terça-feira, 25 de outubro de 2016

POLÍCIA

Com cerca de 700 mil homens, a polícia brasileira é a que mais mata e a que mais morre no mundo, dado que justifica o debate sobre a desmilitarização.

 

Danilo (nome fictício) é policial militar no Rio de Janeiro. Segundo ele, matar suspeitos de serem membros de facções criminosas era uma rotina em seu batalhão. Certa vez, Danilo testemunhou um tenente ser repreendido porque apenas deteve um homem em posse de um fuzil, ao invés de matá-lo. “Não existe vivo com fuzil”, teria dito o oficial superior ao tenente naquela ocasião. “Matar bandido é o que era exigido como bom resultado por meus superiores”, confessou.
 
João (nome fictício) foi membro do Grupamento de Ações Táticas (GAT) em um batalhão da PM carioca. Durante uma operação, a guarnição de João usou um carro particular para se aproximar de uma favela. Com os companheiros, ele deitou na mata em uma área que sabia ser rota de fuga para supostos traficantes de droga. Outro grupo de policiais entrou na favela pelo lado oposto. Pouco depois, dois homens fugiram em sua direção. Os policiais abriram fogo, matando um dos homens imediatamente, enquanto o outro caiu no chão com os ferimentos das balas. “Para se manter lá, tem que matar, apreender armas”, disse.
 
 
À exceção dos nomes fictícios, os depoimentos acima são reais e integram um relatório divulgado em julho pela ONG Internacional Human Rights Watch que, entre outros dados, aponta que a Polícia Militar do Rio de Janeiro matou 8 mil pessoas na última década — 645 só em 2015. No Brasil inteiro, de acordo com o 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 3.009 pessoas foram mortas por PMs, em 2014. Por outro lado, a vitimização policial também é um fato. Nesse mesmo ano, 398 policiais morreram exercendo suas atividades, o que corresponde a pelo menos um por dia.
 
Há alguma coisa errada quando a polícia de um país é considerada a que mais mata e, ao mesmo tempo, a que mais morre no mundo — dupla carga que pesa sobre os ombros dos agentes brasileiros, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Os altos índices de mortalidade apontados em diferentes relatórios e pesquisas fizeram com que o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) recomendasse, ainda em 2012, a supressão da Polícia Militar no Brasil. Quatro anos depois, o debate sobre a desmilitarização toma corpo no momento em que manifestantes voltam às ruas do país contra o impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Em São Paulo, a Força Tática da PM tem utilizado balas de borracha, bombas de gás lacrimogêneo e spray de pimenta para conter os protestos com violência, a exemplo do que ocorreu nas manifestações de junho de 2013. Para os críticos da militarização ouvidos nesta reportagem, esses são exemplos da lógica bélica que impera na polícia brasileira.
 

O fim da polícia?

“Não acabou, tem que acabar, eu quero o fim da Polícia Militar”. No senso comum, essa queixa ouvida repetidas vezes nas manifestações, ou mesmo a conhecida expressão “Desmilitarização da polícia”, pode dar margem para alguns mitos que se criaram em torno do assunto — entre eles, o de que o termo “desmilitarizar” significa que “a polícia vai trabalhar desarmada” ou que “serão tiradas a farda e a viatura da polícia” ou ainda que “vai haver demissão em massa dos policias”. Mas nada disso é verdade.
 
 
“Desmilitarizar a polícia implica em trazê-la para os marcos democráticos. Isso não quer dizer seu desarmamento ou a precarização do trabalho dos profissionais de segurança”, esclarece a psicóloga Ana Vládia Holanda Cruz. Nas palavras da psicóloga, desmilitarizar é “permitir aos policiais direitos civis, proteger contra os abusos da rígida hierarquia militar que frequentemente se transmuta em assédio moral e violência, primar pela prevenção e humanizar a formação e a atuação dos agentes: da perspectiva bélica para uma segurança centrada na garantia de direitos e na preservação da vida”. 
 
Ana Vládia integra o Comitê Cearense pela Desmilitarização da Polícia e da Política — uma aglutinação de pessoas e entidades sensíveis ao tema da violência urbana, entre eles, educadores, policiais, ex-policiais e integrantes de movimentos sociais, que decidiram se organizar em diversos estados para contribuir de forma crítica com as discussões e ações em torno da segurança pública. Em entrevista à Radis, ela lembra que o termo militarização traduz muito mais do que a forma como um corpo de polícia se organiza, que tipo de estatuto cumpre ou qual modelo administrativo comporta. “O militarismo constitui um vasto conjunto de hábitos, interesses, ações e pensamentos associados a uma perspectiva bélica para atingir objetivos específicos, incluindo a função de controle social”, relata Ana Vládia.  
 
