O senhor de corpo franzino, dependente da cadeira de rodas, era
ansiosamente aguardado na noite do terceiro sábado de julho em Ribeirão
Cascalheira, a 891 km de Cuiabá, no nordeste do Mato Grosso. Pela
primeira vez, a presença de dom Pedro Casaldáliga na Romaria dos
Mártires, que ele criou há 30 anos, era uma incógnita. Aos 88 anos, o
bispo emérito de São Félix do Araguaia continua lúcido, mas o
agravamento do Parkinson tem afetado cada vez mais sua fala e a
coordenação motora. Os deslocamentos e as aparições públicas são cada
vez mais raros.
Durante toda aquela semana, especulou-se entre os organizadores,
auxiliares na Igreja e fiéis se o religioso deveria se submeter à viagem
e ao intenso calor para participar do evento, que desde 1986 ocorre em
um fim de semana de julho na cidade de 9 mil habitantes, no Vale do
Araguaia. Casaldáliga decidiu ir, embora tenha ficado contrariado com a
condição imposta por seus auxiliares: faria os 268 km de São Félix do
Araguaia a Ribeirão Cascalheira num pequeno avião, e não pela estrada de
terra batida. “Ele ficou bravo porque disse que queria chegar na altura
do povo”, contou Antônio Canuto, 75 anos, um dos coordenadores
nacionais da Comissão Pastoral da Terra.
Na noite de sábado, 16 de julho, a chegada de Pedro Casaldáliga para o
ato de abertura da romaria, acenando ao público com uma mão trêmula,
causou comoção entre as cerca de 4.000 presentes. A aparência frágil do
bispo fez com que muitos romeiros interpretassem sua presença ali como
uma despedida da festa religiosa que ele criou. Conhecido como bispo do
povo – ou vermelho, como dizem os inimigos, por sua histórica ligação
com a esquerda – e uma das principais referências internacionais na luta
pelos direitos humanos na Amazônia, o religioso catalão Pedro
Casaldáliga está radicado no Brasil desde 1968. Um dos fundadores de
organizações como Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o Conselho
Indigenista Missionário (Cimi), Casaldáliga engajou-se na luta pelos
direitos das minorias, sobretudo na Amazônia. Seu estilo de vida
espartano, com sandálias havaianas e jeans no lugar da batina, e a
defesa de uma Igreja com forte atuação social transformaram-no num dos
ícones da teologia da libertação, linha católica popular na América
Latina nos anos 1970 e 1980.
Os xavantes de Marãiwatsédé, presentes na romaria, têm no bispo um
histórico aliado – não só eles, mas também diversas outras etnias, como
os tapirapés e carajás. “É um momento ruim para os povos indígenas do
Brasil, mas eles nunca tiveram tão organizados”, afirmou Casaldáliga à Pública.
Em 1971, quando ordenado bispo de São Félix do Araguaia, ele deu à sua primeira carta pastoral
o título de “Uma igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a
marginalização social”. Este seria o tom de sua atuação nas décadas
seguintes, provocando o descontentamento não só da ditadura, mas também
de setores da Igreja Católica.
No final de 2012, quando forças federais começaram a retirar os não
indígenas de Marãiwatsédé, Casaldáliga foi ameaçado de morte – por meio
de cartas, mensagens e telefonemas anônimos — e deixou a região por dois
meses, abrigando-se em Goiânia, na casa de um amigo. Já diagnosticado
com Parkinson, sua saúde deteriorou-se desde então. Seu estilo de vida o
tornaria um alvo ainda mais vulnerável. Em São Félix do Araguaia,
cidade de 11 mil habitantes na margem do rio de mesmo nome, no nordeste
do Mato Grosso, sua casa, ainda hoje, é aberta para qualquer um.
Tempos de mártires
“Este, mais do que nunca, é um tempo de mártires”, ressaltou
Casaldáliga, sentado nos fundos de sua casa, que sediou por décadas a
prelazia – desde o ano passado, a sede administrativa foi transferida
para Porto Alegre do Norte, a 218 km.
