A professora de psicologia Bruna Suruagy, da
Universidade Presbiteriana Mackenzie, fez 42 entrevistas para sua tese
de doutorado Religião e política: ideologia e ação da ‘Bancada Evangélica’
na Câmara Federal”. Ouviu parlamentares da bancada evangélica (de 2007
a 2011), assessores e jornalistas. Continuou acompanhando o movimento
dos políticos evangélicos e o crescimento da bancada no Congresso. Em
entrevista à Pública, Bruna explica
como acontece a seleção dos candidatos dentro das igrejas, o esquema
político das principais denominações pentecostais e o que querem os
políticos evangélicos.
A entrevista é de Andrea Dip, publicada por Agência Pública.
Eis a entrevista.
Como começou sua pesquisa sobre a bancada evangélica?
Meu objetivo era entender como se processava a articulação entre os
discursos religiosos e políticos. Foi na legislatura de 2007 a 2011, que
aconteceu logo após a CPI das Sanguessugas
que apresentou alguns nomes de parlamentares evangélicos. Na ocasião, a
Igreja Universal retirou a candidatura de muitos parlamentares e o
início da legislatura de 2007 foi bastante tenso por conta desse
processo. Teve uma redução significativa da bancada. Na época eles
estavam com 45 membros.
Quando os evangélicos passaram a se organizar politicamente?
Antes da década de 1990, já existiam vários parlamentares evangélicos, mesmo antes da Constituinte
– muitos protestantes históricos e alguns pentecostais, mas não existia
uma organização institucional da campanha desse grupo específico. Eram
evangélicos que decidiam se candidatar e eventualmente recebiam o apoio
de suas igrejas. Claro que, embora independentes, havia na Câmara uma
certa articulação em nome sobretudo da manutenção dos interesses e
valores morais próprios desse grupo. Mas no início da década de 1990 a Universal
passou a protagonizar a participação política entre os evangélicos e já
começou atuando com um plano político. Ela criou uma forma de fazer
política no sentido de quase atuar como partido.
Funciona assim: A cúpula da igreja, formada por um conselho de bispos da confiança de Edir Macedo,
indica candidatos em um procedimento absolutamente verticalizado, sem a
participação da comunidade. Os critérios para a escolha desses
candidatos geralmente têm base em um certo recenseamento que se faz do
número de eleitores em cada igreja ou em cada distrito. E cada templo,
cada região, tem apenas dois candidatos, que seriam o candidato federal e
o estadual. Ela desenvolve uma racionalidade eleitoral a partir de uma
distribuição geográfica dos candidatos e a partir de uma distribuição
partidária dos candidatos. Isso mudou um pouco agora porque existe um
partido que é da Universal, o PRB, que
fica cada vez mais forte no Congresso. Na época, havia uma distribuição
por vários partidos para garantir a eleição. E são escolhidos bispos
com um carisma midiático, que conduziram programas, radialistas e mesmo
não bispos, mas figuras que se destacavam como comunicadores. Porque
existe uma interface da mídia religiosa com a igreja e a política.
Não são parlamentares que se destacam na questão litúrgica como
grandes estudiosos da Bíblia – até porque a tradição pentecostal está
mais na produção de emoções e de momentos afetivos do que de fato na
liturgia. Então os bispos e líderes religiosos que promovem essas
catarses coletivas e demonstram esse carisma institucional são
normalmente os escolhidos para candidatos. A Universal se tornou um modelo para outras igrejas porque a cada novo mandato havia um aumento significativo dos parlamentares da Universal. A Assembleia de Deus, que hoje tem a maioria dos deputados, mas que não funcionava assim, passou a ter a Universal como modelo. Não atuando da mesma forma porque o funcionamento institucional é outro. A Assembleia
é uma igreja com muitas dissidências e muitas divisões internas, por
isso não é possível estabelecer hierarquicamente os candidatos oficiais.
As igrejas têm fortes lideranças regionais e uma fragilidade do ponto
de vista nacional. A sede não tem tanta força e, por isso, eles criam
prévias eleitorais. As pessoas se apresentam voluntariamente ou são
levadas pela própria igreja e ainda há a ideia de que alguns são
indicados por Deus porque mobilizam grandes multidões, ou contagiam,
como dizia Freud, também termina sendo um critério.
