Foi no verão de 2016, após o tiroteio em uma boate gay em Orlando, onde foram mortas 49 pessoas, que o padre James Martin,
jesuíta e editor at large (uma espécie de consultor do diretor) da
revista America, decidiu que estava na hora de escrever o livro que
acabou de chegar às bancas nos EUA, Building a Bridge (Construindo uma ponte, em tradução livre), ou seja, construir uma ponte entre a comunidade LGBT e a Igreja. Um livro que já causou muita polêmica e, significativamente, exibe uma introdução assinada pelo cardeal Kevin Farrell, o cardeal norte-americano que o papa Francisco escolheu, em agosto de 2016, para liderar o novo dicastério para os laicos, a família e a vida. Além disso, padre Martin não é um nome qualquer: é um dos autores católicos mais lidos nos Estados Unidos (livros como Jesus: A Pilgrimage e My Life with the Saints foram best sellers) e o rótulo de sacerdote próximo ao mundo LGBT (abreviatura que representa pessoas lésbicas, gays, bissexuais e transexuais) não impediu ao papa Francisco de nomeá-lo consultor do Secretariado do Vaticano das comunicações.
A entrevista é de Chiara Basso, publicada pela revista italiana Jesus. A tradução é de Luisa Rabolini.
Padre James Martin, nasceu em 1960 na Pensilvânia (EUA),
depois de ter se graduado em Economia e trabalhado por seis anos na
General Electric em Nova York e Stamford, em 1988 entrou para a Companhia de Jesus
e em 1999 foi ordenado presbítero. Durante sua formação como jesuíta
estudou Filosofia em Chicago e Teologia em Cambridge. É editor at large de America, a revista oficial dos jesuítas nos Estados Unidos. Em 12 de abril último, o Papa Francisco nomeou-o como consultor da Secretaria do Vaticano para as comunicações.
Eu acredito que se Jesus estivesse entre nós, estaria agora entre os homossexuais
Padre Martin, durante muitos anos o senhor ajudou e trabalhou
com a comunidade LGBT, de maioria católica. Por que justamente aquele
episódio de Orlando inspirou-o a escrever este livro?
Orlando foi o maior tiroteio em massa na história dos EUA. Em resposta, milhões de pessoas neste país manifestaram seu apoio para a comunidade LGBT.
Ainda assim, uma coisa me incomodou profundamente: embora muitos
líderes da igreja tivessem expressado tristeza e horror, apenas um
pequeno grupo entre os mais de 250 bispos católicos usou as palavras
‘gay’ ou ‘LGBT’ e cito-os no começo do meu livro. Foram o Cardeal Blase Cupich de Chicago, o bispo Robert Lynch de St. Petersburg, na Flórida, o bispo David Zubik de Pittsburgh, o bispo Robert McElroy de San Diego e o bispo John Stowe de Lexington, Kentucky.
Não muitos...
Muitos outros se mantiveram, inclusive, em silêncio. O fato de que apenas alguns bispos católicos tenham reconhecido a comunidade LGBT ou mesmo tenham usado a palavra gay frente a tamanha tragédia foi para mim reveladora: era a prova de que a comunidade LGBT
ainda é invisível em muitos ambientes da Igreja. Eu acredito que a obra
do Evangelho não pode ser realizada se uma parte da Igreja está
substancialmente separada de qualquer outra parte. Entre os dois grupos,
a comunidade LGBT e a Igreja institucional, formou-se uma rachadura,
uma separação sobre a qual deve ser construída uma ponte. Então, algumas
semanas após a tragédia de Orlando, o New Ways Ministry, um grupo que apoia e promove a presença de católicos LGBT na Igreja, perguntou-me se eu aceitaria receber o prêmio ‘Bridge Building‘
e falar durante a cerimônia de premiação. O nome do prêmio inspirou-me a
traçar uma ideia para uma ‘ponte em dois sentidos’, que poderia ajudar a
reunir a Igreja institucional e a comunidade LGBT.
Como funciona exatamente essa ponte em dois sentidos?
Toda ponte leva as pessoas para ambos os lados. Meu objetivo com este livro é exortar a Igreja a tratar a comunidade LGBT com ‘respeito, compaixão e sensibilidade’ (uma frase do Catecismo da Igreja Católica)
e incentivar a comunidade LGBT a fazer o mesmo, refletindo sobre essas
virtudes em uma relação com as instituições da igreja. Caminhamos
primeiro na direção que leva da Igreja, entendida como a hierarquia
eclesiástica, para o mundo gay.
Primeiro de tudo, respeito significa reconhecer que existe a comunidade LGBT.