Em sua sétima edição, a Romaria dos Mártires foi criada por
Casaldáliga para homenagear, como conta, todos aqueles que “deram a vida
pela vida”, no Brasil e na América Latina. São vários os mártires
homenageados: Chico Mendes, Antônio Conselheiro, o padre salvadorenho
Oscar Romero, reconhecido como santo pelo papa Francisco, além do índio
pataxó Galdino Jesus dos Santos, queimado vivo por jovens enquanto
dormia numa praça em Brasília, e a missionária americana Dorothy Stang,
assassinada a mando de fazendeiros no Pará.
A inspiração maior do evento, contudo, foi o padre João Bosco
Burnier, assassinado em Ribeirão Cascalheira, ao lado de Casaldáliga, em
11 de outubro de 1976. O episódio ganhou repercussão internacional.
Padre franciscano nascido em Minas Gerais, Burnier atuava em Diamantino,
no oeste do Mato Grosso, e viajou à região do Araguaia para participar
de uma reunião do Cimi em Santa Terezinha, no norte de São Félix do
Araguaia. O encontro reuniu lideranças locais e religiosos envolvidos na
causa indígena.
Dias após a reunião, Casaldáliga e Burnier pegaram um ônibus em São
Félix do Araguaia rumo a Barra do Garças. Em Ribeirão Cascalheira, no
meio do caminho, decidiram pernoitar. O pequeno povoado, à época
distrito de Barra do Garças, realizava naquela noite uma festa para
Nossa Senhora Aparecida, mas o clima era de terror. O motivo foi a morte
de um cabo da Polícia Militar no povoado, segundo Casaldáliga um agente
conhecido “pelas arbitrariedades e crimes”, que trouxe ao local um
grande contingente de policiais.
Anos depois, o bispo publicou um relato, intitulado Martírio do padre João Bosco Burnier,
pelas Edições Loyola, sobre aquela noite: “Duas mulheres estavam
sofrendo na delegacia, impotentes e sob torturas: um dia sem comer e
beber, de joelhos, braços abertos, agulhas na garganta, sob as unhas.
Ouviam-se os gritos na rua”.
As mulheres foram detidas porque, suspeitava a polícia, sabiam do
destino do rapaz acusado de matar o PM. “Decidi ir à delegacia,
interceder por elas. O padre João Bosco fez questão de me acompanhar”,
escreveu Casaldáliga. Segundo ele, o diálogo com os policias durou de
três a cinco minutos, com os agentes fazendo seguidas ameaças e
insultos.
“Quando o padre João Bosco disse aos policiais que denunciaria aos
superiores dos mesmos as arbitrariedades que vinham praticando, o
soldado Ezy pulou até ele, dando-lhe uma bofetada fortíssima no rosto.
Inutilmente tentei cortar aí o impossível diálogo. O soldado,
seguidamente, descarregou também no rosto do padre um golpe de revólver,
e num segundo gesto fulminante, o tiro fatal, no crânio”.
Os moradores de Ribeirão Cascalheira ainda tentaram socorrer o padre
levando-o para Goiânia num pequeno avião, mas ele já chegou à cidade
morto. “João morreu por acaso. O tiro, na verdade, era para dom Pedro”,
afirma Canuto.
O assassinato de João Bosco Burnier levou a população de Ribeirão
Cascalheira a um ato de desobediência civil – e em plena ditadura. Após a
missa de sétimo dia, realizada no povoado, os moradores se dirigiram à
delegacia e começaram a depredá-la. O posto policial, na beira da
BR-158, foi destruído – os policiais nada puderam fazer para conter a
fúria popular.
O crime repercutiu internacionalmente, sobretudo por causa da figura
de dom Pedro Casaldáliga, um dos principais religiosos no Brasil a se
opor à ditadura.
Meses antes, naquele mesmo ano de 1976, outro crime no Mato Grosso
vitimou um padre. Em julho, o missionário alemão Rodolfo Lunkenbein, que
atuava na região, e o líder indígena Simão Bororo foram assassinados
por ex-moradores retirados da área onde se demarcou a terra indígena de
Meruri, próximo de Barra do Garças. Eles também são homenageados na
Romaria dos Mártires.