Então tem uma lista, depois uma pré-seleção que passa por um conselho de pastores – isso em cada ministério [a Assembleia de Deus
é uma igreja com muitas ramificações]. É interessante que os que
pretendem se candidatar assinam um documento se comprometendo a apoiar o
candidato oficial caso ele não seja escolhido. Na Universal,
como o poder é nacional, tem uma sede hierarquizada que consegue
controlar a instituição, candidaturas independentes não acontecem. Até
porque os parlamentares que foram eleitos com esse apoio institucional e
que na segunda legislatura tentaram se candidatar de forma independente
não ganharam as eleições. A vitória está totalmente atrelada à
instituição. Existe uma estratégia bem construída porque eles preveem
uma fidelidade de 20%, que não é alta. A Assembleia de Deus
está tentando construir essa fidelidade e essa unidade política que são
extremamente difíceis devido a essa fragmentação interna. E faz as
prévias nacionais com a participação de pastores e obreiros, novamente
sem a participação da comunidade – não é um processo transparente. No
Congresso então você tem essas lideranças religiosas que demonstram uma
maior habilidade na interlocução com o sujeito, um carisma que gera
catarse, contágio, impacto afetivo e as lideranças que foram
identificadas e constituídas pela igreja como nomes importantes para
ocupar o cenário nacional.
A bancada evangélica é homogênea?
Na bancada evangélica no Congresso e também nas bancadas estaduais e
municipais, você tem uma diversidade tão grande de integrantes que não
dá pra pensar esse grupo como um bloco coeso, homogêneo. Muitos vêm
representando a Assembleia de Deus e a Universal e algumas neopentecostais que tentam imitar essa estratégia, como, por exemplo, Sara Nossa Terra, de onde saiu o Cunha.
Você tem muitos parlamentares das chamadas protestantes históricas
[batistas, presbiterianas, luteranas, metodistas] que têm uma
candidatura totalmente independente porque não há um plano político já
estabelecido dentro das igrejas. Eles simplesmente são evangélicos, mas a
trajetória política geralmente não se dá dentro da igreja e não há uma
vinculação direta ao exercício da fé. Esses parlamentares gostam de
dizer que separam bem a fé no âmbito privado da política na esfera
pública. Mas é uma distinção contraditória porque eles tomam, sim, como
referência algumas crenças e valores para orientar suas práticas
parlamentares e votações como quando se discute aborto e homofobia, por exemplo.
Lembro que um parlamentar me disse na época em que fiz as entrevistas que não há como fazer uma separação absoluta porque um marxista,
por exemplo, vai acabar se submetendo a essa orientação de consciência
na hora de atuar. E que ele, como cristão, se submete a essa orientação
de consciência. Mas que vota orientado pela consciência, e não por uma
filiação religiosa ou institucional específica. Então, nas protestantes
históricas, não há essa presença ostensiva da instituição. A
pentecostal, que traz consigo a teologia da prosperidade, que tem a
presença do neoliberalismo, do conservadorismo
institucional e moral, já tem essa coisa de práticas políticas
fisiológicas e clientelistas. É um grupo heterogêneo, mas os
parlamentares pentecostais têm uma posição mais orientada pelas
instituições religiosas. O mandato não é do parlamentar; é pouco do
partido, é mais da instituição.
Isso já é combinado com relação aos temas que eles vão defender? “Te ponho lá mas você me garante que o aborto não sai!”
No começo, a gente tem a impressão de que a igreja interfere totalmente em tudo. Mas o Edir Macedo,
por exemplo, é um líder muito complexo. Alguns parlamentares me
contaram que ele determinou que eles precisavam ter uma formação
política. Então eles frequentam cursos de formação política na
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Alguns outros cursos são
dirigidos para bispos e parlamentares da Igreja Universal.
Eles disseram isso explicando que não iam totalmente despreparados. “A
gente tem uma formação, antes de vir tenta entender e conhecer.” O
grande paradoxo da Universal é que no período eleitoral
há uma mistura entre religião e política que é clara, não é velada. Ela
se dá dentro do templo, o templo vira palco, o púlpito vira palanque
político e as discussões pragmáticas sobre as eleições acontecem no
púlpito. Tem toda uma pedagogia eleitoral que acontece dentro do templo.