No Brasil, a militarização das polícias é uma herança da ditadura. Até o golpe de 1964, às polícias militares cabiam um papel secundário no trato das questões de segurança pública interna como o policiamento dos quartéis ou regiões de fronteira. Uma cartilha lançada pelo Comitê pela Desmilitarização explica que, embora já existisse a atual separação entre as polícias civil e militar desde a Guarda Real da Polícia em 1809, foi o decreto lei 667 de 1969 que disciplinou a reorganização e acentuou a diferença entre as polícias. Para que fique claro, ambas são responsáveis pela segurança pública, mas enquanto a polícia civil está ligada às atividades investigativas de um crime, a polícia militar responde pelo patrulhamento ostensivo das ruas, inibindo ações suspeitas de pôr em risco à segurança pública. Para Ana Vládia, desde que a PM assumiu esse papel, isso tem implicado, por um lado, na ideologia de um inimigo interno a ser combatido e exterminado — e que pode ir do “subversivo” ao “traficante”. “Por outro, na manutenção da ordem hierarquizada e desigual, sobretudo através da ocupação territorial e da repressão aos protestos públicos”, diz.
 
Como informa a cartilha elaborada pelo Comitê, os defensores da desmilitarização propõem, em linhas gerais, tratar a questão da segurança de maneira mais abrangente e integrativa, encarando a violência não como uma causa em si mas como algo diretamente relacionado à desigualdade social do país. Para eles, segurança é direito básico e as políticas de segurança devem atuar de forma integrada com outras políticas públicas, como saúde e educação. “Não se administra o problema da conflitualidade por meio de mais violência e criminalização”, afirma Ana Vládia, sugerindo que, em vez dos mecanismos de repressão, o que deve se destacar na ação do Estado é a promoção dos direitos humanos.
 

“Policial não sente dor”

O tenente-coronel reformado da PM de São Paulo, Adilson Paes de Souza, mexeu num vespeiro. Em sua dissertação de mestrado, depois transformada no livro “O Guardião da Cidade: Reflexões sobre Casos de Violência Praticados por Policiais Militares”, ele faz uma crítica à disciplina Educação e Direitos Humanos, ofertada no curso de formação de oficiais da Academia de Polícia Militar do Barro Branco, em São Paulo. Para tanto, realizou entrevistas com policiais assassinos — aqueles que cometem os chamados “auto de resistência” ou “resistência seguida de morte”, termos usados por policiais que matam suspeitos alegando defesa.
 
 
“Eu comprovei que essa disciplina não atende as necessidades do que se espera de uma verdadeira educação em direitos humanos”, disse Adilson por telefone à Radis. “Esses policiais me relataram que, nos bancos escolares, nunca foi falado uma linha sequer sobre a realidade social que eles iriam enfrentar, sobre violência policial, sobre corrupção, sobre letalidade”. Ao contrário disso, completa Adilson, a formação é centrada na virilidade. “O policial deve ser o macho, o herói, aquele que não sente dor. Prevalece o mito do homem que tem de negar a dor em si mesmo e, ao negar a dor em si mesmo, vai descarregar a dor em alguém. Ele vai ter um comportamento agressivo porque aprendeu que ter autoridade é ser violento e arbitrário”. 
 
O tenente-coronel se declara a favor da desmilitarização da polícia. “Em qualquer contexto e confronto, nossos policiais tratam o oponente como um inimigo no campo de batalha. Tal qual ocorria com a atuação das força policiais no Regime Militar, contra os ditos subversivos, que eram caçados e eliminados, ou, quando menos, capturados e torturados”, analisa Adilson. Para ele, enquanto o pensamento de guerra prevalecer na polícia, o país não viverá uma democracia de fato. “A gente vive numa democracia formal porque o processo de redemocratização não está concluído”.
 

Polícia para quem?

A violência policial está no centro da questão da desmilitarização. Na opinião de Adilson, o uso exacerbado da força — que, segundo ele, foi favorecido inclusive pela aprovação no início deste ano da Lei Antiterrorismo no Congresso Nacional (ver Radis 158) — traz como consequências mais retrocesso e violência. “Mais violência não só por parte dos órgãos oficiais do Estado, mas também da população que poderá se valer de atos de violência na vã tentativa de enfrentar os agentes do Estado. Isso é um retrocesso em termos civilizatórios”. Dados do Fórum de Segurança Pública revelam que 70% dos brasileiros não confiam na polícia e 63% se declaram insatisfeitos com sua atuação. Entre 2009 e 2013, 11.197 pessoas foram mortas por PMs no Brasil.
 
Ana Vládia chama ainda a atenção para o fato de que, no modelo atual de segurança militarizada, a criminalização da pobreza é uma constante, com o inimigo número um encarnado em milhares de jovens de periferia, negros, com bermuda, cordão e chinelo. “Comunidades inteiras são consideradas perigosas antecipadamente e tratadas como desprovidas de qualquer direito, inclusive à vida”, acrescenta. Segundo a psicóloga, o uso abusivo da força policial se faz notar também quando a ação violenta do Estado inibe os jovens de ocupar os espaços públicos e aposta na criminalização antecipada, em vez da educação. Ela diz que o estímulo ao desejo de punir e a consolidação da execução sumária, ao revés da garantia de direitos, acirram ainda mais as contradições urbanas. 
 
