Sumário
1. O olhar sociológico
2. O olhar fenomenológico
3. O olhar psicológico
4. O olhar teológico
5. Um campo semântico em discussão
6. A busca pela experiência espiritual
Abordar a questão da experiência
religiosa é adentrar-se por caminhos extremamente complexos e cada vez
mais problematizados nesse tempo de crise das instituições tradicionais
de sentido. A própria categoria “religião” ganha uma pletora de
significados, assim como o “campo religioso” abrange hoje outros
aspectos que não se enquadram precisamente no âmbito das religiões. Como
assinalaram Carlos Steil e Rodrigo Toniol, o conceito mesmo de religião
torna-se hoje inadequado para “designar um habitus que se
expressa por meio de espiritualidades, filosofias de vida e experiências
do sagrado que compõem determinado regime de crer” (STEIL, TONIOL,
2012).
A noção de experiência veio definida com
o rigor necessário pelo filósofo Henrique Cláudio de Lima Vaz, em
clássico artigo do início da década de 1970. Justificava, na ocasião, a
pertinência de uma não oposição entre experiência e pensamento. Em sua
argumentação, a experiência vem definida como “a face do pensamento que
se volta para a presença do objeto” (LIMA VAZ, 1974, p.76). A
experiência envolve assim um campo de relação ativa entre a consciência e
o fenômeno, suscitando sua tradução em linguagem, apesar de toda
dificuldade que acompanha esta operação, sobretudo em razão da inefabilidade da presença.
A linguagem busca, porém, traduzir a presença, mesmo com o limite de
sua formalidade: “A presença sem a linguagem é opaca, a linguagem sem a
presença é vazia” (LIMA VAZ, 1974, p.79).
A experiência religiosa diz respeito ao
envolvimento com o sagrado, evocando na consciência questões que tocam o
âmbito essencial do sentido. Na busca de situar a peculiaridade desta
experiência religiosa vinculando-a à estrutura da experiência, pode-se
dizer que
na experiência do sagrado o polo da presença define-se pela particularidade de um fenômeno cujas características provocam, no polo da consciência, essas formas de sentimento e emoção que formam como que um halo em torno do núcleo cognoscitivo da experiência e que análises clássicas como as de Rudof Otto procuram descrever (LIMA VAZ, 1974, p.82).
A experiência religiosa pode ser captada
por oculares diversificadas, envolvendo campos distintos de saber, que
se inter-relacionam e dialogam, favorecendo perspectivas dinâmicas para a
sua compreensão. Ao lado de um olhar sociológico, outras contribuições
se somam, como as advindas da perspectiva fenomenológica, psicológica e
teológica, de forma a abrir o campo da discussão em terreno tão complexo
e removido como este da experiência religiosa.
1. O olhar sociológico
A peculiaridade do olhar sociológico
sobre o fenômeno religioso consiste em trazer a questão para suas formas
concretas de inserção no tempo. O fenômeno está aí, acontecendo em
expressões efetivas. São representações e crenças, são ritos específicos
que traduzem, como indica Emile Durkheim, um sistema de forças
bem vivo. Esse sentimento não pode ser ilusório, pois esteve sempre
acompanhando a dinâmica da humanidade: tem correspondência com algo no
real. Trata-se de um sentimento demasiado geral e que traduz a
presença no humano de uma força dinamogênica inusitada, que o ajuda a
suportar as dificuldades da existência e também superá-las. Como pontua
Durkheim, a religião tem como função ajudar a viver, suscitar um agir,
tudo isso animado por um sentimento peculiar de poder que eleva
o ser humano acima de suas potencialidades, auxiliando-o a fazer frente
às provas do dia a dia. Ela é mais um sistema de forças que de ideias.
