Por: Contardo Calligaris
Fonte: FOLHA
Você é acusado de um crime que não cometeu e está na prisão na espera do processo. Há uma alternativa.
Você pode persistir em se declarar
inocente, como de fato você é; neste caso, você será julgado, correndo o
risco de perder o processo –e, com ele, o que você mais almeja: sua
liberdade.
Ou, então, você pode se declarar
culpado, admitindo um crime que não cometeu; neste caso, você será
liberado porque o Ministério Público, em troca de sua "confissão",
garante que sua pena será igual ao tempo que você já passou na prisão
até agora.
Não é um dilema fácil. Talvez eu
escolhesse o segundo caminho, injusto, inglório e aparentemente
vantajoso, desistindo de proclamar minha inocência para sair da prisão
já.
De qualquer forma, admiro quem optar por proclamar sua inocência, por arriscada que seja essa escolha.
Uma tocante reportagem de Chico Felitti, na Folha de 30/7, apresenta a história de Neon Cunha, 44, transexual.
Cunha, que se sente menina desde os
dois anos e meio de idade, pede hoje a retificação de seu registro civil
–ou seja, a mudança do nome de batismo e do gênero. A decisão jurídica é
dificultada por duas razões.
Primeiro, Cunha não planeja amputar
seu sexo anatômico masculino, que não a incomoda. Isso não constitui um
caso raro, mas é uma escolha que pode confundir os magistrados.
Segundo, e mais complexo, Cunha
recusa o diagnóstico de "disforia de gênero": ela não quer "passar por
um processo de patologização". Ela declara: "Eu não tenho essa disforia,
nunca tive. Uma mulher pode nascer com um falo e não se incomodar com
isso".
Em tese, o diagnóstico de disforia
de gênero é uma condição para a Justiça autorizar a retificação do
registro civil. Ou seja, para mudar de identidade, é necessário ser
diagnosticado como portador de um transtorno que é a tal "disforia de
gênero".
A definição da disforia de gênero
(302.85 no DSM V, e F64.1 na Classificação Internacional das Doenças
–CID) implica em 1) uma incongruência entre o sexo anatômico do
indivíduo e o gênero ao qual ele sente pertencer, 2) angústia e
desconforto clinicamente significativos, por causa dessa incongruência.
O DSM V, por exemplo, reconhece que,
em grande parte, angústia e desconforto têm sua origem nas dificuldades
de viver socialmente quando sexo e gênero discordam. Mas, de qualquer
forma, por mais que o sofrimento seja causado pela rejeição social, a
"disforia de gênero" está na lista dos transtornos mentais.
Agora, Neon Cunha poderia dizer
"tudo bem, estou doente, mudem minha identidade", mas ela quer poder ser
quem ela é, com registro de identidade feminino, mas sem o carimbo de
um desvio patológico. Ela se recusa a deixar que sua condição seja
reconhecida como um transtorno listado no DSM ou na CID.
Neon resiste contra a versão mais
opressiva do poder contemporâneo: o biopoder, que, no caso, estabelece
normas e molda comportamentos invocando "apenas" a pretensa neutralidade
da "ciência".
Ora, "The Lancet Psychiatry" acaba
de publicar uma pesquisa de campo, de Rebeca Robles e outros, em que os
autores se perguntam "se existem provas para sustentar a classificação
da incongruência de gênero como uma condição psiquiátrica". Muito parece
indicar "que a aflição e a disfunção que numerosos participantes da
pesquisa lembram ter experimentado na sua primeira adolescência eram
associadas com suas lembranças de rejeição social e violência naquele
período da vida, muito mais do que com fatores diretamente relacionados
com a incongruência de gênero".
A conclusão da pesquisa é que as
dificuldades dos indivíduos transgêneros deveriam ser excluídas da lista
dos transtornos mentais e de comportamento.
Sem isso, os indivíduos transgêneros
continuarão sofrendo um duplo estigma: o de ser transgênero e o de ter
um diagnóstico de transtorno mental. A conclusão dos autores responde à
demanda da maioria dos clínicos, para quem as identidades de gênero dos
transgêneros não são psicopatológicas, a não ser pelos efeitos de sua
exclusão social.
Seria maravilhoso se os magistrados
que examinam o pedido de Neon lessem a pesquisa de Robles e, no mesmo
número de "The Lancet Psychiatry", o comentário de Griet De Cuypere e
Sam Winter (Hospital Universitário de Gante, Bélgica, e da Universidade
Curtin, de Perth, Austrália).
Disponível em: http://www.homorrealidade.com.br/search?updated-max=2016-08-15T12:48:00-03:00&max-results=10
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