A morte de Burnier foi descrita no relatório final da Comissão
Nacional da Verdade, apresentado em 2014, como uma entre as tantas
violações da ditadura. O policial Ezy Ramalho Feitosa, autor dos
disparos contra Burnier, foi expulso da Polícia Militar, mas nunca foi
julgado pelo crime.
A perseguição a Pedro Casaldáliga continuaria. Nascido em Balsareny,
na Catalunha, ele nunca mais retornou à terra natal. Na ditadura, temia
sair do Brasil e ser barrado pelos militares na volta.
A primeira vez que ele saiu do país foi no início dos anos 1990,
conta dom Leonardo Steiner, secretário-geral da Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil (CNBB), quando foi ao Vaticano para uma audiência com o
papa João Paulo II. Os parentes espanhóis viajaram até Roma para
encontrá-lo. Steiner sucedeu Casaldáliga na prelazia de São Félix,
ocupando o cargo de bispo entre 2005 e 2011 – e estava presente na
romaria, em julho.
Após a morte de João Bosco Burnier e a destruição da delegacia, os
moradores de Ribeirão Cascalheira fizeram uma campanha, com o apoio de
Casaldáliga, para que no local fosse construída uma igreja. O Santuário
aos Mártires acabou sendo erguido a cerca de 200 metros de onde morreu o
religioso – a polícia foi contra a construção da igreja na mesma área
da delegacia, onde atualmente existe uma pequena capela em homenagem a
Burnier. Está exposta nas galerias do santuário, ainda com marca de
sangue, a camisa usada pelo religioso na noite em que foi assassinado.
“Vamos tocando o barco, com fé e esperança”
“Toda romaria ele fala que é a última. Foi assim na de 2011. Nesta,
para ele participar, já foi um grande sacrifício. Vamos ver na próxima,
daqui a cinco anos”, comentava o padre André Pereira, da prelazia.
Na noite de abertura, Pedro Casaldáliga permaneceu apenas 40 minutos,
rodeado pela multidão, que o fotografava sem parar. Antes de a
procissão partir da igreja central até o santuário, na entrada da
cidade, o religioso acompanhou a apresentação teatral e as danças da
abertura.
No domingo, dia 17, Casaldáliga foi para o santuário participar da
missa de encerramento. Protegido do forte sol por um séquito de
admiradores, ele acompanhou a celebração da frente do palco, seguindo as
músicas e os cânticos com as batidas do pé e as mãos.
Pela primeira vez na história da romaria, ele não conduziu missa nem
fez pronunciamento. Sintoma do “irmão Parkinson”, como ele já definiu a
doença degenerativa que enrijece os músculos, sua fala está cada vez
mais prejudicada, o que demanda quase sempre um “tradutor” para ser
compreendido.
De acordo com os auxiliares que o acompanham, o bispo não reclama
muito de sua condição nem fala sobre a morte. Ele continua disciplinado
como antes, garantem, e se adaptou às complicações da doença, como a
dificuldade de deglutição e a rotina de exercícios físicos da
fisioterapia. Um tombo que levou no início desta década fez com que ele
ficasse permanentemente preso à cadeira de rodas.
Pedro Casaldáliga continua inquieto. Também poeta, ele acompanha com
interesse os desdobramentos da crise política no Brasil. Em abril, antes
de o Congresso abrir o processo de impeachment contra Dilma Rousseff (PT), ele escreveu uma carta de apoio à então presidente. Em julho, quando a reportagem da Pública o visitou, ele seguia com interesse as notícias de Brasília.
Em 2011, na penúltima romaria, ele comentou com os auxiliares que
seria a sua última, já que na próxima ele provavelmente estaria “nos
braços do Pai”. Errou.
Em julho, após fazer sua oração matinal diária na capela dos fundos
de sua casa, em São Félix, o religioso mantinha-se otimista: “Fé e
esperança. Sempre. Vamos, enquanto isso, tocando o barco”.
Dom Pedro Casaldáliga: "O problema é ter medo do medo"
https://www.youtube.com/watch?v=8bo_3rUubEY
Disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2016/09/21/politica/1474488836_629767.html?id_externo_rsoc=FB_CC
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