E no Parlamento eles tentam separar o discurso político do discurso
religioso. Na verdade, isso começou a ser exigido pela cúpula da Universal
depois de aparecerem escândalos e irregularidades envolvendo
parlamentares evangélicos. Na época, quem era o grande líder político
era o Bispo Rodrigues, que era o braço-direito do Edir Macedo. Depois dos escândalos do caso Waldomiro e do mensalão
[que o levou à condenação a seis anos e três meses de prisão por
lavagem de dinheiro], ele renunciou em 2005, perdeu o título de bispo e
retiraram todas as candidaturas dos parlamentares justamente para não
arranhar a imagem da igreja. Dizem que o Edir Macedo tem o privilégio de não participar desses momentos.
Tem até um líder de outra igreja, o Robson Rodovalho, que é da Sara Nossa Terra, que se candidatou e se elegeu, que dizia que era muito difícil para ele como líder estar ali. Que para o Edir Macedo
era muito mais fácil porque, se algum parlamentar fosse citado ou
cometesse alguma irregularidade, ele simplesmente diria que não sabia de
nada. No caso dele, a igreja correria o risco de se enfraquecer. O que
me chamou atenção quando fiz as entrevistas foi que nenhum tinha mais o
título de bispo. Com os outros, eu começava sem perguntar nada sobre a
religião, e eles mesmos em algum momento entravam nessa parte da fé. Já
os parlamentares da Universal não falavam de Deus, era
um discurso totalmente parlamentar. Não mais progressista, mas eles
queriam separar os processos. E, segundo um deles, o próprio Edir Macedo
orienta os parlamentares a seguir as orientações do partido nas
votações exatamente para que eles não tenham divergências e
eventualmente percam as verbas públicas destinadas às emendas
parlamentares.
Então qual é o grande interesse da Universal?
Quando as temáticas são institucionais, relacionadas a isenção
fiscal, alvará de funcionamentos das igrejas, doações de terrenos,
distribuição de concessão de rádios e TV, a transformação de eventos
evangélicos em eventos culturais pra receber financiamento da Lei Rouanet,
questões relacionadas à lei do silêncio. Aí eles atuam de forma
articulada, como um bloco, convergem em nome desses interesses, como em
relação a questões morais. Com algumas diferenças, mas muitas
aproximações. Alguns cargos dos gabinetes têm que ficar à disposição da
igreja, que indica quem vai ocupar. É uma igreja pragmática, tem muito
mais interesses institucionais do que morais. Se for analisar do ponto
de vista moral, é muito mais flexível e aberta do que igrejas como a Assembleia de Deus.
Essa, sim, tem um discurso de natureza moral além do institucional, de
manutenção da ordem. Quando há convergência nesses temas institucionais e
morais, a bancada se articula. É importante salientar que poucas vezes
você verifica a articulação desse bloco de forma totalmente coesa. Eles
excluem a política nessa discussão de pauta dos parlamentares
evangélicos para criar uma falsa aparência de unidade. Muitas vezes a
imprensa anuncia a bancada evangélica como um ser único, e para a bancada é muito interessante aparecer assim como um corpo único, um bloco suprapartidário…
E dizer “a bancada” convenientemente não dá nomes, né?
Exatamente, uma entidade com um poder e as divisões não aparecem. Mas
no discurso desses parlamentares que estão à frente e que normalmente
são os das igrejas pentecostais apresentam a bancada dessa forma. “A
bancada decidiu”.
Eles se reúnem?
A mídia faz parecer que sim, mas não. Porque eles estão filiados a
partidos e a movimentação na Câmara se dá por partidos. Eles ficam muito
indignados com a falta de poder que têm, porque têm poder na igreja,
mas a divisão por partido privilegia o alto clero. Você tem alguns
líderes partidários que definem as orientações e eles tem que seguir ou
são punidos de alguma forma, principalmente não tendo as verbas públicas
para realização das emendas parlamentares. “Estou aqui mas não tenho
muito poder de decisão, tenho sempre que obedecer partido, não tenho
autonomia” eram reclamações constantes. Estou falando principalmente
desse grupo pentecostal, que é o mais barulhento e que fala pela
bancada, principalmente os assembleianos [da Assembleia de Deus]. Eles têm o Feliciano, o Cunha, o João Campos, que é o líder da Frente. Engraçado que na época em que eu fiz a pesquisa o Eduardo Cunha era superinexpressivo como integrante da bancada evangélica.
