No marco dos 10 anos do Documento da Conferência de Aparecida, uma provocante carta pastoral do Papa Francisco
A carta do Papa aos bispos
latino-americanos merece ser lida, pois, o seu conteúdo traça os rumos
para uma autêntica espiritualidade eclesial libertadora brotada da fé
discipular, consolidada nos desafios diários da vida em comunidade.
Para Francisco, a comunidade de fé deve
se tornar o lugar onde se pratica a fraternidade solícita e a justiça
inclusiva na construção de uma outra
sociedade possível. Lugar onde se cultiva amor-cuidado maternal para
com cada membro do Povo de Deus, com atenção maior e especial para com
os mais vulneráveis. A Igreja é chamada, então, a contemplar, de forma
discipular e aprendiz, a fé do Povo e cultivar profundo respeito por
suas devoções piedosas.
A carta
de Francisco veicula um forte potencial para provocar a retomada, com
zelo e ardor missionário, do necessário processo de conversão pastoral
nas ações evangelizadoras da Igreja definido pelo Documento de Aparecida
e retomado para toda a Igreja na Evangelii Gaudium.
Reproduzimos aqui a Carta do Papa na íntegra, embora os grifos sejam nossos. Confira:
Meus irmãos Bispos, reunidos na Assembleia do CELAM
Queridos irmãos, quero me aproximar
de Vocês nestes dias de Assembleia que tem como mística de fundo a
celebração dos 300 anos de Nossa Senhora Aparecida. E, com Vocês,
gostaria de poder “visitar” esse Santuário. Uma visita de filhos e de
discípulos, visita de irmãos que como Moisés querem se descalçar nessa
terra santa que sabe acolher o encontro de Deus com Seu Povo.
Assim também gostaria que fosse nossa
“visita” aos pés da Mãe, para que ela nos engendre na esperança e
inteire nossos corações de filhos. Seria como “voltar a casa”
para olhar, contemplar, mas especialmente para nos deixar olhar e
encontrar por Aquele que nos amou primeiro. Há 300 anos, um
grupo de pescadores saiu como de costume para lançar suas redes. Saíram
para ganhar a vida e foram surpreendidos por um achado que lhes mudou os
passos: em suas rotinas são encontrados por uma pequena imagem toda
coberta de lama.
Era Nossa Senhora da Conceição, imagem que durante 15 anos permaneceu na casa de um deles, e aí os pescadores iam para rezar e Ela os ajudava a crescer na fé. Ainda hoje, 300 anos depois, Nossa Senhora Aparecida nos faz crescer, submerge-nos em um caminho discipular.
Aparecida é toda ela uma escola de discipulado. E, a esse respeito, gostaria de destacar três aspectos.
O primeiro são os pescadores.
Não eram muitos, um grupinho de homens que cotidianamente saíam para
encarar o dia e enfrentar a incerteza que o rio lhes apresentava. Homens
que viviam com a insegurança de nunca saber qual seria o “ganho” do
dia; incerteza nada fácil de gerir quando se trata de levar o alimento
para casa e, sobretudo, quando nessa casa há crianças para alimentar. Os
pescadores são esses homens que conhecem em primeira mão a ambivalência
que se dá entre a generosidade do rio e agressividade de seus
transbordamentos. Homens acostumados a enfrentar inclemências com a
resiliência e certa santa “teimosia” daqueles que, cotidianamente, não
deixam – porque não podem – de lançar as redes. Esta imagem nos aproxima
do centro da vida de tantos irmãos nossos. Vejo rostos de
pessoas que desde muito cedo até um considerável início da noite saem
para ganhar a vida. E fazem isto com a insegurança de não saber qual
será o resultado. E o que mais dói é ver que – quase ordinariamente –
saem para enfrentar a inclemência gerada por um dos pecados mais graves
que, hoje, açoita o nosso Continente: a corrupção, essa corrupção que
arrasa com vidas, submergindo-as na mais extrema pobreza.
Corrupção que destrói populações inteiras, submetendo-as à precariedade.
Corrupção que, como um câncer, vai corroendo a vida cotidiana de nosso
povo. E aí estão tantos irmãos nossos que, de maneira admirável, saem
para lutar e enfrentar os “transbordamentos” de muitos…, de muitos que
não precisam sair.