Como qualquer comunidade, gays e lésbicas também querem ser
reconhecidos. Reconhecê-los também traz importantes implicações
pastorais. Significa concretizar ações que algumas dioceses e paróquias
já exercem com sucesso, como a celebração de missas com grupos LGBT, o
patrocínio de programas diocesanos e paroquiais e, de forma mais geral, a
garantia de que os católicos se sintam parte da Igreja e se sintam
amados. Em segundo lugar, respeito significa chamar um grupo como deseja
ser chamado. Se o papa usa a palavra ‘gay’, sem problemas, o mesmo pode
ser feito pelo resto da Igreja, e precisam ser esquecidas palavras como
"pessoa que sentem atração por pessoas do mesmo sexo".
Compaixão significa ouvir e viver através de suas palavras a história
e o sofrimento dos outros, portanto, daqueles que se identificam como
gay. Sensibilidade tem a ver com entender o que sente a outra pessoa,
mas é impossível fazê-lo à distância. É preciso chegar perto daqueles
que consideramos diferentes de nós, tornarmo-nos amigos.
Mas alguns católicos poderiam considerar uma abordagem desse
tipo como um acordo tácito com tudo o que qualquer pessoa da comunidade
LGBT diz ou faz. O que o senhor responde a tal objeção?
Parece uma objeção injusta porque nunca é levantada para qualquer
outro grupo. Se uma diocese promove, por exemplo, um grupo de orientação
para empresários católicos, não significa que a diocese esteja de
acordo com cada valor da cultura corporativa norte-americana de molde
capitalista. Também não significa que a Igreja santifica tudo o que um
empresário ou empreendedor diz ou faz. Por que não? Porque as pessoas
entendem que a diocese está tentando ajudar uma determinada comunidade a
se sentir mais próxima da própria Igreja.
Primeiro de tudo, respeito significa reconhecer que existe a comunidade LGBT
Neste sentido, o livro trata de "discriminação seletiva" por
parte de alguns religiosos em relação aos gays. Pode nos explicar o que
significa e por que isso acontece?
Pessoalmente, fico desanimado pela tendência, em algumas instituições
religiosas, de demitir homens e mulheres homossexuais. É claro que as
organizações da Igreja têm autoridade para exigir que seus funcionários
sigam os ensinamentos da Igreja, mas o problema é que esta autoridade é
aplicada de forma altamente seletiva. Quase todas as demissões nos
últimos anos centraram-se sobre funcionários que oficializaram casamentos gays.
Claro, tais uniões são contra o ensinamento da Igreja, mas, então, as
dioceses e paróquias precisam ser coerentes. Também vamos demitir os
divorciados que se casaram novamente sem uma anulação? Vamos afastar
mulheres que têm filhos fora do casamento? E o que acontece com aqueles
que vivem em união estável? Todas essas coisas também são contrárias à
doutrina da Igreja.
Quais são as razões para esta discriminação seletiva?
Eu acho que isso acontece principalmente por duas razões: por um
lado, o medo e preconceito contra o que é diferente e não conhecemos,
por outro lado, alguns católicos podem ser seletivos sobre que
ensinamentos da Igreja são importantes com base no que poderia ou não
acontecer com eles, como me sugeriu um jovem gay. Ninguém levanta um
dedo contra um divorciado, ele me disse, porque no fundo sabe que um dia
poderá se divorciar, enquanto sente-se certo de que jamais vai ser gay.
Mas ninguém pode realmente se considerar excluído.
O que infelizmente acontece hoje, é sim um ‘sinal de discriminação injusta’ algo que devemos evitar
O que quer dizer?
Que um dia, mesmo aqueles que se sentem muito distantes dos
homossexuais, poderão descobrir que o seu filho ou filha, irmão ou irmã,
sentem atração por alguém do mesmo sexo. Então, como muitas vezes já vi
acontecer, a perspectiva muda radicalmente. Recentemente, por exemplo,
uma senhora idosa veio me agradecer por esse livro. Ela me disse: ‘O
senhor sabe, minha neta é transexual. Para mim, foi muito bom ler o que o
senhor escreveu e eu espero que a minha neta não abandone a Igreja’.
Talvez 15 ou 20 anos atrás, aquela mulher não conhecia nenhum gay, e
pensava que eles fossem apenas pervertidos. Agora ela conhece uma e está
disposta a abrir-se, porque ela ama a sua neta. Afinal, o amor
perfeito, como São João escreve, lança fora o temor. O
que infelizmente acontece hoje, nas palavras do catecismo católico, é
sim um ‘sinal de discriminação injusta’ algo que devemos evitar.
