No sábado, 13 de maio, o juiz Sérgio
Moro foi a Londres participar de uma mesa redonda que tinha o
ex-ministro da justiça José Eduardo Cardozo entre seus conferencistas.
Como esperado, Cardozo teceu incisivas críticas à postura de Moro no que
diz respeito, dentre outras coisas, à flexibilização que vem fazendo em
relação a garantias como a presunção de inocência e o caráter
excepcional das prisões preventivas. No início de sua fala, logo após as
exposições de Cardozo, o juiz paranaense brincou com a expectativa de
um confronto entre ele e o ex-ministro, tendo garantido que não havia
lhe desferido nenhuma cotovelada durante sua palestra.
Moro
reiterou o que vem dizendo ao longo dos três anos da operação Lava
Jato. Criticou o que chama de “generosidade recursal”, algo que
favoreceria a impunidade, e qualificou a presunção de inocência como um
dos trampolins para que réus acabem impunes. Citou também as
experiências dos EUA e da França, países de tradição democrática e
liberal mais consolidada que o Brasil que deixaram de adotar a regra da
prisão apenas após o trânsito em julgado. Obviamente, teceu loas ao
sepultamento que o STF promoveu do artigo 5º, LVII da Constituição
Federal, segundo o qual ninguém será considerado culpado até o trânsito
em julgado de sentença penal condenatória. O STF, segundo afirmou, havia
fechado uma das janelas para a impunidade.
Em A Ideologia Alemã,
Marx e Engels afirmam que aqueles que têm o controle dos meios de
produção material controlam também os meios de produção espiritual. Em
outras palavras, todas as representações e valores inerentes ao pacote
ideológico das classes dominantes são expandidos tal qual se tratassem
de uma realidade universal, de modo que o pensamento burguês quebra as
barreiras de sua classe e coloniza a mente de quem vive de salário e usa
transporte público. A metáfora marxista é importante para
compreendermos o microuniverso de Moro, aquele, da 13ª vara federal de
Curitiba. A fala do magistrado indica que a (sua) realidade da
impunidade é a realidade dos processos que se revezam no seu gabinete e
no gabinete de seus colegas em autos que tratam de crimes financeiros,
lavagens de dinheiro, corrupção ativa e passiva, evasão de divisas, etc,
onde pessoas abastadas é que são rés.
Entretanto, como falar que há impunidade em um país no qual sua população carcerária é a quarta maior do planeta, sendo composta por 60% de presos provisórios, pessoas que ainda estão aguardando o julgamento? Como falar em uma democracia substancial, efetiva e fora do formalismo burguês quando mais da metade desta população é de pessoas negras, maiores vítimas da escalada da violência? Moro projeta no mundo a realidade ar-condicionada de seu gabinete, onde boa parte dos réus usam gravata e possuem off-shores e contas na Suíça.
Não
surpreende, portanto, que se coloque como uma espécie de aplicador
mecânico da lei ao afirmar, no que se refere às prisões preventivas, que
as vem aplicando de maneira “ortodoxa”, estritamente dentro das
hipóteses legais, ainda que o instituto “prisão preventiva para forçar delações”
ainda não esteja previsto em nosso ordenamento jurídico. Moro
mostrou-se convencido de que vem agindo de forma técnica, cinzenta,
operacional e objetiva, e que as consequências de seu anti-garantismo se
restringem aos processos no qual preside e à sua cruzada contra a
corrupção. Alguém precisava trazê-lo para a realidade.
Foi
Djamila Ribeiro, filósofa e ex-Secretária-Adjunta de Direitos Humanos
do município de São Paulo, que coube este papel. Aos chiliques da turba
pró-Moro, foi ao microfone e criticou a “aplicação ortodoxa da lei”
defendida pelo juiz, recordando que a escravidão no Brasil era prevista
em lei e que esta “ortodoxia”, principalmente em matéria penal, é
responsável por gerar efeitos diretos nos abusos institucionais e no
encarceramento em massa da população negra do país, alvo preferencial de
nosso sistema repressivo. Lembrou do caso de Rafael Braga Vieira e
chamou a atenção para a generalização da arbitrariedade representada
pelo impeachment de Dilma Rousseff e pela ordem judicial que cessou as
atividades do Instituto Lula. Moro, cuja relação com a lei lembra a de
monarcas absolutistas, estava nu.
O
momento foi emblemático, pois escancarou a necessidade de trazer o juiz
ao chão para que refletisse acerca das consequências de suas decisões,
dando-lhe um choque de realidade e mostrando que o mundo vai muito além
da bolha asséptica da 13ª vara. Se hoje ele se vê como um preceptor da
flexibilização da presunção de inocência e da prisão preventiva quanto a
crimes envolvendo grandes interesses econômicos, há apenas um filete
mínimo, insignificante que separa uma legitimação ainda maior dessa
narrativa em relação à absoluta maioria dos casos onde o réu não é
Marcelo Odebrecht, mas sim Rafael Braga Vieira, Amarildo e a população
negra, pobre e moradora de áreas periféricas, os esfarrapados das
cracolândias e os descalços e mendicantes invisibilizados por sua
condição social, as mesmas pessoas que já esborrotavam nosso sistema
prisional antes mesmo de Moro dar guarida a essa tendência autoritária.
É
por razões como estas que causa espanto que o magistrado, em sua fala,
tenha se amparado na realidade das demais varas criminais mesmo diante
da profusão de dados que comprometem a substância do seu discurso
anti-iluminista enquanto pressuposto para o combate à corrupção, cujo
enfrentamento, como bem observou Cardozo, jamais pode ocorrer sob os
cadáveres de conquistas civilizatórias e garantias constitucionais.
O
mundo real foi colocado sob o nariz de Moro, gerando o incontido
descontentamento do seu fã clube, cuja existência, por sua vez, foi
também questionada por Djamila como evidência de um judiciário
partidarizado: é bom para a democracia que um juiz tenha um séquito de
adoradores fanáticos? É possível o diálogo numa conjuntura onde
arbitrariedades se assomam de forma assustadora? Certamente não. Ao ter
suas contradições expostas, foi rompido o véu das bajulações que lhe
confere a mídia comercial e lhe dada a oportunidade de refletir sobre
seus atos enquanto juiz e agente político. Se terá maturidade e espírito
republicano para fazê-lo, é outra história.
Gustavo Henrique Freire Barbosa é advogado e professor.
Disponível em: http://justificando.cartacapital.com.br/2017/05/15/o-choque-de-realidade-que-sergio-moro-tomou-em-londres/
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