Com cerca de 700 mil homens, a polícia brasileira é a que mais mata e a
que mais morre no mundo, dado que justifica o debate sobre a
desmilitarização.
Danilo (nome fictício) é policial
militar no Rio de Janeiro. Segundo ele, matar suspeitos de serem membros
de facções criminosas era uma rotina em seu batalhão. Certa vez, Danilo
testemunhou um tenente ser repreendido porque apenas deteve um homem em
posse de um fuzil, ao invés de matá-lo. “Não existe vivo com fuzil”,
teria dito o oficial superior ao tenente naquela ocasião. “Matar bandido
é o que era exigido como bom resultado por meus superiores”, confessou.
João
(nome fictício) foi membro do Grupamento de Ações Táticas (GAT) em um
batalhão da PM carioca. Durante uma operação, a guarnição de João usou
um carro particular para se aproximar de uma favela. Com os
companheiros, ele deitou na mata em uma área que sabia ser rota de fuga
para supostos traficantes de droga. Outro grupo de policiais entrou na
favela pelo lado oposto. Pouco depois, dois homens fugiram em sua
direção. Os policiais abriram fogo, matando um dos homens imediatamente,
enquanto o outro caiu no chão com os ferimentos das balas. “Para se
manter lá, tem que matar, apreender armas”, disse.
À
exceção dos nomes fictícios, os depoimentos acima são reais e integram
um relatório divulgado em julho pela ONG Internacional Human Rights
Watch que, entre outros dados, aponta que a Polícia Militar do Rio de
Janeiro matou 8 mil pessoas na última década — 645 só em 2015. No Brasil
inteiro, de acordo com o 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública,
3.009 pessoas foram mortas por PMs, em 2014. Por outro lado, a
vitimização policial também é um fato. Nesse mesmo ano, 398 policiais
morreram exercendo suas atividades, o que corresponde a pelo menos um
por dia.
Há
alguma coisa errada quando a polícia de um país é considerada a que
mais mata e, ao mesmo tempo, a que mais morre no mundo — dupla carga que
pesa sobre os ombros dos agentes brasileiros, segundo o Fórum
Brasileiro de Segurança Pública. Os altos índices de mortalidade
apontados em diferentes relatórios e pesquisas fizeram com que o
Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU)
recomendasse, ainda em 2012, a supressão da Polícia Militar no Brasil.
Quatro anos depois, o debate sobre a desmilitarização toma corpo no
momento em que manifestantes voltam às ruas do país contra o impeachment
da presidenta Dilma Rousseff. Em São Paulo, a Força Tática da PM tem
utilizado balas de borracha, bombas de gás lacrimogêneo e spray de
pimenta para conter os protestos com violência, a exemplo do que ocorreu
nas manifestações de junho de 2013. Para os críticos da militarização
ouvidos nesta reportagem, esses são exemplos da lógica bélica que impera
na polícia brasileira.
O fim da polícia?
“Não
acabou, tem que acabar, eu quero o fim da Polícia Militar”. No senso
comum, essa queixa ouvida repetidas vezes nas manifestações, ou mesmo a
conhecida expressão “Desmilitarização da polícia”, pode dar margem para
alguns mitos que se criaram em torno do assunto — entre eles, o de que o
termo “desmilitarizar” significa que “a polícia vai trabalhar
desarmada” ou que “serão tiradas a farda e a viatura da polícia” ou
ainda que “vai haver demissão em massa dos policias”. Mas nada disso é
verdade.
“Desmilitarizar
a polícia implica em trazê-la para os marcos democráticos. Isso não
quer dizer seu desarmamento ou a precarização do trabalho dos
profissionais de segurança”, esclarece a psicóloga Ana Vládia Holanda
Cruz. Nas palavras da psicóloga, desmilitarizar é “permitir aos
policiais direitos civis, proteger contra os abusos da rígida hierarquia
militar que frequentemente se transmuta em assédio moral e violência,
primar pela prevenção e humanizar a formação e a atuação dos agentes: da
perspectiva bélica para uma segurança centrada na garantia de direitos e
na preservação da vida”.
Ana
Vládia integra o Comitê Cearense pela Desmilitarização da Polícia e da
Política — uma aglutinação de pessoas e entidades sensíveis ao tema da
violência urbana, entre eles, educadores, policiais, ex-policiais e
integrantes de movimentos sociais, que decidiram se organizar em
diversos estados para contribuir de forma crítica com as discussões e
ações em torno da segurança pública. Em entrevista à Radis, ela lembra
que o termo militarização traduz muito mais do que a forma como um corpo
de polícia se organiza, que tipo de estatuto cumpre ou qual modelo
administrativo comporta. “O militarismo constitui um vasto conjunto de
hábitos, interesses, ações e pensamentos associados a uma perspectiva
bélica para atingir objetivos específicos, incluindo a função de
controle social”, relata Ana Vládia.
