Desde o início da história da comunicação a maneira como se retrata o
sexo é alvo dos mais variados níveis de ultraje. Dentre todas as
representações sexuais, no entanto, nenhuma causa tanta comoção como as
de sexo homossexual.
Essa semana o seriado American Gods trouxe às telas sua
contribuição a esse histórico – e, no que se refere à maneira como se
mostra o sexo gay na televisão, ela foi um marco: um momento
profundamente íntimo, explícito e sincero entre dois muçulmanos
não-caucasianos.
A maneira como o sexo entre homens é retratado na TV varia de acordo
com o que se está assistindo. Em representações mais ousadas – como nas
cenas explícitas de How To Get Away With Murder – a tela exala devassidão. Em outros programas progressistas, como o elogiado Please Like Me, de Josh Thomas, apresenta-se o sexo da maneira desajeitada que é tão comum aos gays jovens.
Também há as representações “boas para héteros”, é claro, em que o
gay é apresentado como alguém quase assexuado – como aconteceu em Will & Grace, ou como acontece no casal gay de Modern Family.
O terceiro episódio de American Gods, que foi ao ar esse
domingo, no entanto, parece ter sido extraído diretamente dos piores
pesadelos da extrema direita. Nele estão presentes pênis criados por
computação gráfica e um clímax bastante óbvio, com posições sexuais que
tiveram que ser refilmadas depois de reclamações na sala de edição.
(“Vocês podem voltar pra lá e descobrirem onde ficam os buracos de cada
um” foram as ordens de Bryan Fuller, produtor da série.)
Lá está exatamente o tipo de sexo que os conservadores tentam
estigmatizar com tanto afinco – um encontro aleatório entre
desconhecidos – retratado com uma intimidade que nunca antes foi exibida
na TV.
Adaptada do romance Deuses Americanos, escrito por Neil Gaiman, American Gods
acompanha a jornada de um ex-presidiário chamado Shadow Moon, alistado
para servir de guarda-costas para um deus – um dos vários que foram
criados pela fé de seus fiéis. No caminho de Moon estão divindades e
criaturas místicas, todos vivendo de maneira surpreendentemente
harmoniosa com nosso mundo.
Cada episódio apresenta uma sequência chamada “Coming to America”
(“Chegando nos Estados Unidos”, em tradução livre), que mostra como
esses seres divinos interagem com humanos. No episódio desse domingo
pudemos ver um vendedor omanense chamado Salim (Omid Abtahi), exaurido
pelos esforços de seu trabalho entediante, abrigar-se da chuva em um
táxi – que por acaso está sendo dirigido por um djinni em forma humana
(interpretado por Mousa Kraish): uma criatura sobrenatural das
mitologias árabes e islâmicas primordiais, também chamada de gênio (como
o da lâmpada). Seus olhos estão em chamas.
Os dois ficam presos no trânsito e começam a jogar conversa fora
sobre suas vidas. Quando Salim tenta acordar o djinni, que adormeceu no
banco do motorista, percebe o que o motorista realmente é ao vislumbrar
seus olhos flamejantes. Sua conversa começa a se tornar mais profunda,
conforme os dois vão descobrindo mais e mais um sobre o outro,
aprisionados no táxi. O djinni brinca que as pessoas sempre pedem para
que ele conceda desejos.
Salim passa para o djinni o número de seu quarto de hotel, e o que
vem a seguir é possivelmente a cena de sexo entre dois homens mais
explícita da televisão. A sequência, no entanto, vai além da mera
excitação; essas são cenas verdadeiramente memoráveis e emocionais.
Pode-se ver a vulnerabilidade exposta na cama de hotel, quando alguém
frágil como Salim encontra outra alma cansada – não importa se
fantástica – e um oferece para o outro algum refúgio em sua solidão.
Isso tudo entre dois gays muçulmanos, uma parte da população
estigmatizada por todos os lados, que mal aparece na televisão
comercial. Sob esse aspecto, até mesmo a escolha de elenco é inovadora.
A intimidade entre homens é algo que tanto a comunidade heterossexual
como a comunidade gay têm dificuldade em retratar com honestidade há
décadas. A comunidade heterossexual padrão despreza nossas vidas
sexuais, e trata nossos desejos como se fossem intrinsecamente
defeituosos. Na vida real isso acontece por consequência do medo que
aflorou com a crise da Aids, e se repete nas telas – como foi possível
conferir quando, recentemente, o diretor Bill Condon revelou que em sua nova versão de A bela e a fera, da Disney, haveria um momento exclusivamente gay, algo que causou reações raivosas em todo mundo conservador.
Na televisão gay apresenta-se o sexo com algo a ser esbanjado de forma temerária, como nas séries Queer As Folk ou, mais recentemente, Looking.
Trata-se do mesmo tipo de imagem hipersexualizada que alimenta as
propagandas de boates e eventos gays: retratos de gostosões sarados e
corpos musculosos, com foco na glória estética. Em nossa luta para
conquistar a liberdade de sermos sexuais, e em nossa vontade de desafiar
os papeis a que nos relega a sociedade, trocamos a sensibilidade pela
eroticidade, e preferimos a sensualidade à empatia – deixando de lado às
vezes até nossas almas.
Razão pela qual as cenas de American Gods entre Salim e o
djinni vai muito além do que se costuma oferecer; elas recolhem uma
série de tabus e os transforma numa sequência de dez minutos que,
literalmente, eleva os dois homens aos céus durante o ato sexual, e que
realiza aqueles desejos que todos temos – desejos de amor incondicional e
conforto.
“Eu não realizo desejos”, diz o djinni. Salim apenas responde: “Realiza sim”.
Quando se transmite para milhões de pessoas esse tipo de intimidade
entre dois homens, demonstra-se que as maneiras de se retratar o sexo
gay podem ser revistas. Que o sexo entre dois homens – mesmo entre dois
desconhecidos – pode ser carinhoso, amoroso e vulnerável como qualquer
outra relação sexual, no conforto de uma cama calorosa.
Disponível em: http://ladobi.uol.com.br/2017/05/american-gods-sexo-gay/
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