Mas eles se reúnem muito pouco, às vezes no dia do culto, quarta de
manhã, fazem o ritual religioso e têm alguma discussão sobre projetos de
lei e discussão de pauta.
O interessante é a atuação dos assessores. Eles acompanham os
projetos diariamente, em uma tentativa de mapeamento dos projetos em
tramitação e seleção dos mais importantes, projetos “anticristãos”.
Você também tem uma distribuição dos parlamentares pelas comissões que
eles consideram mais importantes como a de Seguridade Social, de
Direitos Humanos, de Constituição Justiça e Cidadania. Aí eles vão
tentando barrar a tramitação dos projetos. Alguns mais ativos tentam
conseguir posto de presidente ou relator. Você tem uma estratégia bem
elaborada, mas não conta com uma participação tão ativa quanto parece. É
uma bancada barulhenta, intempestiva, aguerrida,
beligerante, e esse barulho cria a impressão de volume, de quantidade de
poder, de coesão. Acho que também é uma estratégia de parecer maior do
que é pelo grito. Que é o que acontece nas próprias igrejas. As igrejas
têm esse discurso de guerra, de combate. O exército da Universal
que deixou todo mundo perplexo, mas isso sempre aconteceu, é o discurso
de todas as igrejas. A convocação nas igrejas tem todo esse ritual
bélico mesmo. E o soldado é aquele que está ali para obedecer e para
combater. A bancada usa isso também. Você valoriza o tamanho do
adversário para convocar os integrantes. Mas eu ouvi muitos relatos de
parlamentares que estavam acompanhando votações e que tinham poucos para
impedir a continuação da votação. Aí o assessor ligava para a lista da FPE:
“Esse é pró-vida, vou chamar”. Aí liga: “Deputado, vem aqui, pede
vista”. Eles têm uma assessoria que conhece os procedimentos regimentais
e que orienta os parlamentares que muitas vezes não sabem nem o que
está acontecendo ali. Tem uma disponibilidade em participar quando
convocados e uma entrega total de alguns pela causa.
Qual é a missão da bancada evangélica nesse sentido?
Ao meu ver, é de preservação, não de criação. Eles não querem criar
projetos, querem manter tudo intacto. É uma atuação ideológica, se
posicionar contra projetos inovadores, transformadores. Agora que houve
algumas críticas, eles estão tentando elaborar projetos mais numa
perspectiva de manutenção de uma ordem do que de transformação. É uma
ação mais combativa, defender uma ordem social hegemônica. Os projetos
que estão surgindo são pra fazer frente a projetos que estão em
andamento, por exemplo, com relação a projetos do grupo LGBT. Criminalização da homofobia – criminalização da heterofobia.
São projetos estapafúrdios. Aborto, drogas, criminalização da
homofobia, casamento entre pessoas do mesmo sexo, são contra a discussão
de gênero,
a favor do ensino religioso, contra todos os projetos pedagógicos e
educativos que combatem qualquer tipo de discriminação de gênero,
sexual…
Você acha que é uma causa legítima? Eles acreditam mesmo nisso?
Antes do Eduardo Cunha, eles estavam caminhando para um discurso mais coerente com aquele espaço. No fim de 1980, os discursos condenavam o aborto
e justificavam trazendo passagens bíblicas, dizendo que Deus não
permite. Depois a bancada amadureceu um pouco nesse sentido, entendeu
que não dava pra usar esse discurso porque não tinha coerência e
começaram a argumentar de forma mais legislativa, aderir a um discurso
que tinha mais ressonância naquele contexto. Toda moral é um sistema de
controle. A sexualidade é um tema central na igreja com um discurso
muito forte constante porque a sexualidade de alguma forma expressa
liberdade. Então, você tem um sistema normativo de controle. É genuíno
no sentido de que eles acreditam nessas coisas, mas virou, sim, um jogo
de poder com os movimentos LGBT, por exemplo. O aborto é
um tema controverso. Alguns acham que o aborto deveria ser crime
hediondo, que é um assassinato. Mas outros, como os da Universal,
acham que o aborto é uma possibilidade. É uma defesa genuína de
posições morais que eles querem transferir para a realidade social. É
legítimo que um grupo pense assim. O que não é legítimo é trazer esse
discurso para a esfera pública de um Estado laico.
Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/553940-afinal-o-que-os-evangelicos-querem-da-politica
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