O que irmana as diversas crenças
religiosas, indica Durkheim, é a percepção de classificação das coisas
como sagradas ou profanas. As coisas sagradas envolveriam um círculo de
objetos de extensão infinitamente variável, tendo como peculiaridade uma
percepção de dignidade singular – e superioridade – com
respeito às coisas profanas. O caráter sagrado, por sua vez, não é algo
intrínseco a uma coisa reconhecida como sagrada, mas é um dado acrescentado. Quando se fala em força religiosa o que está em jogo é um sentimento inspirado pela coletividade em seus membros e que vem projetado e objetivado.
No mesmo movimento que estreita o laço
do fiel com seu Deus, firmam-se também os laços que unem o indivíduo à
sociedade de que é membro. Isso acontece de forma precisa nas práticas
do culto. Ali ocorre não apenas um sistema de signos que
traduzem a expressão da fé, mas uma “coleção de meios pelos quais ela se
cria e se recria periodicamente” (DURKHEIM, 1989, p.494). A religião
vem definida como um sistema solidário de crenças e práticas
relacionadas às coisas sagradas, que congregam seus aderentes numa mesma
comunidade moral (DURKHEIM, 1989, p.79).
O traço dinamogênico da religião veio
também sublinhado por Peter Berger em sua reflexão sociológica. A
religião vem concebida como empreendimento fundamental na manutenção da
plausibilidade do sentido, com derivação ainda mais substantiva por
relacionar-se a uma fonte poderosa. Trata-se de uma “cosmificação”
pontuada pela qualidade desse poder misterioso e envolvente que é o
sagrado. Na medida em que transcende e envolve o ser humano nessa
dinâmica de ordenação da realidade, o cosmos sagrado “fornece o supremo
escudo do homem contra o terror da anomia. Achar-se numa relação
‘correta’ com o cosmos sagrado é ser protegido contra o pesadelo da
ameaça do caos” (BERGER, 1985, p.40).
Dizia com razão Durkheim que as crenças
“só são ativas quando compartilhadas”. É também o que reitera a
socióloga francesa Danièle Hervieu-Léger ao destacar uma importância
singular ao exercício da crença numa tradição ou linha de continuidade
do dispositivo devocional. A tradição ganha em sua reflexão um lugar
singular, enquanto lugar de conservação e atuação da crença. Ela é
“geradora de continuidade”. Sua definição de religião é bem precisa:
“Uma ‘religião’ é um dispositivo ideológico, prático e simbólico
mediante o qual se forma, se mantém, se desenvolve e se controla a
consciência (individual e coletiva) da pertença a uma descendência
crente específica” (HERVIER-LÉGER, 1996, p.129).
Com o advento da modernidade e das
sociedades pós-tradicionais, ocorre uma crise de credibilidade dos
sistemas religiosos e a emergência crescente de novas formas de crença. O
que caracteriza o tempo atual não é a mera indiferença com respeito à
crença, mas a perda de sua regulamentação por parte das
instituições tradicionais produtoras de sentido. O que ocorre é uma
“bricolagem de crenças”, uma individualização e liberdade na dinâmica de
construção dos sistemas de fé. Como sublinha Hervier-Léger,
o principal problema, para uma sociologia da modernidade religiosa é, portanto, tentar compreender conjuntamente o movimento pelo qual a Modernidade continua a minar a credibilidade de todos os sistemas religiosos e o movimento pelo qual, ao mesmo tempo, ela faz surgirem novas formas de crença (HERVIER-LÉGER, 2008, p.41)
Torna-se impróprio falar simplesmente de um retorno ou revanche
do religioso no tempo atual. O processo é mais complexo. Há de um lado a
desqualificação das “grandes explicações religiosas do mundo” que
forneciam o sentido e plausibilidade para as pessoas e grupos
religiosos. Mas, por outro, essa mesma modernidade secularizada não
consegue responder às demandas de nomização, acumulando não só utopia
mas também opacidade, e com isso gerando simultaneamente “as condições
mais favoráveis à expansão da crença” (HERVIER-LÉGER, 2008, p.41).