O segundo aspecto é a Mãe.
Maria conhece em primeira mão a vida de seus filhos. Em crioulo,
atrevo-me a dizer: é madraza. Uma mãe que está atenta e acompanha a vida
dos seus. Vai onde não é esperada. No relato de Aparecida, nós
a encontramos no meio do rio, cercada de lama. Aí, espera seus filhos,
aí está com seus filhos, no meio de suas lutas e buscas. Não tem
medo de se submergir com eles nas vicissitudes da história e, se
necessário, sujar-se para renovar a esperança. Maria aparece ali onde os
pescadores lançam as redes, ali onde esses homens tentam ganhar a vida.
Aí está ela.
Por último, o encontro. As
redes não se encheram de peixes, mas, ao contrário, de uma presença que
lhes encheu a vida e lhes deu a certeza que em suas tentativas, em suas
lutas, não estavam sós. Era o encontro desses homens com Maria.
Depois de limpá-la e restaurá-la, levaram-na a uma casa onde permaneceu
um bom tempo. Esse lar, essa casa, foi o lugar onde os pescadores da
região iam ao encontro de Aparecida. E essa presença se fez comunidade,
Igreja. As redes não se encheram de peixes, se transformaram em comunidade.
Em Aparecida, encontramos a dinâmica
do Povo crente que se confessa pecador e auxiliado, um povo forte e
obstinado, consciente que suas redes, sua vida está cheia de uma
presença que o alenta a não perder a esperança; uma presença que se
esconde no cotidiano do lar e das famílias, nesses silenciosos espaços
nos quais o Espírito Santo continua sustentando nosso Continente. Tudo isto nos apresenta um belo ícone que nós, pastores, somos convidados a contemplar.
Viemos como filhos e como discípulos
para escutar e aprender o que é que hoje, 300 anos depois, este
acontecimento continua nos dizendo. Aparecida (seja aquela
aparição, como hoje a experiência da Conferência) não nos traz receitas,
mas chaves, critérios, pequenas grandes certezas para iluminar e,
sobretudo, “acender” o desejo de retirarmos qualquer roupagem
desnecessária e voltar às raízes, ao essencial, à atitude que plantou a
fé nos inícios da Igreja e, depois, fez de nosso Continente a terra da
esperança.
Aparecida quer apenas renovar nossa esperança em meio a tantas “inclemências”. O
primeiro convite que este ícone nos faz, como pastores, é o de aprender
a olhar para o Povo de Deus. Aprender a escutá-lo e a conhecê-lo, a lhe
dar sua importância e lugar. Não de maneira conceitual ou organizativa, nominal e funcional. Embora
esteja correto que hoje em dia existe uma maior participação dos fiéis
leigos, muitas vezes os limitamos apenas ao compromisso intraeclesial,
sem um claro estímulo para que permeiem, com a força do Evangelho, os
ambientes sociais, políticos, econômicos, universitários.
Aprender a escutar o Povo de
Deus significa nos descalçar de nossos preconceitos e racionalismos, de
nossos esquemas funcionalistas para conhecer como o Espírito atua no
coração de tantos homens e mulheres que, com grande resiliência, não
deixam de lançar as redes e lutam para tornar o Evangelho
credível, para conhecer como o Espírito continua movendo a fé de nossa
gente; essa fé que não sabe tanto de ganhos e êxitos pastorais, mas de
firme esperança.
Como temos que aprender com a
fé de nossa gente! A fé de mães e avós que não têm medo de se sujar
para conduzir seus filhos adiante. Sabem que o mundo que lhes
toca viver está infestado de injustiças, em todas as partes veem e
experimentam a carência e a fragilidade de uma sociedade que se
fragmenta cada dia mais, onde a impunidade da corrupção segue ceifando
vidas e desestabilizando as cidades.
Não apenas sabem disso… vivem-no. E elas
são o claro exemplo da segunda realidade que nós, como pastores, somos
convidados a assumir: não tenhamos medo de nos sujar por nossa gente.
