Na quarta-feira, 10 de maio, a apoteose
midiática na qual se transformou chamada operação Lava Jato atingiu o
seu clímax. O ex-presidente Lula, na condição de réu, compareceu à 13ª
vara federal de Curitiba para depor diante daquele que, muito embora
seja seu julgador, foi estranha e condescendentemente elevado à condição
de algoz, algo pouco usual para alguém do qual se exige
institucionalmente o dever de imparcialidade.
A
atmosfera criada ao redor da Lava Jato criou gigantescas expectativas.
Nenhuma correspondente a um Estado verdadeiramente democrático e de
direito. Estas expectativas, por sua vez, foram alimentadas e
re-alimentadas por agentes públicos que se tornaram objeto da lascívia
juvenil de quem se entusiasmou com o impeachment da presidenta Dilma,
professou uma espécie de paganismo pós-moderno ao ajoelhar-se diante de
uma representação divina em forma de pato e se dirigiu serelepe às suas
respectivas varandas para bater panelas.
Esta
atmosfera, profundamente antidemocrática, subverte a finalidade do
processo em si, considerando que este tem como principal objetivo
proteger os cidadãos e cidadãs do ímpeto absolutista e arbitrário do
Estado. Fixam-se, assim, as regras do jogo, de maneira que ninguém possa
ser surpreendido e acossado como aconteceu com Josef K. na obra
clássica de Franz Kafka. Esta garantia se dá independentemente dos
clamores da imprensa, sociedade civil ou de quem for, possuindo um valor
inerentemente contramajoritário próprio de Estados Democráticos de
Direito. Nenhum destes segmentos têm o condão de influir no processo no
sentido de inventar prazos e procedimentos. Assusta que esta obviedade
consagrada há mais de duzentos anos não tenha sido assimilada inclusive e
principalmente por pessoas que se consideram juristas.
A
verdade é que o processo enquanto conquista histórica do liberalismo
foi completamente esquecido pelos agentes da Lava Jato. A quantidade de
subversões à lei perpetrada por Sérgio Moro, da condução coercitiva do
ex-presidente Lula, passando pelo abuso nas prisões preventivas, pelo
alto grau de subjetividade na condução das audiências, pela violação de
sigilo telefônico e pela inacreditável exigência de que o ex-mandatário
comparecesse às oitivas de suas 87 testemunhas, representa algo
deliberado ao invés de erros simplórios como o de quem exagera ao pôr
azeite na salada. O mesmo se aplica à Dallagnol e ao Ministério Público
Federal em vários procedimentos no mínimo questionáveis, a exemplo da
execração pública do ex-presidente por meio daquele famigerado
powerpoint.
A atmosfera
criada em torno desses episódios alça seus agentes à condição de
escravos das expectativas alimentadas por eles próprios, de modo que,
mesmo que cogitem a hipótese de absolvição – algo, definitivamente, fora
de cogitação –, o monstro que ajudaram a criar com o seu populismo
judiciário, representado pelas sucessivas tratorizações de ritos
processuais e da presunção de inocência (duas conquistas liberais
clássicas, frise-se), para atender aos reclamos da opinião pública
insuflada pela imprensa empresarial impede que qualquer epifania
republicana possa brotar em suas mentes.
Na
novela da Lava Jato, Sérgio Moro foi transformado em uma espécie de
herói romântico e diletante, um cruzado em cujos ombros pesa o dever
histórico de combater o mal de todos os males: a corrupção,
principalmente aquela que viceja em nossa descredibilizada classe
política, composta por pessoas mal intencionadas prestes a serem
varridas pelos arcanjos capitaneados por Deltan Dallagnol, todos
legitimados e investidos do poder divino de universalizar sua régua
moral para tratar de problemas de índole institucional e política, por
mais desprezo que nutram por esta palavra.
Não
há solução fora da política. A mistificação do juiz paranaense, além de
criminalizá-la, fulanizar o debate e safar as origens estruturais e
sistêmicas que geram uma corrupção inerente â concentração de poder
econômico, deu origem a uma assustadora e antirrepublicana adoração por
parte da militância antipetista que em boa parte acredita piamente que
Lula e o PT, se não são a origem de todo o mal, são o poço de onde sai a
maior parte dele. O séquito morista, no seu conservadorismo galopante,
chega ao ponto de confrontar o próprio Moro em nome do ícone messiânico
que o juiz se tornou. O fato do magistrado ter reconhecido em mensagem
ao STF que se excedeu na violação do sigilo telefônico e publicação do
conteúdo das conversas entre Lula e Dilma não arrefeceu a adoração que
lhe é dispensada pelo morismo, que continuou defendendo os propósitos
morais com os quais seu guru violou a lei. São, no final das contas,
mais católicos que o papa.
