Com a estreia do longa-metragem que produziu, “A Glória e a Graça”, a
atriz reflete sobre representatividade trans, preconceitos de
patrocinadores e os novos tipos de família.
“Só ele, maluco, para pensar em mim para interpretar a personagem da
travesti”, afirma, feliz, a atriz Carolina Ferraz. Ela se refere ao
roteirista Mikael Albuquerque, autor do roteiro do filme A glória e a graça,
que chega hoje aos cinemas. Nele, Ferraz dá vida à protagonista Glória,
uma travesti culta e bem-sucedida, dona de um restaurante, que vê a
vida que construiu se desestabilizar quando sua irmã, Graça, a procura
depois de 15 anos. Acometida por um aneurisma, Graça quer que Glória,
que não vê desde quando ainda se apresentava como homem, cuide de seus
dois filhos. “É uma personagem belíssima, muito complexa, muito humana. O
fato de ser uma travesti só a engrandece”, comemora.
“O ator é a soma dos personagens que consegue fazer, não daqueles que tem competência
para fazer”, continua a atriz, que teve que tomar as rédeas da produção
do filme para conseguir escapar dos papéis que em geral lhe oferecem.
“Talvez por minha aparência, pelos papéis que já vivi na televisão,
sempre me chamam para um mesmo tipo de papel. Eu na verdade sou bastante
subversiva, como artista quero ter a oportunidade de fazer todo tipo de
personagem. Mas tenho total consciência de que, seu eu não fosse a
produtora do filme, jamais um produtor de elenco pensaria em mim para
fazer o papel de uma travesti”.
Carolina Ferraz fala sobre "A Glória e a Graça": "travestis são mulheres como todas nós"
https://www.youtube.com/watch?v=c8PSGOzSoqc
A glória e a graça percorreu um longo caminho até tornar-se
realidade: já se passaram nove anos desde que Ferraz apaixonou-se por
essa história e adquiriu seus direitos. “Ninguém queria se envolver com
nosso projeto, por causa da personagem travesti”, lamenta. “Esse mínimo
de aceitação que existe hoje é algo muito recente. Por duas vezes
executivos me disseram: ‘Carolina, você é tão bonita, tão bem sucedida,
não faz uma coisa dessa, não estraga sua carreira, não joga fora sua
reputação interpretando uma travesti’.” A equipe do longa passou anos
amealhando dinheiro em pequenas fontes até que, já na reta final,
conseguiu o apoio do Canal Brasil e da Globo Filmes para que ele saísse
do papel.
Ferraz aproveitou os anos de batalha para mergulhar no mundo das
travestis. “Entrevistei 62 travestis, entre Rio e São Paulo. Interpretar
alguém com uma identidade de gênero diferente da sua é um desafio!
Houve um momento que eu falei para o Flávio [Tambellini, diretor do filme]:
‘agora eu enlouqueci, descobri que existem 54 identidades de gênero
catalogadas, olha que pluralidade!”. Ao longo dos anos Ferraz também
contou com o apoio de sua amiga Marjorie Machi, travesti que também
participa de A glória e a graça. “Ela foi uma presença
constante, ela sempre me colocava a par do que estava acontecendo. Uma
mulher de uma competência e uma inteligência gigantes, é uma pena que
ela tenha falecido antes do filme ser lançado.”
A glória e a graça chega aos cinemas sob a pressão do manifesto Representatividade Trans Já,
divulgado por atores e atrizes transgênero que exigem que ao menos
personagens trans sejam dados a artistas trans. “É um movimento da maior
legitimidade, corretíssimo”, frisa Ferraz. “Nós vivemos numa sociedade
que não dá à população trans sequer o direito de representarem a si
mesmos! Temos que reconhecer, sim, que há um processo de invisibilização
de um grupo de pessoas que já é tão marginalizado todos os dias. Eu
gostaria muito que houvesse oportunidades para todos, que Carol Marra [atriz trans, também parte do elenco do filme] fosse chamada para fazer a mocinha da novela. Daí esse manifesto não seria sequer necessário.”
“Envelhecer está me fazendo bem, acho que estou no meu melhor
momento”, celebra. Sua meta, agora, é encontrar cada vez mais papéis de
mulheres fascinantes como Glória. “Seja uma lésbica, uma executiva, uma
mãe de cinco filhos adotivos, eu quero descobrir personagens que tenham
esse valor humano e lhes dar voz, esse é meu objetivo.” E que ninguém
ouse questionar que Glória é mulher: “somos todas iguais, somos todas
mulheres! Essa é uma das questões principais do filme. Uma travesti tem
tanta competência para ser mãe quanto qualquer outra mulher. O que
determina a capacidade de cuidar de uma família é o amor, o cuidado, é
assumir o compromisso de gerenciar o crescimento de outro ser humano. E
isso não depende do sexo que é designado quando se nasce.”
Disponível em: http://ladobi.uol.com.br/2017/03/carolina-ferraz-gloria-graca/
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