1. Introdução
As religiões preservam um patrimônio
espiritual valioso e plural, pois registram um conjunto significativo de
experiências, valores, métodos e itinerários espirituais que, no curso
dos séculos, têm inspirado milhares de pessoas e comunidades. Ao lado do
cristianismo, esse patrimônio compõe o tesouro milenar da experiência
religiosa humana, objeto não só de estudo, mas também de diálogo entre
os seguidores das diferentes religiões. Com efeito, o diálogo da experiência religiosa
é uma via específica do diálogo inter-religioso que tem promovido o
encontro, a compreensão recíproca e a convergência das religiões em
aspectos comuns, como a valorização da transcendência, a visão sagrada
do tempo e do cosmos, o respeito pela pessoa humana, a promoção da
justiça, o cuidado ecológico e a paz.
Considerando a abrangência do tema para a
História das Religiões, a Teologia e a Espiritualidade Cristã,
buscou-se apresentar, aqui, uma seleção de elementos que nos permita
perceber e apreciar a riqueza espiritual das religiões, tendo presente
nossa identidade cristã. Assim, foram elencados os elementos espirituais
que respondam a dois critérios: de um lado, que sejam característicos
de um determinado credo, pertencendo à sua herança própria; de outro,
que sejam significativos à fé cristã, porque dialogam com as
perspectivas teológicas do cristianismo e favorecem o aprofundamento da
própria espiritualidade cristã.
Há quem admita que certos elementos da
experiência mística das religiões possam ser assumidos seletivamente
pela fé cristã, à medida que – respeitado o dado revelado – contribuem
para o aprimoramento de métodos e percepções da espiritualidade cristã,
como a postura apofática diante do Absoluto (budismo), os métodos de
concentração no ato de meditar (hinduísmo), o vínculo com a natureza
criada (culto de Orixás) ou o abandono confiante de si mesmo a Deus
(Islã Sufi). Outros se posicionam mais no campo da observação que da
assunção: estudam e apreciam positivamente os elementos espirituais das
religiões, mas assumem somente aqueles típicos da tradição judaica já
presentes nas Escrituras, na Liturgia e/ou na tradição Patrística.
Trata-se de um debate em curso, que
envolve fenomenólogos, teólogos e missionários cristãos (cf. CUTTAT,
1996; BASSET, 1996; NATALE TERRIN, 2003; DUPUIS, 2004). No passado, os
ritos sacramentais assumiram material simbólico dos cultos
mediterrâneos, sem perder o sentido pascal; os hesicastas aplicavam
disciplina mental e controle da respiração, ao modo oriental, para orar
com a mente e o coração; e Santo Agostinho integrou a perspectiva
personalista do platonismo em seu caminho de conversão ao Evangelho (cf.
CUTTAT, 1996, p.763-73).
Recentemente, tanto o magistério da
Igreja quanto a reflexão teológica têm discernido essas questões à luz
das seguintes afirmações de fé: a vontade salvífica de Deus é universal e
há um só plano redentor para toda a humanidade (Ef 1,9-10; 1Tm 2,4-6); a
mediação salvadora de Jesus – o Verbo de Deus – é objetivamente
universal, até mesmo para quem não o conhece, nem o professa como
Salvador (Jo 1,3-4; Col 1,15-17); o Espírito Santo ilumina a
inteligência e suscita a oração autêntica de todos os que buscam Deus
com sinceridade, em qualquer cultura e credo (Sab 1,6-7; At 17,27-28);
toda pessoa humana é “imago Dei” (imagem e semelhança de Deus) enquanto
criatura, já antes do batismo, destinada a conhecer e amar o Criador que
a ela se revela (At 17,28; Col 1,15-16); enfim, que há uma Revelação
geral de Deus a todos os povos, além da tradição judaico-cristã, pela
qual o Verbo se manifesta e estabelece com a humanidade um diálogo de
salvação (Mt 2,1-2; Rm 1,19-20); pois “Deus não faz discriminação entre
pessoas: pelo contrário, ele aceita quem o teme e pratica a justiça,
qualquer que seja a nação a que pertença” (At 10,34-35).
Como se percebe, a explanação desses
pontos supera as linhas deste verbete. Para um estudo mais detalhado,
leiam-se os documentos: “Diálogo e anúncio” (Pontifício Conselho para o
Diálogo Inter-religioso), “O cristianismo e as religiões” (Comissão
Teológica Internacional) e “Carta sobre alguns aspectos da meditação
cristã” (Congregação para a Doutrina da Fé).