Não tenhamos medo da lama da história, a fim de resgatar e renovar a
esperança. Só pesca aquele que não tem medo de arriscar e se comprometer
pelos seus. E isto não nasce da heroicidade ou do caráter
kamikaze de alguns, nem é uma inspiração individual de alguém que deseja
se imolar. É toda a comunidade crente que vai em busca de Seu Senhor,
porque só saindo e deixando as seguranças (que muitas vezes são
‘mundanas’) que a Igreja se centra. Só deixando de ser autorreferencial é
que somos capazes de re-centrarmos Naquele que é fonte de Vida e
Plenitude.
Para poder viver com
esperança é crucial que nos re-centremos em Jesus Cristo, que já habita
no centro de nossa cultura e vem a nós sempre novo. Ele é o centro. Esta
certeza e convite ajuda a nós, pastores, centrarmos em Cristo e em seu
Povo. Eles não são antagônicos. Contemplar a Cristo em seu povo
é aprender a nos descentrar de nós mesmos, para nos centrar no único
Pastor. Re-centrarmos com Cristo em seu Povo é ter a coragem de
ir para as periferias do presente e do futuro, confiantes na esperança
de que o Senhor segue presente e Sua presença será fonte de Vida
abundante. Daqui virá a criatividade e a força para chegar aonde são
gestados os novos paradigmas que estão pautando a vida de nossos países e
poder alcançar, com a Palavra de Jesus, os núcleos mais profundos da
alma das cidades onde, cada dia mais, cresce a experiência de não se
sentir cidadãos (Cf. EG 74). É certo, não podemos negar, a realidade se apresenta a nós cada vez mais complicada e desconcertante, mas a
nós é pedido vivê-la como discípulos do Mestre, sem nos permitir ser
observadores assépticos e imparciais, mas homens e mulheres apaixonados
pelo Reino, desejosos de impregnar as estruturas da sociedade com a Vida
e o Amor que conhecemos. E isto não como colonizadores ou dominadores,
mas compartilhando o bom odor de Cristo que seja esse odor aquele que
siga transformando vidas.
Volto a lhes reiterar, como irmão, o que escrevia na Evangelii Gaudium (49):
“prefiro uma
Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído à rua, a uma Igreja
enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias
seguranças. Não quero uma Igreja preocupada em ser o centro e que acabe
presa em um emaranhado de obsessões e procedimentos. Se algo deve nos
inquietar santamente e preocupar nossa consciência é que haja tantos
irmãos nossos que vivem sem a força, a luz e o consolo da amizade com
Jesus Cristo, sem uma comunidade de fé que os acolha, sem um horizonte
de sentido e de vida. Mais que o medo de errarmos, espero que
nos mova o medo de nos fechar nas estruturas que nos dão uma falsa
contenção, nas normas que nos tornam juízes implacáveis, nos costumes
onde nos sentimos tranquilos, enquanto lá fora há uma multidão faminta e
Jesus nos repete sem se cansar: ‘Dai-lhes vós mesmos de comer’ (Mc 6,
37).”
Isto ajudará a revelar a dimensão
misericordiosa da maternidade da Igreja que, a exemplo de Aparecida,
está entre os “rios e a lama da história”, acompanhando e animando a
esperança para que cada pessoa, ali onde está, possa se sentir em casa,
possa se sentir filho amado, buscado e esperado. Está visão, este
diálogo com o Povo fiel de Deus, oferece ao pastor duas atitudes
muito lindas a cultivar: coragem para anunciar o Evangelho e
resistência para lidar com as dificuldades e os dissabores que a própria
pregação provoca.
Na medida em que nos
envolvemos com a vida de nosso povo fiel e sentimos a profundidade de
suas feridas, podemos olhar sem “filtros clericais” o rosto de Cristo,
ir a seu Evangelho para rezar, pensar, discernir e nos deixar
transformar, a partir de Seu rosto, em pastores de esperança.
Que Maria, Nossa Senhora Aparecida,
continue nos conduzindo a seu Filho para que, Nele, nossos povos tenham
vida… e em abundância. E, por favor, peço-lhes que não se esqueçam de
rezar por mim. Que Jesus os abençoe e a Virgem Santa os proteja.
Fraternalmente.
Francisco
Vaticano, 8 de maio de 2017
Disponível em: https://observatoriodaevangelizacao.wordpress.com/2017/05/11/provocante-carta-do-papa-francisco-aos-bispos-reunidos-na-assembleia-do-conselho-episcopal-latino-americano-celam/
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