2. O olhar fenomenológico
A experiência religiosa foi objeto de
muita reflexão também na fenomenologia da religião e na teologia,
buscando resgatar o desejo de transcendência presente na dinâmica
humana. Clássica é a posição do pensador romeno Mircea Eliade, na busca
de uma essência do fenômeno religioso, visando encontrar na experiência
do sagrado o traço fundamental da experiência religiosa. Para Eliade, o
sagrado não pode ser entendido como uma fase na história da
consciência, mas um “elemento na estrutura da consciência” (ELIADE,
1978, p.13). Nesse sentido, o dado religioso seria constitutivo do ser
humano como tal. Segundo essa visão mais essencialista, o sagrado seria
“o real por excelência”, fonte de vitalidade e fecundidade. Estar em
relação com o sagrado, ou viver marcado por essa presença, é propiciar
uma inserção na realidade objetiva (ELIADE. s/d, p.42). Nesse quadro
interpretativo, é o sagrado que possibilita a orientação e a construção
de mundo, firmando propriamente a ordem cósmica. Não se poderia conceber
a existência humana fora dessa comunicação com o numinoso, pois ele é
por excelência o dossel protetor contra a ameaça de carência de sentido
ou do caos.
No olhar fenomenológico, o âmbito do
sagrado circunscreve o “mundo do definitivo” e do necessário. Diante
dele todas as realidades da vida ordinária e todas as criaturas passam a
ser percebidas como penúltimas, envolvidas por um sentimento vivo de
dependência. O sagrado traduz uma realidade que denota majestade,
superioridade e transcendência. Diante dele não há sentimento possível
senão o de criatura. É algo simultaneamente fascinante e tremendo, como mostrou com acuidade Rudof Otto. Por um lado, arrebata, desconcerta e comove, por sua qualidade de tremendum
e de “totalmente outro”. Isto pelo fato de estar fora da alçada do
domínio das coisas familiares e habituais, típicas do mundo profano. Por
outro, provoca fascínio, encanto e atração. Como sublinha Otto,
“provoca na alma um interesse que não se pode dominar” (OTTO, 1992,
p.41). É esse sentimento do numinoso, do totalmente outro, que está na
base do sentimento religioso e da experiência religiosa, como indicam os
autores da fenomenologia da religião.
Essa abordagem fenomenológica vem sendo
objeto de crítica de autores das ciências da religião, sobretudo em
razão de sua perspectiva essencialista e sua tendência à generalização
(GASBARR0, 2013, p.93 e 95). Como assinala Frank Usarski, um dos mais
fortes críticos a tal perspectiva no Brasil,
o maior desafio que o mundo complexo das religiões representa para um fenomenólogo “clássico” é o da abstração da complexidade dos fatos reais para chegar ao “conhecimento” do sagrado o mais imediatamente possível, ou seja, da suposta essência de qualquer “verdadeira” religião que repercute no interior de um ser humano sensível para tal “última realidade” [...]. Enquanto os fenomenólogos pretendiam ir além dos aspectos particulares que constituem uma religião no contínuo tempo-espaço, para chegar à essência da religião em si, as gerações posteriores dos cientistas da religião defendem o caráter multidisciplinar dos seus estudos e a necessidade de uma colaboração entre especialistas formados em diferentes subdisciplinas e interessados em todas as dimensões que compõem qualquer religião concreta (USARSKI, 2006, p.41-43).
Mas não se pode desconhecer a
importância do aporte da fenomenologia da religião para acessar a
experiência religiosa, sobretudo o destaque dado à importância do “tato
religioso” para o pesquisador que se disponha a adentrar-se no domínio
complexo desse fenômeno. Em casos particulares, a perspectiva contrária,
animada pelo “ateísmo metodológico”, não consegue aproximar-se com
profundidade do mundo do outro, ou o que é mais grave, acaba por
favorecer uma cognição problemática, quando não miserável sobre a
experiência da alteridade (PONDÉ, 2001, p.54-9).
