Os corpos de sete jovens da Cidade de Deus, no Rio
de Janeiro, foram encontrados em um matagal, neste domingo (20), após
uma ação policial na comunidade que começou um dia antes. Não se sabe
ainda quem foram os responsáveis pela morte dos jovens, que estariam
ligados ao tráfico, mas moradores acusam a polícia militar.
Durante a operação, um helicóptero caiu durante a operação, matando quatro policiais. Segundo o secretário de Segurança Pública do Rio, Roberto Sá, informações preliminares indicam que nem os PMs, nem o helicóptero foram atingido por armas de fogo.
Ou
seja, ao menos temos 11 mortos em mais um capítulo da estúpida guerra
contra as drogas. Em meio ao tiroteio entre policiais e grupos de
criminosos, a população ficou espremida em um campo de batalha urbano
que não deixa nada a dever a conflitos deflagrados em outras partes do
mundo, como na Síria. Com o agravante de que, aqui, não se busca criar
um Estado independente.
Parte
do esgoto que corre nas redes sociais já culpa a “turma dos direitos
humanos” pela queda do helicóptero – fazendo valer a máxima da
pós-verdade: ''verdade'' é tudo aquilo com a qual um tosco concorda e
''mentira'' é tudo aquilo com a qual discorda. Mas também por ''manchar a
imagem do Rio lá fora'' – como se o Estado precisasse de ajuda para
isso.
Muita gente torce para que a contagem de corpos seja ainda
maior. Ao mesmo tempo, uma parte da imprensa (e não estou falando dos
programas sensacionalistas espreme-que-sai-sangue) parece vibrar a cada
pessoa abatida na periferia, independentemente de quem quer que seja,
como se fosse um alívio para a plateia formada por
autointitulados ''homens e mulheres de bem''. Leitores afirmam que “isso
é guerra e, na guerra, abre-se exceções aos direitos civis”, tudo em
defesa de uma breve e discutível sensação de segurança.
De acordo com nota divulgada pela Anistia Internacional,
em 2015, foram pelo menos 1.250 mortos vítimas de crimes violentos como
homicídio e latrocínio e, pelo menos, 307 pessoas mortos em operações
policiais na cidade. Em ambos os casos, as vítimas são em sua maioria
jovens, negros, do sexo masculino.
As batalhas do tráfico sempre
aconteceram longe dos olhos da classe média e alta da mídia, uma vez que
a imensa maioria dos corpos contabilizados sempre é desses jovens,
negros, pobres, que se matam na conquista de territórios para venda de
drogas, pelas leis do tráfico e pelas mãos da polícia e das milícias. Os
mais ricos sentem a violência, mas o que chega neles não é nem de perto
o que os mais pobres são obrigados a viver no dia a dia. Mesmo no pau
que está comendo hoje no Rio, sabemos que a maioria dos mortos não é de
rico da orla, da Lagoa, da Barra ou do Cosme Velho.
Considerando
que policiais, comunidade e traficantes são de uma mesma origem social
e, não raro, da mesma cor de pele, é uma batalha interna. Mortos pelos
quais pouca gente fora das comunidades irá prantear.
Drogas matam.
Mas os óbitos por overdose ou em decorrência de crimes cometidos sob a
influência de entorpecentes ilegais são a minoria dos casos. Registros
policiais mostram que há mais homicídios relacionados ao consumo
excessivo de álcool – que é uma droga permitida por lei e estimulada
pela TV – do que a qualquer outra.
A forma como o tráfico se
organizou e a política estúpida adotada pelo poder público para
combatê-lo estão entre as principais razões desse conflito armado
organizado.
No capitalismo, toda a expansão de mercado é
conflituosa. Quando se abre uma loja em um bairro, os que lá já estavam
estabelecidos podem se sentir prejudicados. Ainda mais quando os
forasteiros trazem produtos melhores e a preços mais baixos. Se a
concorrência é agressiva e chega a tal ponto que a convivência pacífica
torna-se insustentável, pode-se apelar à Justiça, que decidirá quem tem
razão na disputa.
Mas o que fazer quando se vive em um sistema
ilegal, condenado pela própria Justiça? A solução é ter o maior poder
bélico possível para fazer valer o seu ponto de vista sobre os demais,
sobre a polícia, sobre os moradores de determinada comunidade. É
necessário controlar – por bem ou por mal – um território. Uma das
garantias que o traficante pode dar é ter um território consolidado,
seguro para estocar a mercadoria e vender à sua freguesia. Quanto mais
território um grupo possui, mais pontos de venda terá.