Os meios de comunicação certamente desempenham um papel
importante nesse sentido porque, como o senhor afirma neste livro, nos
últimos anos têm falado bastante da comunidade LGBT e muitos
alinharam-se a seu lado. Acha que isso pode favorecer ou prejudicar o
diálogo entre Igreja e gays?
Em geral, os meios de comunicação têm um papel positivo porque expõem mais as pessoas ao mundo LGBT,
por isso alcançam mesmo aqueles que vivem em cidades pequenas onde as
pessoas não se manifestam com tanta facilidade. No entanto, às vezes
eles parecem exagerar o percentual dos que são gays, fazendo com que
pareça uma grande ameaça para aqueles que não são, e isso poderia tornar
o diálogo mais difícil. Mas a maioria dos meios de comunicação faz um
bom trabalho em educar as pessoas sobre a comunidade gay.
Entre a geração millennial, ter um amigo gay é quase considerado ‘cool’ porque é um sinal de abertura de pensamento
O senhor observa grandes diferenças entre a Itália e os EUA a este respeito?
Há alguns dias, falava justamente sobre isso com um amigo italiano. Ele me disse que meu livro não seria entendido na Itália,
afirmando que a Itália ainda tem muitos problemas para lidar com esta
temática. Segundo ele, especificamente, os homens italianos ainda estão
muito preocupados em defender sua masculinidade e uma abertura ao mundo
gay é vista como uma grande ameaça. Eu diria que, em geral, os católicos
americanos estão mais abertos aos gays do que os católicos italianos.
Aliás, aqui na nos Estados Unidos, especialmente entre a geração millennial, ter um amigo gay é quase considerado ‘cool’
porque é um sinal de abertura de pensamento. E assim resulta que a
Igreja, aquela que ao contrário fecha a porta aos homossexuais, afasta
também aqueles jovens heterossexuais que não entendem tal falta de
abertura. Costumo ouvir a seguinte frase ‘eu não quero pertencer a uma
igreja que não aceita meu amigo LGBT’. Este livro, na verdade, não foi
escrito apenas para os gays, mas também para as suas famílias e amigos.
Existe alguma confissão cristã ou crença que já foi capaz de construir uma ponte?
Existem várias igrejas nos Estados Unidos, onde os gays se sentem perfeitamente aceitos. Falo da Igreja Episcopal, que tem padres gays e nenhuma barreira contra quem quer que seja. E é para essas igrejas que acabam indo os católicos LGBT que não se sentem aceitos.
Três chaves do diálogo: respeito, compaixão e sensibilidade
Mas, voltando à metáfora da ponte em ambos os sentidos, o que se espera do mundo gay para facilitar o diálogo?
Um retorno às três chaves do diálogo, que são: respeito, compaixão e sensibilidade.
Nesse caso, significa que os gays não devem zombar das instituições
religiosas ou dos bispos pela forma como se vestem ou por outras suas
práticas. Zombar deles significa fazer aos outros, o que você não quer
que seja feito a você. Compaixão significa tentar compreender os bispos e
a complexidade do seu ministério, tentar entender como vivem e o que
eles enfrentam. Sensibilidade é entender também que, por vezes, alguns
sacerdotes tiveram que lidar com o fato de serem gays.
É um dado bem conhecido que muitos padres e seminaristas são
homossexuais. Que tipo de problemas representa esta realidade para a
Igreja Católica? É possível ser gay e bom sacerdote?
Claro, conheço dezenas de excelente religiosos gays que vivem uma
vida de castidade. Alguns foram meus guias espirituais ou meus
superiores. Mas eu quero ser claro para não ser mal interpretado: estou
dizendo que são gays, mas não sexualmente ativos.
Eles admitem ser gay, então?
Bem, só em privado, mas acho que uma das dificuldades para eles seja
justamente falar sobre isso publicamente. E isso por várias razões.
Primeiro, eles podem ser reservados por natureza; segundo, seus
superiores poderiam tê-los orientado para não falar sobre isso em
público; terceiro, poderiam temer a resposta e a crítica de seus
paroquianos. Tudo isso contribui para o seu silêncio. Acredito que se
amanhã todos os padres e religiososos gays viessem a público manifestar
sua orientação sexual, todos ficaríamos em choque. O segredo em torno
desse tema é realmente infeliz.
O senhor acha que se eles se manifestassem seria mais fácil construir essa ponte?