3 O olhar psicológico
Não há como captar a experiência religiosa desconhecendo a extraordinária polimorfia
que a caracteriza. Trata-se de uma realidade que vem carregada por
múltiplos e complexos significados. A abordagem psicológica da religião
busca uma aproximação do fenômeno tendo em conta suas tensões e
polarizações constitutivas. O objetivo proposto é o de observar
a conduta dos sujeitos e das instituições, com particular atenção aos
aspectos subjetivos. Como indicou com acerto Edênio Valle, ainda que
reconhecendo os inúmeros desacordos que dividem os praticantes dessa disciplina, a aproximação psicológica ao fenômeno religioso guarda alguns traços importantes:
As definições deixam claro que as religiões reais – com seu peso institucional e sócio-histórico – e a religiosidade, sua face subjetiva, acontecem no jogo das múltiplas relações que se estabelecem entre o sujeito religioso, o grupo religioso ao qual se afilia e o universo das crenças e valores vigentes naquela dada sociedade, grupo ou época, considerados, inclusive, seus respectivos modelos civilizatórios e respectivos estágios de desenvolvimento tecnológico-científico e político-organizativo. Neste contexto de extraordinária complexidade, o psicólogo tenta chegar à opção vivencial e à realidade psicológica e humana dos indivíduos, assim como essa aparece em seu comportamento religioso (VALLE, 1998, p.260).
O olhar psicológico, aninhado num ramo
específico das ciências da religião, busca examinar os fenômenos e
manifestações religiosas tendo em vista a polifonia de suas dimensões
comportamentais. É, porém, um olhar que se encontra ainda em estágio de construção,
mesmo com uma história que já soma quase cento e cinquenta anos. Esse
caminho veio recentemente traçado por Jacob Belzen, da Universidade de
Amsterdã, que sintetiza de forma muito feliz os passos até agora
percorridos pela Psicologia da Religião. A forma como se concebeu ou se
exerceu esse campo temático foi muito diversificada: ora se firmou a
serviço do religioso, ou então a serviço da crítica à religião ou do
conhecimento científico. Perspectivas que se vinculam a um dos três
caminhos são recorrentes. Mas uma outra perspectiva, sublinhada por
Belzen, vem também se firmando, e é bem sugestiva. Trata-se do caminho
nomeado como “Parecerista” (do alemão Rezensentin). Para usar uma metáfora do mundo da música, esta perspectiva tem como foco principal a atenção
desperta para os que praticam a música, no caso, os executantes da
religião. E o autor justifica esta posição: “Os psicólogos da religião
que exercem sua profissão como Pareceristas sobre uma religião
ou comportamento religioso não se sentem chamados a escrever sobre
religião em geral, mas sim sobre um comportamento religioso concreto”
(BELZEN, 2013, p.326-7). Esse modo de procedimento é distinto de certa
concepção exteriorista ou neutra, bem vigente neste campo, que destaca o
pesquisador do objeto de seu estudo em vista de uma maior
cientificidade. Ao contrário, os que seguem a nova orientação estão bem
cientes da importância de uma maior aproximação da religiosidade
particular para uma interpretação correta das manifestações subjetivas
do exercício da religiosidade. Esta nova ocular vem assim recuperar a
dimensão hermenêutica da Psicologia da Religião, instrumentando-a com
novos atributos para conhecer o sujeito religioso tanto a partir de fora como de dentro de sua prática religiosa.
4. O olhar teológico
O desejo de transcendência, já presente
na ocular fenomenológica, vem também trabalhado em âmbito teológico,
sendo destacado com ênfase por autores como Karl Rahner. Esse grande
arquiteto da teologia católica dedicou-se a compreender os traços dessa
“experiência transcendental” que, a seu ver, opera em todos os seres
humanos. Para ele, não há como desvencilhar-se desse dinamismo que atua
na consciência subjetiva, como traço necessário e insuprimível, mesmo
que ocorra de forma anônima ou atemática. Cada consciência subjetiva
estaria assim animada por esse “caráter ilimitado de abertura”. Enquanto
ser de transcendência, o ser humano está sempre, e antes de qualquer
ato de liberdade, situado e orientado na atmosfera de um “mistério santo
e absolutamente real”. É esse mistério, simultaneamente transcendente e
familiar, o que existe “de mais evidente”, colocado sempre à disposição
do humano.
