É hora de assumirmos a difícil constatação de que, em si, não
há nada de emancipatório ou transformador no fato de um gay
assumir um mandato parlamentar. Isso não reflete,
necessariamente, uma conquista da luta por representatividade e
diversidade.
Fernando
Holiday, primeiro vereador assumidamente gay a ser eleito em
SP (Reprodução)
As eleições municipais do último domingo apresentam diversas
questões intrigantes para refletir sobre a política contemporânea
no Brasil. Aumento significativo dos votos em branco ou nulos,
vitória de candidatos que se dizem “gestores”em contraposição a
“políticos”, derrota retumbante do PT nas urnas são apenas alguns
dos temas mais destacados pelo noticiário nos últimos dias.
No entanto, as eleições deste ano apresentaram um fato da maior
relevância que não recebeu ainda a devida atenção: um jovem de
apenas 20 anos, negro, gay e de origem pobre foi escolhido
vereador na cidade de São Paulo. Pela primeira vez, um homossexual
assumido assumiu esse cargo na maior cidade do país.
Fernando Holiday se tornou conhecido devido ao seu envolvimento
com o Movimento Brasil Livre (MBL), grupo que se notabilizou por
aliar-se ao Eduardo Cunha para concretizar o impeachment de Dilma
Rousseff. O partido escolhido pelo “apartidário” Fernando para
eleger-se foi o DEM, oriundo do antigo PFL e uma das mais
conservadoras agremiações políticas do quadro partidário atual. A
tão proclamada e anunciada “renovação” da política tradicional
terminou, assim, ressuscitando um partido que representa as ideias
mais arcaicas e reacionárias.
Mas não é só isso. Holiday, que é gay assumido e negro, defendeu,
em seu primeiro pronunciamento depois de eleito, justamente a
extinção da Secretaria de Igualdade Racial e a da “Secretaria
LGBT” (que sequer existe, pois há apenas uma coordenadoria sobre a
temática vinculada à Secretaria de Direitos Humanos).
Além da ignorância e do desconhecimento das “estruturas
burocráticas” que ele alega combater com tanta firmeza, essa
postura revela como um negro e gay pode assumir, nos debates
públicos, posições que reforçam, em última instância, as próprias
estruturas opressivas que lhe atravessam.
É evidente nem todo gay é de esquerda e equivoca-se quem postula
isso como verdade necessária. O objeto do desejo de cada um(a) não
define determinado posicionamento político e ideológico. Sem
dúvidas, há uma dimensão política inescapável nas identidades de
gênero e orientações sexuais tidas como “desviantes”, mas isso não
se traduz, automaticamente, em posturas progressistas diante dos
diversos conflitos presentes na sociedade.
Por se tratar de um segmento da sociedade que sofre opressões e
violências diversas, faz sentido que essas pessoas desenvolvam,
até por necessidade sentida concretamente em suas experiências de
vida, um senso crítico que problematize as estruturas de poder e
os regimes de invisibilidade que lhes espalham pelas margens do
reconhecimento e dos direitos.
No entanto, pessoas LGBTs podem achar que é preciso menos
intervenção do Estado na economia, podem preferir menos direitos
sociais, podem crer na meritocracia como categoria que explica o
sucesso e o fracasso de cada um na vida, podem entender que é
preciso privatizar mais os serviços públicos, podem reproduzir
moralismos e preconceitos contra outros grupos estigmatizados,
podem até sair falando que movimento LGBT é desnecessário para
alcançar o respeito e a igualdade.
Esse é o caso de Holiday. Em nome de uma visão neoliberal da
gestão do Estado, defende a extinção de órgãos públicos que sequer
representam gastos expressivos diante da importância simbólica que
possuem por refletirem lutas históricas por reconhecimento
institucional, direitos e políticas públicas em favor desses
segmentos vulneráveis, aos quais ele próprio pertence.
“É evidente nem todo
gay é de esquerda e equivoca-se quem postula isso como
verdade necessária. O objeto do desejo de cada um(a) não
define determinado posicionamento político e ideológico”
Ao tomar essa posição, ele simplesmente despreza e apaga os
esforços de gerações de ativistas e militantes dos movimentos
negro e LGBT que tanto se engajaram nas lutas por igualdade de
condições e respeito às diversidades.
Por óbvio, é natural que haja discordâncias quanto às agendas e
táticas dos movimentos identitários. Há, por exemplo, homossexuais
que discordam da criminalização da homofobia ou mesmo do casamento
enquanto pautas centrais das lutas do movimento.
Mas não é esse o caso de Holiday. Suas declarações não se
apresentam como discordâncias pontuais ou como críticas
construtivas em um quadro amplo de um mesmo objetivo comum de
maior igualdade; ao contrário, elas vão no sentido de dissociar
sua identidade subjetiva de gay de qualquer traço de politização
de conexão com esses movimentos que, em última instância, foram o
que possibilitaram que ele ocupasse agora aquele lugar de
visibilidade mesmo sendo negro e gay.
Assim, a maneira como ele opta existir naquele espaço parlamentar
não é reivindicando seu corpo negro e homossexual estigmatizado
pelos preconceitos, diariamente assassinado pela polícia militar
nas periferias, frequentemente agredido por lampadadas nas ruas de
São Paulo.
Antes, ele está ali por escolha consciente e uma posição política
clara, usando do espaço e de seu “lugar de fala”, para fortalecer
os discursos hegemônicos e discriminatórios dos que já ocupavam,
por tradição, laços pessoais e poder econômico, a Câmara
Municipal.
Ele não será um incômodo ali, como o é Jean Wyllys no Congresso
Nacional, que faz da sua existência enquanto homossexual um lugar
de ação para afrontar e enfrentar as tentativas de agressão e
silenciamento. Holiday será um aliado do preconceito, pois sua
negritude e sua orientação sexual já foram relegadas a um segundo
plano e não influenciam sua postura pública.
Isso nos coloca em questão o debate em torno dos “lugares de
fala”, conceito importante para permitir o empoderamento de
segmentos vulneráveis, mas que tem sido usado de maneira
despolitizadora e bastante problemática, como já tive oportunidade
de discutir em texto anterior nesta
coluna.
É hora de assumirmos a difícil constatação de que, em si, não há
nada de emancipatório ou transformador no fato de um gay assumir
um mandato parlamentar. Isso não reflete, necessariamente, uma
conquista da luta por representatividade e diversidade. Importa
analisar, antes e em primeiro lugar, o quanto esse parlamentar se
alinhará às reivindicações históricas construídas pelo movimento
em sua pluralidade, ainda que ele discorde delas.O fato de
pertencer à comunidade imaginária LGBT não é atestado contribuição
para a luta por diversidade.
O fundamental não é falar “do lugar de um gay”, mas o que se faz
com o fato de ser colocado e decidir ocupar esse lugar e,
sobretudo, o que se escolhe enunciar e elaborar a partir daí. Essa
é a diferença entre a injustificada associação automática de uma
identidade com determinada posição política, de um lado, e a
problematização da identidade enquanto suporte em disputa para
construção de posturas emancipatórias. Um gay defendendo posição
homofóbica enquanto vereador, assumindo-se como representante dos
conservadores, é a melhor ilustração de como esse debate precisa
avançar dentro dos movimentos de direitos humanos.
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