Certamente que sim, seria um grande passo à frente porque as pessoas
diriam ‘você vê, também acontece com padres e bispos’. Claro, ninguém
quer um padre que fale o tempo todo sobre sua homossexualidade, mas
existem momentos, como nos casos em que ocorre homofobia ou perseguição
contra os gays, em que eles poderiam falar sobre a sua experiência e
talvez dizer ‘eu tive problemas com minha homossexualidade quando eu era
mais jovem, mas Deus me ajudou para que me sentisse bem e amado’. Algo
simples, como isso, mas que seria realmente uma forte mensagem de apoio
para os gays e para todas as pessoas. Infelizmente eu não acho que vai
acontecer, ainda há muito medo. E também há muita confusão sobre o
significado de ser gay, porque se um religioso admitisse ser gay, logo
as pessoas pensariam que essa pessoa estaria tendo relações sexuais com
pessoas do mesmo sexo.
Se amanhã todos os padres e religiosos gays viessem a público manifestar sua orientação sexual, todos ficaríamos em choque
Talvez os escândalos ligados à pedofilia não tornem mais fácil declarar a orientação sexual, certo?
Claro, porque as pessoas acabam jogando no mesmo caldeirão castidade, celibato, homossexualidade, pedofilia, clericalismo, papel das mulheres na Igreja,
etc. Mas, ao contrário, ser gay não significa ser um pedófilo. Se não
há mulheres sacerdotes, não significa que não há sexismo. Todas as
questões relacionadas com a sexualidade dentro da Igreja acabam se
confundindo e muitas vezes por pessoas que não sabem o que dizem.
Acredita que as religiosas são mais abertas a essas questões?
Não acredito nisso. Nenhuma das que eu conheço declarou sua
orientação sexual em público. Uma abertura para os fiéis gays talvez
dependa mais de cada instituição e diocese individualmente. Mas não se
pode ignorar o fato de que algumas páginas da Bíblia têm sido
tradicionalmente lidas como uma condenação da homossexualidade, em
termos inequívocos.
Mas é realmente assim, ou essas páginas têm sido mal
interpretadas? Em suma, Deus é realmente contra os homossexuais ou somos
nós que entendemos mal, culpabilizando os gays?
É difícil responder a esta pergunta, porque eu não sou um teólogo.
Deixe-me ser claro: esse livro não questiona qualquer doutrina da
Igreja. Apenas afirma que devemos ouvir uns aos outros e que até o
momento não o estamos fazendo suficientemente. A Igreja tem falado de LGBT, mas não tem falado com a comunidade LGBT.
Aconselho olhar para a segunda parte do livro onde sugiro algumas
passagens da Bíblia sobre as quais gays e religiosos podem meditar para
entender melhor a sua relação com Deus e com a Igreja sobre esse
assunto. Um recurso espiritual para qualquer um.
Como o senhor avalia a abertura do Papa Francisco em relação aos gays?
É interessante ver como este Pontífice tem sido mais aberto para os
homossexuais do que seus antecessores. Tenho certeza que ele conhece
alguns, como seu amigo gay Yayo Grassi, e isso muda o seu entendimento sobre os homossexuais; não é mais uma categoria, são pessoas.
As questões relacionadas com a sexualidade dentro da Igreja acabam se
confundindo e muitas vezes por pessoas que não sabem o que dizem
Muitos defensores da comunidade LGBT, no entanto, criticam o
fato de que o Papa mudou sua atitude em relação aos gays, mas não a
doutrina. Então, o que é mais importante: estar do lado de pessoas que
estão às margens, como Jesus ensinou, ou seguir os ensinamentos
doutrinários segundo os quais a homossexualidade é um pecado?
Eu não acredito que deva haver uma dicotomia entre as duas coisas,
porque Jesus é a doutrina e quando dividimos as duas coisas tornamos
tudo mais difícil. A doutrina é basicamente uma interpretação daquilo
que Cristo nos pede. Se olharmos para o Evangelho, veremos que toda vez
que as regras entravam em conflito com o seu amor para alguém, ele
escolhia o amor. Ele não deveria ter falado com a mulher samaritana no
poço, mas falou com ela; não deveria ter tocado os leprosos, não deveria
ter falado com o centurião romano, e assim por diante. Jesus
sempre chegou perto das pessoas que se sentiam às margens e as trouxe
de volta ao centro da comunidade. Às margens é onde os gays se sentem.
São os leprosos de hoje. Não há ninguém dentro da Igreja, hoje, que se
senta mais marginalizado do que eles. Até mesmo as mulheres, que às
vezes se sentem excluídas, assumem funções dentro do Vaticano, tem um
dia dedicado a elas.
Ao contrário, não há jornadas LGBT organizadas pelas Igrejas. O senhor acha que haveria necessidade de uma?
Sim, certamente, por que não? Poderíamos assim ouvir as suas
experiências, mas é algo ainda muito assustador para as pessoas. Eu
acredito que se Jesus estivesse entre nós, estaria agora entre os homossexuais.
Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/570160-james-martin-a-homossexualidade-a-ponte-a-ser-construida-na-igreja-catolica
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