Segundo Rahner, esta experiência
transcendental do sujeito vem marcada por universalidade, podendo
ocorrer de forma atemática e mesmo “arreligiosa”, independente de uma
experiência religiosa explícita. É uma experiência original,
ontologicamente fundada. Ela acontece de fato onde quer que o sujeito
atue de forma livre e profunda a sua existência. É algo que se
disponibiliza para todos, e que pode ocorrer “até mesmo em formas e
conceituação que aparentemente nada têm de religioso” (RAHNER, 1989,
p.164). Ocorre quando o sujeito se vê defrontado, no âmbito de suas
atividade cotidianas, com o “abismo de sua existência”, com a
profundidade que escapa ao burburinho tranquilo das coisas familiares.
5. Um campo semântico em discussão
Torna-se cada vez mais complicado querer
hoje caracterizar a religião como uma atividade específica do ser
humano, como definido em alguns campos da fenomenologia da religião. É
verdade que alguns autores como Keiji Nishitani e Paul Tillich buscaram
ampliar esse campo semântico, visando identificar um sentido mais lato
de religião. Nesse caso, a expressão envolveria uma dimensão mais ampla,
associada à metáfora da profundidade. Religião seria assim a “dimensão
da realidade suprema nos diferentes campos do encontro do homem com a
realidade” (TILLICH, 1968, p.96). Igualmente Nishitani, da Escola de
Kyoto, apresenta um conceito de religião mais amplo, que a associa à
“real consciência da realidade”. Para ele, a exigência religiosa
envolveria a “busca humana da verdadeira realidade de um modo real”,
para além de uma expressão exclusivamente teorética (NISHITANI, 2004,
p.35-6).
Com base nas experiências do sagrado ou
espirituais que não se encaixam exclusivamente no conceito tradicional
de religião, há que problematizar certa ideia rotineira de religião que a
enquadra como um traço do humano. Estudiosos da história das religiões e
das mitologias, como Jean-Pierre Vernant lançam suspeitas sobre os
procedimentos analíticos habituais com respeito à cobertura da noção de
religião. Há povos ou tradições que não trabalham com a distinção
sagrado/profano, nem com noções como a de um Deus único, ou mesmo de
Deus. Outras tradições que não trazem em seu repertório dogmas ou
credos, um clero regular ou promessas de imortalidade. Critica-se a
ideia mesma de religião como sendo “estreitamente etnocêntrica e
ocidental” (GEFFRÉ, 2012, p.15-6).
Como mostrou Pierre Gisel, o dado
religioso não pode ser concebido como algo apriorístico, ou dimensão
específica do humano, mas é algo que só se dá em formas determinadas de
crenças ou religiões específicas. Trata-se, antes, de uma “construção
cultural”. As religiões são historicamente firmadas e construídas. O
termo religioso, distintamente da forma como veio concebido numa perspectiva mais substantiva ou essencialista, é um constructo:
o que ele circunscreve não se encontra em todas as culturas ou em todas as civilizações, e quando ele designa um campo próprio – como na história ocidental permeada de cristianismo –, este campo é, de fato, um “cenário”, no qual realidades antropológicas e sociais mais amplas vêm se apresentar (GISEL, 2011, p.169).
Mudanças essenciais vêm ocorrendo no
âmbito da modernidade pós-tradicional, com implicações bem precisas na
dinâmica religiosa. Junto com a desinstitucionalização crescente,
expressão da crise das instâncias sólidas que fundavam, enquadravam e
regulavam o campo das experiências religiosas, instala-se a quebra de
transmissão da memória religiosa. As filiações tradicionais sofrem
impacto decisivo e novas crenças se firmam fora do circuito tradicional
das religiões tradicionais. Como pontua Pierre Sanchis, “um dos
problemas mais críticos que as instituições religiosas terão de
enfrentar nos próximos tempos será de se haver com um significado menos
totalizante para a relação identitária que seus fiéis manterão com elas”
(SANCHIS, 2013, p.13-4).
