Mais um exemplo da onda reacionária que toma o Congresso, o projeto de
lei foi aprovado, sem discussão, na Comissão de Ciência e Tecnologia da
Câmara.
Ilustração de Daniel Chastinet para a campanha Mídia sem Violação de Direitos
Por Helena Martins*
Em cerca de três minutos, a Comissão de Ciência e Tecnologia,
Comunicação e Informática (CCTCI) da Câmara dos Deputados aprovou, em
sua última sessão, o Projeto de Lei (PL) 7.553/2014, que pode significar um grande retrocesso no campo dos direitos humanos no Brasil.
Isso porque a proposta objetiva alterar o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a fim de permitir a divulgação de imagem de criança e adolescente a quem se atribua ato infracional.
Relator do projeto, o deputado Cláudio Cajado (DEM/BA) defendeu, em
parecer, que a exposição das imagens, inclusive de suspeitos, pode
facilitar “a detenção e punição do menor infrator”.
Em substitutivo apresentado à CCTCI, ele acrescentou apenas que a
mudança legislativa deverá ser gradual, sendo a exposição permitida para
casos envolvendo jovens com pelo menos 14 anos e que tenham se
envolvido em crimes com pena privativa de liberdade igual ou superior a
dois anos.
O deputado argumenta que a exposição de imagens de câmeras, por
exemplo, pode garantir maior segurança da comunidade, pois a proibição
estaria impedindo a apuração dos fatos.
A argumentação obviamente é uma falácia populista.A vedação à
exposição pela imprensa em nada impede que as imagens sejam utilizadas
em procedimentos de investigação pelos órgãos competentes.
O que a regra atual impede, sim, é o desrespeito à presunção de
inocência, princípio garantido em nossa Constituição, bem como a
condenação midiática.
Hoje, o ECA estabelece como infração administrativa a exibição, total
ou parcial, de fotografia de criança ou adolescente suspeito de
envolvimento em ato infracional.
A identificação por meio de referência a nome, apelido, filiação,
parentesco, residência e, inclusive, iniciais do nome e sobrenome,
também é vedada.Vale ressaltar que o direito à imagem é garantido a toda
a população brasileira.
Nas situações em questão, ela se reveste de maior legitimidade, tendo
em vista que toda a legislação produzida no Brasil sobre crianças e
adolescentes tem especial preocupação com a proteção desses segmentos,
dada sua condição peculiar de desenvolvimento, a proteção integral e a
busca por se considerar, sempre, o melhor interesse deles.
Fruto de um processo de amplo debate, participação da sociedade civil
e avanços na compreensão sobre os direitos, o ECA não apenas protege a
personalidade; sua redação busca evitar que as imagens sirvam para
reforçar estigmas como o de marginal, historicamente presentes nas
narrativas sobre o universo infanto-juvenil.
Não à toa, esse mesmo instrumento tem sido frequentemente atacado ou
desrespeitado por setores conservadores, inclusive da própria mídia,
peça fundamental do jogo de criminalização e exclusão de determinados
setores, bem como de legitimação de propostas regressivas no campo dos
direitos humanos.
Um exemplo é elucidativo. Em 2015, na semana em que o Congresso
Nacional discutia a proposta de redução da maioridade penal, a revista Veja trouxe como matéria principal o “Especial Maioridade Penal”.
Logo na capa, a publicação, que naquela edição teve uma tiragem de
mais de um milhão de exemplares, apresentava fotos embaçadas de quatro
adolescentes suspeitos de terem participado de estupro e tentativa de
homicídio em Castelo, Piauí. As iniciais dos nomes de todos eles eram,
então, seguidas das frases: “Eles estupraram, torturaram, desfiguraram e
mataram. Vão ficar impunes?”.
