A prisão de Eduardo Cunha pode ter um efeito colateral benéfico aos trabalhadores do país.
Qualquer
morsa em coma sabe que o ex-presidente da Câmara dos Deputados guarda
material suficiente para derrubar a República pelo menos por duas vezes.
Se o seu ódio fermentar mais do que os restos de comida usados para
fazer maria-louca (a pinga da cadeia) e ele resolver soltar o gogó, e a
oferta for aceita pelos procuradores de Curitiba, claro, a Reforma da
Previdência Social, do jeito em que está proposta pelo governo Michel
Temer, não sai.
Seja porque o comando do governo federal,
patrocinador da mudança, seria decapitado, seja porque uma série de
parlamentares ligados a ele também iriam ao cadafalso.
É claro que
o Brasil precisa alterar os parâmetros de sua Previdência Social e
mesmo atualizar a CLT. O país está mais velho e isso deve ser levado em
consideração para os que, agora, ingresso no mercado de trabalho. Mas
aumentar a idade mínima para 65 anos, como propôs Michel Temer,
ignorando que há milhões de trabalhadores braçais que começaram cedo na
labuta e, exauridos de força, mal estão chegando vivos a essa idade, é
um caso de delinquência política e social.
Você que está, neste
momento, fazendo beicinho para o que acabei de escrever, provavelmente
não costuma carregar sacos de cimento nas costas durante toda uma
jornada de trabalho, cortar mais de 12 toneladas de cana de açúcar
diariamente, queimar-se ao produzir carradas de carvão vegetal para
abastecer siderúrgicas e limpar pastos ou colher frutas sob um sol
escaldante. Aos 14 anos, muitos desses trabalhadores já estavam na luta e
nem sempre apenas como aprendizes, como manda a lei. Às vezes,
começaram no batente até antes, aos 12, dez ou menos. Afinal, no Brasil,
acredita-se na aberração ''trabalho molda o caráter da criança'' que
tem seu jeitão de ''só o trabalho liberta''.
O ideal seria, antes
de fazer uma Reforma da Previdência Social, garantirmos a qualidade do
trabalho, melhorando o salário e a formação de quem vende sua força
física, proporcionando a eles e elas qualidade de vida – seja através do
desenvolvimento da tecnologia, seja através da adoção de limites mais
rigorosos para a exploração do trabalho. O que tende a aumentar, é
claro, a produtividade.
Mas como isso está longe de acontecer
(basta ver a ''vida'' dos empregados de frigoríficos em todo o país, que
são aposentados por invalidez aos 30 e poucos anos por sequelas
deixadas pelo serviço), a discussão talvez passe por um regime
diferenciado para determinadas categorias. E, mesmo assim, não será
simples, pois em algumas delas os profissionais são levados aos limites e
aposentados não por danos físicos, mas psicológicos, chegando aos 60
sem condições de desfrutar o merecido descanso.
Temer não foi
colocado onde está por conta de sua capacidade de proferir oportunas
mesóclises e poemas de qualidade duvidosa. Mas pela expectativa de parte
da classe política de que ele, de algum forma, consiga impor um freio à
operação Lava Jato. E pela expectativa de Patos Amarelos de que seu
governo reduza o tamanho do Estado e aumente a competitividade, passando
por cima da qualidade de vida dos brasileiros se necessário for. O que
significa impor tetos ao crescimento do investimento em educação e
saúde, defenestrar direitos trabalhistas e enfiar goela abaixo mudanças
na aposentadoria que ferram com a vida de quem já foi ferrado pela vida.
Se
Cunha decidir falar tudo o que sabe e os procuradores da Lava Jato
resolverem provar que, em sua opinião, corrupção é ruim em todo o lugar,
seja ela petista, tucana ou peemedebista, então a reforma a toque de
caixa vai para o beleléu. E teremos a chance de fazer uma discussão
aprofundada e com tempo sobre a Previdência Social, mantendo-a como
instrumento de efetivação de direitos fundamentais.
Estranha
conjuntura essa em que Eduardo Cunha, aparentemente, tem mais força de
evitar uma catástrofe na Previdência do que os próprios trabalhadores…
***
Em
tempo: Falando em conjuntura… Considerado um excelente analista, Cunha
não pode ficar #xatiado com o fato de ter sido abandonado por quem ele
ajudou a financiar no Parlamento, muito menos por aqueles que ajudou a
colocar no comando do governo federal. Cumpriu a tarefa suja,
virou estorvo. Achar o oposto, é de uma inocência atroz.
Sobre o autor
Leonardo Sakamoto
É
jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo.
Cobriu conflitos armados em diversos países e o desrespeito aos
direitos humanos no Brasil. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi
pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova
York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É
diretor da ONG Repórter Brasil e conselheiro do Fundo das Nações Unidas
para Formas Contemporâneas de Escravidão.
Disponível em: http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2016/10/20/uma-delacao-de-cunha-pode-impedir-um-golpe-nos-direitos-dos-trabalhadores/
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