio e, talvez, da África do Sul. Um ponto importante é que todos os governos brasileiros das últimas décadas têm responsabilidade por isso.
Em que sentido?
A história recente indica que houve uma escolha política pela desigualdade e dois fatores ilustram isso: a ausência de uma reforma agrária e um sistema que tributa mais os pobres. Para nós, estrangeiros, impressiona que alíquotas de impostos sobre herança sejam de 2% a 4%. Em outros países chega a 30%. A tributação de fortunas fica
em torno de 5%. Enquanto isso, os mais pobres pagam ao menos 30% de sua
renda via impostos indiretos sobre luz e alimentação.
Que papel têm os programas de transferência de renda na redução da desigualdade?
As transferências chegam aos mais pobres, mas o sistema tributário injusto
faz com que o ganho líquido se torne menor. Como esses programas
representam cerca de 1,5% da renda nacional, o nível de redistribuição
que se pode obter com eles é limitado. Fora que as transferências são
financiadas por impostos que incidem sobre o consumo. E como o consumo
pesa mais no orçamento dos mais pobres, é possível dizer que os mais
pobres estão pagando por parte das transferência que recebem.
O Brasil falhou ao não resolver o problema durante o boom de commodities?
A alta das commodities poderia ter sido usada para melhorar o quadro, mas não é preciso um boom de commodities para reorganizar o sistema tributário. Tributação
mais justa é muito mais importante dos que as transferências de renda e
algo que todos os governos brasileiros nas últimas décadas falharam em
fazer.
O ajuste fiscal pode impactar a desigualdade?
O congelamento das despesas públicas por 20 anos pode ter impacto negativo sobre a desigualdade porque são os mais pobres que dependem mais dessas despesas.
Também pesam na conta a legislação sobre terras e a política fiscal,
seja na criação de uma tributação mais justa, seja na retirada de
renúncias que beneficiam os mais ricos.
Quais renúncias?
A principal é a taxação de lucros e dividendos. O Brasil
é um dos únicos que não taxam dividendos distribuídos à pessoa física.
Obviamente, isso favorece as pessoas de renda mais elevada.
Por que é tão difícil reduzir a desigualdade no Brasil?
É uma escolha política. O conflito distributivo vem de longa data, o país foi o último do Ocidente a abolir a escravidão. Outra explicação para o nível alto de desigualdade
está na natureza do Estado: grande historicamente. Isso não é
necessariamente ruim, mas sim a forma como ele se organiza e transfere
recursos. Acredito que tenha relação com a estrutura herdada de regimes
passados.
Que tipo de estrutura?
Por exemplo, as evidências do período da ditadura são de que a desigualdade
era maior, em especial no fim do regime militar. O crescimento
econômico podia ser maior, mas a desigualdade era também elevada. Não há
evidências de que o país esteja voltando àqueles níveis, mas é uma
possibilidade.
Melhor combater a pobreza em vez da desigualdade?
Pobreza e desigualdade estão relacionadas. Há políticas que podem
atacar ambas, não devemos restringir o foco em apenas uma delas.
Nos últimos 15 anos, a pobreza foi reduzida, é inquestionável. Ao mesmo tempo, a desigualdade melhorou um pouco porque muitas pessoas pobres ascenderam.
Mas os pobres ainda são muito pobres e a diferença de renda entre os
dois extremos é muito elevada. Ao se excluir os 20% mais ricos, a renda
dos 80% restantes no Brasil é equivalente à dos 20% mais pobres na França. A desigualdade é semelhante à da França do final do século 19.
Daí, é possível ver a jornada que se tem pela frente. Talvez não sejam necessários cem anos, afinal Brasília foi construída em cinco.
Não fizemos novamente o bolo crescer sem distribuí-lo?
Não devemos enxergar crescimento e desigualdade como
opostos, como se para ser mais igualitário fosse necessário reduzir o
crescimento. A economia acelera quando as pessoas que estão na base
passam a consumir ou poupar mais.
Será que os que estão no topo da pirâmide vão parar de consumir ou investir menos se pagarem um pouco mais de impostos? Não é o que parece.
Qual o impacto da recessão sobre a desigualdade?
Políticas de austeridade
costumam afetar mais os pobres. É plausível pensar que os níveis
desigualdade vão parar de melhorar nos próximos anos se essas políticas
forem implementadas. As expectativas não são favoráveis para a
continuidade da queda da desigualdade de renda.
Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/572005-desigualdade-no-brasil-e-escolha-politica-diz-economista
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