No curtíssimo debate
sobre a PEC 241 antes da primeira votação na Câmara, chamou a atenção
uma estratégia para torná-la compreensível e palatável para a maioria da
população. Em discursos no parlamento e artigos na mídia,
o orçamento público foi comparado ao orçamento doméstico ou familiar, e
a PEC foi vendida como um dispositivo que forçaria os futuros governos a
definirem melhor as prioridades do país.
O congelamento das despesas públicas por um prazo de 20 anos – o que,
grosso modo, ocorrerá caso a PEC seja aprovada – acirraria a disputa
entre diferentes segmentos sociais por acesso a recursos públicos e
pressionaria o Congresso a colocar em primeiro plano as necessidades da
maioria da população, em especial aquelas envolvendo saúde e educação.
Residiria aí uma incompreendida virtude da proposta.
“É claro que vamos poder aumentar
gastos em saúde, mas vamos ter que tirar de algum lugar. Agora, a gente
vai ter que dizer que quer mais dinheiro para um gasto e que quer menos
gastos em outros setores. E responsabilidade, para qualquer gestor, seja
o pai de família, seja o empresário, seja o governante, é não gastar
mais do que arrecada e escolher onde gastar o que arrecada”, definiu, a
propósito, o Senador Cristovam Buarque.
A comparação poderia até fazer sentido se não estivéssemos falando de
um país que, há exatos 28 anos, entendeu que mesmo os conflitos
distributivos seriam limitados por um compromisso mínimo de gastos em
saúde e educação.
A Constituição de 1988 estabeleceu à União a obrigação de aplicar 15% de sua receita corrente líquida em ações e serviços públicos de saúde e 18% de sua receita líquida de impostos na
manutenção e desenvolvimento do ensino. Retornando ao exemplo do
orçamento familiar, é como se, ao “escolher onde gastar”, o “pai de
família” – figura, aliás, inapropriada para descrever a estrutura decisória de quase a metade das famílias no Brasil – estivesse constrangido por contratos vitalícios com escola e plano de saúde.
Os defensores da PEC 241 dizem que essas vinculações já vinham sendo desrespeitadas por expedientes como a Desvinculação de Receitas Orçamentárias (DRU) ou, no caso da saúde, a Emenda Constitucional 86, que flexibilizam ou escalonam a necessidade de atendimento dos patamares estabelecidos como mínimos em 1988
Pode ser, mas o fato é que, como
princípio, a vinculação jamais deixou de viger. Ao contrário, sua
natureza “programática” inspirou grandes avanços, como as metas de investimento do Plano Nacional de Educação e a destinação de verbas para educação e saúde no Fundo Social do Pré-Sal. Avanços a que a PEC 241 põe fim, ao reduzir o orçamento dessas áreas pelos próximos 20 anos aos valores reais gastos em 2017. Cálculos
recentes do Ipea estimam que tais medidas podem gerar um prejuízo de
até R$ 1 trilhão para o orçamento da saúde, em comparação com o regime
atual.
Ainda que a PEC 241 tivesse, de fato, a virtude de acirrar o conflito
distributivo, uma coisa seria fazê-lo em condições de normalidade
democrática, na qual os interesses da maioria (desorganizada) da
população pudessem estar plenamente exprimidos. Outra coisa é fazê-lo no
contexto de um governo não eleito – desobrigado, portanto, a prestar
contas sobre suas decisões – e responsivo apenas aos interesses das
elites (do funcionalismo, do empresariado e da mídia).
Desprovido de seu único meio de pressão, o voto, o povo assiste, atônito e impotente, isso que Luiz Carlos Bresser Pereira bem
denominou de “luta de classes inversa” – dos ricos contra os pobres.
Não há conflito, apenas opressão, em tais condições de desigualdade
política.
É notável, por fim, a transformação no direito público embutida na PEC 241.
Quando me tornei um estudante do
direito público, vivíamos sob o impacto da queda do Muro de Berlim, do
triunfo do capitalismo liberal e de crises fiscais nas
sociais-democracias europeias.
As constituições “dirigentes”, como a portuguesa, na qual muitos de
nós víamos um paralelo da Constituição de 1988, eram acusadas de
“materializar” demais as expectativas por igualdade. A teoria do direito
público reivindicava modelos mais flexíveis, que dessem maior espaço
para articulações entre Estado e mercado e que retirassem do legislador
ordinário e dos juízes a “sobrecarga” de uma visão demasiadamente
ambiciosa da ordem social, vislumbrada em processos constituintes como o
português e o brasileiro. Foi um período de muitas revisões
epistemológicas e inovações teóricas; um verdadeiro divisor de águas nos
estudos da área.
O salário mínimo teve notável aumento real; um colchão de políticas sociais se armou e deu conforto e segurança a milhões de famílias.
No Brasil, muito mais que na Europa e
nos EUA, onde as “terceiras vias” tiveram vida curta, vieram governos de
esquerda que, beneficiados por um contexto externo favorável, mas
também por alguma capacidade de aprendizado político-institucional,
contribuíram para tornar mais efetivos os direitos previstos na nossa
Carta. O salário mínimo teve notável aumento real; um colchão de
políticas sociais se armou e deu conforto e segurança a milhões de
famílias.
A crise fiscal, decorrente não do excesso de gastos sociais, mas da crise econômica internacional e de quebra nos investimentos das empresas,
afetou-nos como havia afetado os europeus no final dos anos 1990. Mas,
sob a égide de uma “luta de classes inversa”, o seu impacto sobre o
direito está se mostrando duplamente invertido em relação àquela
experiência histórica.
Por um lado, a PEC 241 “materializa” expectativas (no caso, de
pagamento de dívida), engessando a ação do Estado por uma geração
inteira.
Por outro, por suas características estruturais e razões
conjunturais, engessa a ação do Estado não para promover mais igualdade,
mas sim para cristalizar e ampliar desigualdades.
É uma tragédia política e jurídica.
Disponível em: https://theintercept.com/2016/10/13/pec-241-e-uma-tragedia-politica-e-juridica/
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