No
Brasil, a militarização das polícias é uma herança da ditadura. Até o
golpe de 1964, às polícias militares cabiam um papel secundário no trato
das questões de segurança pública interna como o policiamento dos
quartéis ou regiões de fronteira. Uma cartilha lançada pelo Comitê pela
Desmilitarização explica que, embora já existisse a atual separação
entre as polícias civil e militar desde a Guarda Real da Polícia em
1809, foi o decreto lei 667 de 1969 que disciplinou a reorganização e
acentuou a diferença entre as polícias. Para que fique claro, ambas são
responsáveis pela segurança pública, mas enquanto a polícia civil está
ligada às atividades investigativas de um crime, a polícia militar
responde pelo patrulhamento ostensivo das ruas, inibindo ações suspeitas
de pôr em risco à segurança pública. Para Ana Vládia, desde que a PM
assumiu esse papel, isso tem implicado, por um lado, na ideologia de um
inimigo interno a ser combatido e exterminado — e que pode ir do
“subversivo” ao “traficante”. “Por outro, na manutenção da ordem
hierarquizada e desigual, sobretudo através da ocupação territorial e da
repressão aos protestos públicos”, diz.
Como
informa a cartilha elaborada pelo Comitê, os defensores da
desmilitarização propõem, em linhas gerais, tratar a questão da
segurança de maneira mais abrangente e integrativa, encarando a
violência não como uma causa em si mas como algo diretamente relacionado
à desigualdade social do país. Para eles, segurança é direito básico e
as políticas de segurança devem atuar de forma integrada com outras
políticas públicas, como saúde e educação. “Não se administra o problema
da conflitualidade por meio de mais violência e criminalização”, afirma
Ana Vládia, sugerindo que, em vez dos mecanismos de repressão, o que
deve se destacar na ação do Estado é a promoção dos direitos humanos.
“Policial não sente dor”
O
tenente-coronel reformado da PM de São Paulo, Adilson Paes de Souza,
mexeu num vespeiro. Em sua dissertação de mestrado, depois transformada
no livro “O Guardião da Cidade: Reflexões sobre Casos de Violência
Praticados por Policiais Militares”, ele faz uma crítica à disciplina
Educação e Direitos Humanos, ofertada no curso de formação de oficiais
da Academia de Polícia Militar do Barro Branco, em São Paulo. Para
tanto, realizou entrevistas com policiais assassinos — aqueles que
cometem os chamados “auto de resistência” ou “resistência seguida de
morte”, termos usados por policiais que matam suspeitos alegando defesa.
“Eu
comprovei que essa disciplina não atende as necessidades do que se
espera de uma verdadeira educação em direitos humanos”, disse Adilson
por telefone à Radis. “Esses policiais me relataram que, nos bancos
escolares, nunca foi falado uma linha sequer sobre a realidade social
que eles iriam enfrentar, sobre violência policial, sobre corrupção,
sobre letalidade”. Ao contrário disso, completa Adilson, a formação é
centrada na virilidade. “O policial deve ser o macho, o herói, aquele
que não sente dor. Prevalece o mito do homem que tem de negar a dor em
si mesmo e, ao negar a dor em si mesmo, vai descarregar a dor em alguém.
Ele vai ter um comportamento agressivo porque aprendeu que ter
autoridade é ser violento e arbitrário”.
O
tenente-coronel se declara a favor da desmilitarização da polícia. “Em
qualquer contexto e confronto, nossos policiais tratam o oponente como
um inimigo no campo de batalha. Tal qual ocorria com a atuação das força
policiais no Regime Militar, contra os ditos subversivos, que eram
caçados e eliminados, ou, quando menos, capturados e torturados”,
analisa Adilson. Para ele, enquanto o pensamento de guerra prevalecer na
polícia, o país não viverá uma democracia de fato. “A gente vive numa
democracia formal porque o processo de redemocratização não está
concluído”.
Polícia para quem?
A
violência policial está no centro da questão da desmilitarização. Na
opinião de Adilson, o uso exacerbado da força — que, segundo ele, foi
favorecido inclusive pela aprovação no início deste ano da Lei
Antiterrorismo no Congresso Nacional (ver Radis 158) — traz como
consequências mais retrocesso e violência. “Mais violência não só por
parte dos órgãos oficiais do Estado, mas também da população que poderá
se valer de atos de violência na vã tentativa de enfrentar os agentes do
Estado. Isso é um retrocesso em termos civilizatórios”. Dados do Fórum
de Segurança Pública revelam que 70% dos brasileiros não confiam na
polícia e 63% se declaram insatisfeitos com sua atuação. Entre 2009 e
2013, 11.197 pessoas foram mortas por PMs no Brasil.
Ana
Vládia chama ainda a atenção para o fato de que, no modelo atual de
segurança militarizada, a criminalização da pobreza é uma constante, com
o inimigo número um encarnado em milhares de jovens de periferia,
negros, com bermuda, cordão e chinelo. “Comunidades inteiras são
consideradas perigosas antecipadamente e tratadas como desprovidas de
qualquer direito, inclusive à vida”, acrescenta. Segundo a psicóloga, o
uso abusivo da força policial se faz notar também quando a ação violenta
do Estado inibe os jovens de ocupar os espaços públicos e aposta na
criminalização antecipada, em vez da educação. Ela diz que o estímulo ao
desejo de punir e a consolidação da execução sumária, ao revés da
garantia de direitos, acirram ainda mais as contradições urbanas.