No interior daquela edição (de número 2.430), as fotos e as iniciais
dos nomes dos adolescentes também foram apresentadas, facilitando a
identificação dos mesmos. O título sugeria impunidade: “Justiça só para
maiores”.A chamada da matéria antecipava o julgamento e a condenação:
“Os jovens que participam do estupro coletivo no Piauí que terminou na
morte de uma jovem ficarão, no máximo, três anos internados. Isso é
justo?”.
A exposição dos adolescentes motivou representação do Intervozes
junto ao Ministério Público Federal (MPF), que considerou que o caso
não estava dentro de suas atribuições, pois a reportagem foi feita por
empresa privada, que não presta serviço público federal, embora a
vedação à divulgação da imagem conste em legislação federal. O MPF
encaminhou ao MP estadual. Até hoje, nada foi feito.
Impune, a revista Veja utilizou toda sua capilaridade para
promover verdadeira campanha em defesa da redução da maioridade penal,
utilizando-se, para tanto, de caso com forte apelo junto à sociedade que
envolvia adolescentes – e também um adulto que, como em outras
matérias, teve sua participação no crime relativizada.
O impacto da veiculação dificilmente poderia ser revertido mesmo com
decisão judicial, dado o lapso temporal e a dificuldade de um direito de
resposta, por exemplo, atingir e convencer as mesmas pessoas que leram o
conteúdo original e violador de direitos.
Essa dinâmica da recepção da comunicação exige que a publicação das
notícias seja absolutamente cuidadosa, sob o risco de condenar
socialmente, para sempre, pessoas que podem ser inocentes.
É preciso deixar nítido o real impacto de uma medida como a proposta,
no momento em que vivemos de avanço do conservadorismo no Brasil e,
especificamente, em relação à garantia dos direitos de crianças e
adolescentes, como exemplifica recente decisão do Supremo Tribunal
Federal (STF) de derrubar o mecanismo de vinculação do horário da
programação da televisão à Classificação Indicativa.
O que os legisladores brasileiros estão fazendo é preparar o terreno
para maior exploração comercial desses públicos, seja como consumidores
ou como “atrações” que geram audiência e lucros.
Mas o impacto é ainda maior. O interesse comercial caminha ao lado do
interesse político de criminalizar a juventude negra e periférica, que é
insistentemente representada em programas policialescos como criminosa e
passível das penas mais duras, como a de privação de liberdade ou, por
fora do sistema de justiça formal, da ação repressiva das forças
policiais ou mesmo do extermínio.
Essa lógica tem sido denunciada pela campanha Mídia Sem Violações de Direitos,
articulada, neste ano, com o objetivo de denunciar os programas
policialescos e lutar pelo respeito aos direitos humanos. É preciso que
ela seja compreendida por toda a sociedade para que possamos unir forças
para enfrentar interesses tão fortes e protegidos pelo status quo.
Se aprovado o PL 7.553/2014, a caçada que hoje assistimos contra os
“menores” será ampliada, assim como a oferta de falsas saídas para o
problema da segurança pública em nosso país. Para evitar que isso
ocorra, precisamos organizar a resistência e incidir no processo
legislativo, apesar das dificuldades de obtermos conquista naquele
espaço.
Os próximos passos do projeto já estão definidos. Ele será objeto de
deliberação na Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime
Organizado, onde será relatado pelo deputado Paulo Martins (PSDB-PR).
Depois, deve ser discutido pela Comissão de Seguridade Social e Família e
pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania para, então, ser
votado em plenário.
A sociedade brasileira, que há poucas décadas foi capaz de produzir
uma das legislações mais avançadas do mundo em termos de garantia dos
direitos das crianças e dos adolescentes, tem que ser capaz de resistir à
destruição desse patrimônio coletivo, o que tem ocorrido por meio do
discurso midiático e de projetos que fragilizam o ECA. E mais: ela tem
que ser capaz de enfrentar a criminalização de uma geração inteira.
*Helena Martins é jornalista e representante do Intervozes no Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH)
Disponível em: http://www.cartacapital.com.br/blogs/intervozes/projeto-permite-exposicao-de-adolescentes-suspeitos-de-ato-infracional
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