A
todos estes fatos some-se uma espécie de mapeamento cognitivo que
funciona segundo o esquema da “luta do bem contra o mal”, interpretando
os acontecimentos sob a perspectiva maniqueísta e indolente de quem não
se dispõe a fazer qualquer esforço intelectual em entender que a vida é
muito mais complexa que a narrativa de mocinhos contra vilões. A
novelização da Lava Jato parte exatamente da premissa de que para
atingir alguns inconfessáveis propósitos é necessário fortalecer as
paredes dessa caixa, trancando suas portas, cimentando suas janelas e
impedindo qualquer oxigenação mental fora dela.
Muitos
destes propósitos inconfessáveis se encontram no projeto que vem sendo
aplicado no Brasil e que veio na esteira da operação Lava Jato,
estrategicamente instrumentalizada contra o PT (que tem sim seu naco de
responsabilidade nos malfeitos apontados por ela) ainda que tenha
deixado clara a natureza sistêmica e estrutural da corrupção em nosso
país. O afã moralista de apontar nomes e se adequar a esquema cognitivo
serviu de amparo para o impeachment de Dilma Rousseff e a consequente
concretização de um projeto ultraliberal que jamais, em quaisquer
condições normais de temperatura e pressão democráticas, sobreviveria às
urnas, assim como em tese não sobrevive à própria Constituição Federal
que conforma a produção e reprodução de riqueza ao atendimento de
imperativos éticos consagrados pela comunidade política.
A
racionalidade do mercado em acumular predatoriamente é estancada por
diretrizes como o combate à desigualdade social e a promoção do
desenvolvimento nacional e regional previstos por nossa lei maior e
amparados no fato de que o mercado interno constitui um patrimônio
nacional (artigo 219) cuja riqueza não pode ser alocada segundo a lógica
de acumulação e rapina do livre mercado. Reformas como a da
previdência, trabalhista e do ensino médio, os ataques ao SUS e a
aprovação da PEC do teto de gastos desconsideram por completo esta
realidade constitucional, algo que não seria possível sem que houvesse a
capitalização da Lava Jato com o intento de que propósitos
antirrepublicanos e antidemocráticos pudessem enfim sair do papel.
O
fato é que Moro sabe disto, assim como sabe também do teor de sua
liderança a ponto de gravar vídeos para seus seguidores e de insuflar a
imprensa para que saia a favor dos seus quixotescos propósitos.
Toneladas de expectativas foram depositadas sob seus ombros, e nenhuma
grama destas expectativas apontam para qualquer esboço de absolvição. O
projeto que lhe foi caudatário precisa de uma condenação de Lula para
que se mantenha de pé e não tenha suas contradições expostas na arena da
democracia eleitoral.
Diante
da condenação certa e da impossibilidade de lutar em um processo onde
convicções já foram formadas desde antes mesmo de ser instaurado, Lula
jogou as cartas no terreno que melhor sabe atuar: o da própria política,
terreno este que a própria Lava Jato adentrou embora seus condutores
achem ruim que respostas de cunho político venham sendo dadas aos surtos
absolutistas de Sérgio Moro, tão políticos quanto palanques de comícios
de interior. Em determinado trecho de seu depoimento, Lula diz que se
Moro demonstrar uma tímida reflexão de que poderá, mesmo que
remotamente, absolvê-lo, a matilha da imprensa empresarial não irá
poupá-lo de sua sede por sangue assim como não vem poupando o
ex-presidente. O processo, esta inconveniente garantia do réu, os
depoimentos e todas as provas produzidas, ainda que apontem para isto,
não são suficientes para que Moro deixe de alimentar o monstro que
ajudou a criar e assim decepcione seu vasto fã clube. Definitivamente.
Gustavo Henrique Freire Barbosa é Advogado e professor
Disponível em: http://justificando.cartacapital.com.br/2017/05/11/o-monstro-que-sergio-moro-ajudou-criar-e-que-torna-impossivel-absolvicao-de-lula/
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