2. O diálogo da experiência religiosa
Ao lado da convivência cotidiana, da
promoção conjunta do bem comum e do intercâmbio teológico, o diálogo
inter-religioso se dá também no nível da “experiência religiosa, onde
pessoas radicadas nas próprias tradições religiosas compartilham as suas
riquezas espirituais, por exemplo, no que se refere à oração e à
contemplação, à fé e aos caminhos da busca de Deus e do Absoluto”
(Diálogo e anúncio n.42d). É neste nível que se pode indagar, como
cristãos, o que as outras religiões podem ensinar a respeito da
espiritualidade, no sentido aproximativo esclarecido acima (cf. Carta
sobre alguns aspectos da meditação cristã n.16). Em resposta a isso,
propomos aqui sete tópicos de aprendizado dialógico, em que a vivência
da espiritualidade cristã se vê positivamente interpelada a
desenvolver-se e aprofundar-se, com ênfases distintas e/ou
complementares, em face das demais religiões:
2.1 O olhar contemplativo
Nas diversas culturas, as religiões
cultivaram o olhar contemplativo sobre o universo, o devir do tempo, as
demais pessoas e as criaturas em geral. Desenvolveu-se, assim, uma
abordagem da vida, do tempo e do espaço não restrita ao que se pode
medir e explicar por cálculo, mas que descortina uma episteme
(modo de conhecer) de estilo conjuntivo e simbólico. O ser humano se
percebe pequeno diante da imensidão dos céus, mas intimamente conexo com
o mundo, o qual contempla com curiosidade e reverência. Ao observar o
céu, intui-se o infinito; ao seguir o fluxo das estações, percebe-se o
impulso vital da natureza; ao celebrar nascimentos e mortes, indaga-se
sobre o além. A vida revela-se muito mais fluente e complexa do que
poderiam explicar as equações da química e da mecânica.
O olhar contemplativo educa-nos a
procurar as causas primeiras, o tempo antes do tempo, o começo
primordial de todas as coisas, a partir de onde podemos interpretar o
presente e vislumbrar o futuro. Assim, as religiões sugerem emblemas do
mundo, em símbolos e narrativas que comunicam sentido e educam à
contemplação (cf. MAÇANEIRO, 2011, p.111-25). O Hinduísmo entrevê a
unidade de todas as coisas por trás da multiplicidade dos fenômenos; o
budismo fala da provisoriedade do tempo e do espaço, cuja consistência
está além do que podemos enxergar; a cabala judaica descobre uma “cadeia
de esferas” (sephirot) interligadas, contendo centelhas
divinas que se combinam para criar os corpos, da pequena célula às
grandes estrelas; o Islã reverencia a potência criadora da Palavra
divina, que fez o mundo visível e o invisível; o culto de Orixás diz que
tudo se mantém pela energia (axé), que se direciona ao propósito de manter o equilíbrio humano e cósmico (obá).
Considerando que nós, cristãos, vivemos
predominantemente no Ocidente, dominado pela racionalidade analítica e
instrumental, aprendemos – com as demais religiões – a preservar e
atualizar nosso olhar contemplativo: intuitivo, mas não ingênuo;
buscador das causas e aberto ao futuro; em diálogo com as ciências, mas
não reduzido à parcela evidente da matéria, capaz de desvendar o sentido
profundo dos fenômenos à luz do querer benevolente do Criador (cf. Ef
1,3-10).
2.2 O reconhecimento da transcendência
As religiões declaram que a realidade
vai além do quanto podemos medir, explicar e reproduzir. De fato, mesmo
no campo científico, constatam-se ondas magnéticas e variações de
energia invisíveis ao olho humano, presentes no arranjo geral do cosmo e
da vida planetária. Além disso, as religiões entendem a transcendência
como o Todo que contém a parte, ou o sentido último da existência: a
ciência mostra o como; as religiões decifram os porquês. Surgem noções como o Tao:
Olha-se e não se vê: chama-se invisível.
Escuta-se e não se ouve: chama-se inaudível.
Toca-se e não se sente: chama-se impalpável.
Essas três coisas não se podem indagar.
Por isso, mescladas, formam juntas uma só coisa.
No alto não é claro,
Abaixo não é escuro.
É inesgotável e não pode ser nomeado.
Remonta-se ao não-ser das coisas.
Chama-se forma sem forma; figura sem figura.
Não se pode compreender: é mistério.
Quem o encara, não vê seu rosto.
Quem o segue, não vê suas costas. (Tao-te-ching: Capítulo IV, 1.5.3)
O Tao não tem definição: é uma
intuição que afirma a Unidade que integra todos os seres e todos os
fenômenos, anterior às distinções que percebemos. Pois para o taoísmo,
bem como para o hinduísmo e o budismo, a realidade não se define pelas
formas aparentes; nem mesmo a Divindade é um Ser ao modo dos demais
seres: forma e figura se desfazem, apontando para um Absoluto que se
mostra e se esconde ao mesmo tempo, fugindo de nossas representações.