No debate pela desmilitarização, além de retirar a perspectiva militar da ação policial, há quem defenda a extinção da PM e a criação, no âmbito dos estados, de uma só polícia de natureza civil que promova o Ciclo Completo de polícia, que reúne o policiamento ostensivo fardado e a investigação criminal. Mas isso está longe de ser um consenso. Adilson argumenta em favor da unificação das polícias. Ele diz que manter dois tipos de polícia mais atrapalha do que ajuda. “Existe um clima de competição e desconfiança. Elas concorrem entre si”, diz, citando o exemplo da Irlanda do Norte como inspiração para uma mudança. “Nesse modelo, a polícia é subordinada a uma comissão independente sem vínculo hierárquico com o Estado e, portanto, não sujeita a pressões políticas ou de outra sorte que poderão inibir o seu trabalho”, justifica. “Isso confere transparência e prestação de contas à sociedade que é a maior cliente da polícia e aquela que sofre as consequências”. 
 

Poder divino

Em uma pesquisa publicada em 2014 pelo Centro de Pesquisas Jurídicas Aplicadas (CPJA), da Escola de Direito da FGV de São Paulo, e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 98,2% dos policiais entrevistados afirmaram que a formação e o treinamento deficientes são fatores que compõem a dificuldade dos trabalhos da polícia. Além disso, 35,7% concordam que o atual modelo de segurança pública no Brasil deve ser amplamente reformulado. 
 
Crítico às propostas de desmilitarização, o coronel da Polícia Militar do Estado de São Paulo, Azor Lopes da Silva Júnior, relativiza esses dados. Na reserva há dois anos e professor de Direito há 18, Azor acredita que o modelo militar tem vantagens e desvantagens. “Não é o fato de sermos militares que nos faz ser mais belicosos ou viver numa expectativa de guerra eterna”, diz. Ele reconhece que há de fato um modo de pensar e de agir típicos do militarismo, onde os valores máximos são hierarquia e disciplina, que preparam o indivíduo para ações de combate. Mas, segundo ele, não se trata de um combate “nos moldes da Segunda Guerra Mundial”. “Na verdade, é o trabalho cotidiano de um órgão público que tem por missão o combate à criminalidade”. 
 
 
Em entrevista à Radis, o coronel disse acreditar ser possível oferecer uma formação mais humana e eficiente aos policiais militares sem que para isso seja preciso alterar a natureza militar da PM. “O que vemos como patológico não é a regra. Quando na formação, algum instrutor exagera na dose e tem posturas que se encaixam em um modelo psicológico desviante, você vê cenas como a que assistimos em filmes ou alguns programas de TV”, argumenta. “É preciso entender que arma é um instrumento para controle. O policial não pode pegar aquele poder letal que tem nas mãos legitimado pelo Estado e usar como um poder divino”. 
 

Caminho legal

Em uma coisa, todos os especialistas ouvidos por Radis concordam: o Brasil precisa promover de uma vez por todas o debate sobre a desmilitarização. Em ano eleitoral, é comum candidatos sugerirem militarizar a Guarda Municipal — uma proposta que caminha na contramão de uma discussão mais responsável sobre segurança pública. Para Ana Vládia, justamente por ter a polícia que mais mata e mais morre no mundo, o Brasil tem urgência de encarar a desmilitarização. “Isso passa por uma alteração do modelo militar na segurança, mas igualmente por uma disputa simbólica, em grande medida alimentada por programas policialescos. Deve-se superar a tradição histórica que rejeita visceralmente a noção de direitos universais e divide os seres humanos em ‘cidadãos de bem’ e ‘não-cidadãos’ que devem ser eliminados a qualquer custo”.
 
Além do debate, há um longo caminho legal. Para que a desmilitarização seja respaldada em Lei, é preciso alterar o artigo 144 da Constituição Federal que mantém os militares no policiamento ostensivo. Hoje, há três Propostas de Emenda Constitucional (PECs) que tratam do assunto. Mas, segundo Ana Vládia, o que tramita, na conjuntura atual, são propostas de recrudescimento penal. Ela explica que as PECs estão sendo substituídas por propostas que abordam unicamente o Ciclo Completo. Enquanto isso, ela sugere que a população participe do debate. “Proporcionar encontros para debater o tema em escolas, universidades, praças etc também é uma maneira interessante de ampliar a discussão; assim como pressionar parlamentares e participar das manifestações que têm abordado não apenas a desmilitarização, mas denunciado o extermínio das juventudes nas periferias”. 
 
Autor: 
Ana Cláudia Perez 
 
 
Disponível em:  http://www6.ensp.fiocruz.br/radis/revista-radis/169/reportagens/policia

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