Com todas as mudanças provocadas pela
modernidade pós-tradicional, um dado permanece vigente: a incapacidade
de lidar com as incertezas antropológicas que permanecem acesas no
tempo. Ainda que superando certos fatalismos típicos das sociedades
tradicionais, a modernidade não conseguiu responder à sede de sentido de
seus indivíduos. É uma demanda que permanece viva e aguda
(HERVIEU-LÉGER, 1996, p.151). Isto talvez ajude a explicar a grande sede
espiritual que move um importante segmento de pessoas no momento atual,
suscitando novas questões e indagações e ampliando o campo da discussão
em torno da experiência do sentido.
6. A busca pela experiência espiritual
Ainda que a experiência religiosa vigore
como um dado presente e singular, talvez seja mais pertinente falar em
experiência espiritual, caso se queira buscar um campo de maior
universalidade. Há que distinguir entre religião e espiritualidade, como
tão bem mostrou Dalai Lama. A espiritualidade está relacionada com
“qualidades do espírito humano” tais como o amor, a compaixão, a
paciência, a hospitalidade, a atenção, delicadeza e doação. São
qualidades que independem de uma vinculação religiosa, e qualquer
indivíduo é capaz de desenvolvê-las, mesmo em alto grau, mesmo não
pertencendo a um sistema religioso determinado. Pode-se até dispensar a
religião, mas não essas “qualidades espirituais básicas” (DALAI LAMA,
2000, p.32-3).
Uma série de autores não religiosos têm
hoje sublinhado a importância da vida espiritual como traço elevado do
ser humano, e capaz de ser experimentado mesmo fora de uma inserção
religiosa. É o caso de André Comte-Sponville em seu trabalho sobre O espírito do ateísmo.
Para ele, a espiritualidade tem a ver com a abertura do espírito e o
defrontar-se com a vida em profundidade. Essa abertura ao infinito, à
eternidade, ao singular que existe no próprio sujeito, despertando
dimensões inusitadas, é de fato exercício de vida espiritual. Se é
verdade que “toda religião pertence, ao menos em parte, à
espiritualidade”, há também que afirmar que “nem toda espiritualidade é
necessariamente religiosa” (COMTE-SPONVILLE, 2007, p.129).
A espiritualidade, sublinha
Comte-Sponville, é algo que se dá, de forma simples e até mesmo banal,
no domínio da experiência cotidiana, diante da força da “imanensidade”.
Trata-se do sentimento essencial de estar diante do Todo, que se
apresenta no tempo e que transborda o sujeito por todos os lados.
Criando-se as condições para uma tal experiência, algo que requer
atenção e disponibilização interior, a estupefação diante do Mistério
revela-se imediata: “O mundo é nosso lugar; o céu, nosso horizonte; a
eternidade, nosso cotidiano” (COMTE-SPONVILLE, 2007, p.137).
Em linha de sintonia com esta
perspectiva, pode-se também assinalar a reflexão de Pierre Hadot, que
fala em “exercício espiritual”, entendido como uma prática voluntária e
pessoal de desapego e transformação de si mesmo, de descentramento do
ego em favor de uma aliança superior do sujeito com a totalidade das
coisas (HADOT, 2008, p.119-20; MANCUSO, 2012, p.143-4; ). Trata-se de
uma experiência que não está destacada da vida cotidiana, mas que
encontra aí o cenário vivo de sua realização. Citando uma passagem de
Wittgenstein a propósito da mística, Hadot destaca essa singularidade da
“maravilha pela existência do mundo”, de ser capaz de ver o mundo como
um milagre. Não há como acessar a riqueza de uma tal
experiência espiritual fora do cotidiano. É ali que os aspectos mais
simples, ricos e essenciais das coisas encontram sua guarida (HADOT,
2007, p.16-7 e 77; PENA-RUIZ, 1998, p.22).
Faustino Teixeira – PPCIR – UFJF, Brasil. Texto original português.
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