Mais cedo
ou mais tarde, e gostem vocês ou não, haverá uma paulatina
descriminalização e regulamentação do comércio e do uso de psicoativos,
com, é claro, a necessária e prévia introdução de um sistema de
informação e conscientização sobre o seu uso.
Por uma razão
simples: o negócio formal dá dinheiro. E muito. Nos Estados do Colorado e
na capital Washington DC, por exemplo, os Estados Unidos já haviam
legalizado a maconha – tal qual nosso vizinho Uruguai. E a violência não
aumentou, pelo contrário. Agora a Califórnia, o maior PIB dos Estados
Unidos e centro criativo tecnológico do mundo, também a legalizou em
plebiscito.
Outros países discutem o mesmo, incluindo substâncias
mais fortes. Sabem que a Guerra às Drogas falhou, servindo apenas para
controle geopolítico e para fortalecer grupos de poder locais e o
tráfico de armas. Por aqui, a Justiça ainda discute qual o tamanho do
porte de maconha que pode dar cadeia.
E se a maconha fosse
legalizada aqui também? E se fossemos além e regulamentássemos o consumo
de outras drogas, reduzindo assim o comércio ilegal e a necessidade de
armar-se até os dentes disputar territórios? E se encarássemos a
dependência química como questão de saúde pública e não criminal?
Teríamos uma redução significativa da guerra de facções criminosas entre
si, entre facções criminosas e a polícia (tanto a parte honesta quanto a
banda podre) ou entre a polícia honesta e as milícias.
Mas as
classes mais altas perderiam um excelente instrumento de controle das
classes mais baixas. Nesse caso, qual seria a justificativa para entrar e
botar ordem na comunidade? De limpar tudo para garantir a alegria da
especulação imobiliária, que sobe o morro no Rio?
Mais do que uma
escolha pelo crime, o tráfico pode ser uma escolha pelo emprego e pelo
reconhecimento social. Um trabalho ilegal e de extremo risco, mas em que
o dinheiro entra de forma rápida. Dessa forma, pode ajudar a família,
melhorar de vida, dar vazão às suas aspirações de consumo – pois não são
apenas os jovens de classe média que querem o tênis novo que saiu na
TV. Ganhar respeito de um grupo, se impor contra a violência da polícia.
E uma vez dentro desse sistema, terá que agir sob suas normas. Matando e
morrendo, em uma batalha em que, para cada baixa, fica uma família.
Precisamos
garantir que esses jovens possam construir outros caminhos. Enquanto
isso não acontecer, somos nós que os empurramos para o crime
diariamente.
Já faz tempo que o Rio optou pelo caminho mais fácil
do terrorismo de Estado ao invés de buscar mudanças estruturais – como
garantir qualidade de vida à população e essas perspectivas para os mais
jovens, para além de despejar força policial dia e noite. Foi assim
para viabilizar os Jogos Panamericanos, a Copa do Mundo e as Olimpíadas.
A crise de governabilidade pela qual passa o Estado, aliado à crise
econômica, apenas aprofunda esse quadro.
Nesse contexto, muita
gente tem orgasmos múltiplos quando vê corpos de jovens ligados ao
tráfico ou não sangrando aqui e ali. Ou que amam qualquer tipo de
execução sumária de pobre, sejam as feitas legalmente e
''informalmente'' pela mão do próprio do próprio Estado (ao caçar
traficantes em morros cariocas ou na periferia da capital paulista),
sejam as feitas pelas mãos da população (ao linchar suspeitos de crimes
por turbas enfurecidas e idiotizadas).
Ninguém está defendendo o
tráfico, muito menos traficantes. O que está em jogo aqui é que tipo de
Estado e de sociedade que estamos nos tornando ao defendermos pena de
morte de jovens negros e pobres ou mesmo a Justiça com as próprias mãos.
Do que estamos abrindo mão com isso?
Enfim, como já leram várias
vezes por aqui, de vez em quando não sei de quem tenho mais medo: dos
bandidos, dos ''mocinhos'' ou de nós mesmos.
Sobre o autor
Leonardo Sakamoto
É
jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo.
Cobriu conflitos armados em diversos países e o desrespeito aos
direitos humanos no Brasil. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi
pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova
York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É
diretor da ONG Repórter Brasil e conselheiro do Fundo das Nações Unidas
para Formas Contemporâneas de Escravidão.
Disponível em: http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2016/11/21/as-mortes-na-cidade-de-deus-o-medo-de-bandidos-da-policia-e-de-nos-mesmos/?cmpid=fb-uolnot
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