No
debate pela desmilitarização, além de retirar a perspectiva militar da
ação policial, há quem defenda a extinção da PM e a criação, no âmbito
dos estados, de uma só polícia de natureza civil que promova o Ciclo
Completo de polícia, que reúne o policiamento ostensivo fardado e a
investigação criminal. Mas isso está longe de ser um consenso. Adilson
argumenta em favor da unificação das polícias. Ele diz que manter dois
tipos de polícia mais atrapalha do que ajuda. “Existe um clima de
competição e desconfiança. Elas concorrem entre si”, diz, citando o
exemplo da Irlanda do Norte como inspiração para uma mudança. “Nesse
modelo, a polícia é subordinada a uma comissão independente sem vínculo
hierárquico com o Estado e, portanto, não sujeita a pressões políticas
ou de outra sorte que poderão inibir o seu trabalho”, justifica. “Isso
confere transparência e prestação de contas à sociedade que é a maior
cliente da polícia e aquela que sofre as consequências”.
Poder divino
Em
uma pesquisa publicada em 2014 pelo Centro de Pesquisas Jurídicas
Aplicadas (CPJA), da Escola de Direito da FGV de São Paulo, e pelo Fórum
Brasileiro de Segurança Pública, 98,2% dos policiais entrevistados
afirmaram que a formação e o treinamento deficientes são fatores que
compõem a dificuldade dos trabalhos da polícia. Além disso, 35,7%
concordam que o atual modelo de segurança pública no Brasil deve ser
amplamente reformulado.
Crítico
às propostas de desmilitarização, o coronel da Polícia Militar do
Estado de São Paulo, Azor Lopes da Silva Júnior, relativiza esses dados.
Na reserva há dois anos e professor de Direito há 18, Azor acredita que
o modelo militar tem vantagens e desvantagens. “Não é o fato de sermos
militares que nos faz ser mais belicosos ou viver numa expectativa de
guerra eterna”, diz. Ele reconhece que há de fato um modo de pensar e de
agir típicos do militarismo, onde os valores máximos são hierarquia e
disciplina, que preparam o indivíduo para ações de combate. Mas, segundo
ele, não se trata de um combate “nos moldes da Segunda Guerra Mundial”.
“Na verdade, é o trabalho cotidiano de um órgão público que tem por
missão o combate à criminalidade”.
Em
entrevista à Radis, o coronel disse acreditar ser possível oferecer uma
formação mais humana e eficiente aos policiais militares sem que para
isso seja preciso alterar a natureza militar da PM. “O que vemos como
patológico não é a regra. Quando na formação, algum instrutor exagera na
dose e tem posturas que se encaixam em um modelo psicológico desviante,
você vê cenas como a que assistimos em filmes ou alguns programas de
TV”, argumenta. “É preciso entender que arma é um instrumento para
controle. O policial não pode pegar aquele poder letal que tem nas mãos
legitimado pelo Estado e usar como um poder divino”.
Caminho legal
Em
uma coisa, todos os especialistas ouvidos por Radis concordam: o Brasil
precisa promover de uma vez por todas o debate sobre a
desmilitarização. Em ano eleitoral, é comum candidatos sugerirem
militarizar a Guarda Municipal — uma proposta que caminha na contramão
de uma discussão mais responsável sobre segurança pública. Para Ana
Vládia, justamente por ter a polícia que mais mata e mais morre no
mundo, o Brasil tem urgência de encarar a desmilitarização. “Isso passa
por uma alteração do modelo militar na segurança, mas igualmente por uma
disputa simbólica, em grande medida alimentada por programas
policialescos. Deve-se superar a tradição histórica que rejeita
visceralmente a noção de direitos universais e divide os seres humanos
em ‘cidadãos de bem’ e ‘não-cidadãos’ que devem ser eliminados a
qualquer custo”.
Além
do debate, há um longo caminho legal. Para que a desmilitarização seja
respaldada em Lei, é preciso alterar o artigo 144 da Constituição
Federal que mantém os militares no policiamento ostensivo. Hoje, há três
Propostas de Emenda Constitucional (PECs) que tratam do assunto. Mas,
segundo Ana Vládia, o que tramita, na conjuntura atual, são propostas de
recrudescimento penal. Ela explica que as PECs estão sendo substituídas
por propostas que abordam unicamente o Ciclo Completo. Enquanto isso,
ela sugere que a população participe do debate. “Proporcionar encontros
para debater o tema em escolas, universidades, praças etc também é uma
maneira interessante de ampliar a discussão; assim como pressionar
parlamentares e participar das manifestações que têm abordado não apenas
a desmilitarização, mas denunciado o extermínio das juventudes nas
periferias”.
Autor:
Ana Cláudia Perez
Disponível em: http://www6.ensp.fiocruz.br/radis/revista-radis/169/reportagens/policia
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