Com outra abordagem, o judaísmo e o Islã se concentram nos atributos
positivos do ser, inclusive de Deus, declarando-o Santo, Justo,
Onisciente e Eterno. E, contudo, Deus abarca “o manifesto e o oculto”
(Alcorão 57,3).
Aprendemos, assim, a equilibrar mística e
teologia, intuição e conceito, para não sermos reféns de nossas
representações. Afinal, a verdade da fé professada não está apenas no termo das formulações doutrinais, mas no sentido que
os conceitos preservam. Em última instância, a doutrina deve
converter-se em caridade, na relação com Deus e os semelhantes (cf. Lc
10,29-37; 1Jo 3,16-18). De outro modo, Deus seria apenas uma fórmula
professada, enquanto que é mais que isto: é Amor (cf. 1Jo 4,7-10). A
linguagem das outras religiões nos alerta sobre o valor da analogia e do
símbolo, em relação aos termos e formulações, em vista de uma
espiritualidade que equilibre afeto e inteligência, saber e sabor,
adoração e solidariedade. A síntese desses aspectos certamente favorece
uma espiritualidade cristã mais integral, respeitosa do mistério e
disposta aos novos aprendizados do Espírito Santo, o mestre interior
(cf. Rm 8,26-27).
2.3 A dádiva e a sacralidade da vida
Todos os elementos vitais são acolhidos
como dádiva, pelas religiões: a água, o solo, o ar, os grãos, os
fármacos, as fontes naturais de energia e a identidade genética dos
organismos. Nada disso pode ser produzido pelo engenho humano de uma
forma absolutamente nova: nossa ciência se limita a classificar e
recombinar os componentes. Reconhecendo o valor desses bens naturais, as
religiões celebram a vida como dádiva e reverenciam a Divindade que a
criou e a confiou aos nossos cuidados:
Dono do mundo diante dos deuses,
Senhor de altíssima casa na corte do céu.
Arrasador que fere à direita.
Arrasador que fere à esquerda. (Hino a Ogum: Culto de Orixás)
Que o céu se alegre! Que a terra exulte!
Estronde o mar e tudo o que ele contém!
Que o campo exulte, e o que nele existe!
As árvores da selva gritem de alegria,
diante de Adonai – pois Ele vem! (Salmo 96,11-13: Judaísmo)
Disse o Senhor Krishna:
Eu forneço calor e retenho a chuva.
Sou a imortalidade e a morte personificada.
Tanto o espírito quanto a matéria estão em mim. (Bhagavad-Gita 9,19: Hinduísmo)
Foi Allah quem criou sete firmamentos e outro tanto de terras;
e seus desígnios se cumprem, nos céus e na terra,
para que saibais que Deus é onipotente:
Ele tudo abrange com sua onisciência. (Alcorão 65,12: Islã)
As religiões nos falam da dádiva e do
culto de louvor pela vida recebida. O hinduísmo nos recorda a dimensão
cósmica da existência, maior que o pequenino planeta Terra com seus
habitantes e sua tecnologia tão pretensiosa. O culto dos Orixás aponta
para o poder tremendo da Divindade, percebida na energia ígnea que tudo
derrete (Ogum) e na força das águas abissais (Ocum):
este poder encanta e faz tremer! Assim, a dádiva é acompanhada de
reverência e respeito, redimensionando nossas pretensões de domínio e
exploração da Natureza. Acolhendo a sabedoria das religiões, nós
cristãos festejamos o Deus Criador recitando a mesma bênção proclamada
por Israel: “Bendito sejais, Senhor nosso Deus, Rei do universo, pelo
fruto da videira! Bendito sejais vós, Senhor nosso Deus, Rei do
universo, pelo fruto da terra!” (berakhá judaica, retomada na
apresentação das oferendas do Rito Eucarístico). A dádiva é reconhecida,
e a ação de graças se prolonga na vida preservada e partilhada.
2.4 A conexão humanidade/natureza
Herdeiros do método científico
cartesiano e afoitos em consumir, nós cristãos aderimos quase sem notar
ao jogo financeiro que transforma a natureza em mercadoria. Mas no
princípio não era assim, pois a Sagrada Escritura propõe o mundo como
pomar a ser cultivado, declarando o ser humano guardião e jardineiro dos
bens naturais (cf. Gn 2,8.15). Algo semelhante lemos no Alcorão: “Allah
vos constituiu seus vice-regentes na terra” (Sura 6,165), pois “assim
se comportam os servos do Misericordioso: eles pisam a terra com
humildade” (Alcorão 25,63).
Tanto cientistas quanto teólogos admitem
que o Ocidente tenha um déficit de espiritualidade em comparação com o
Oriente, no que se refere, sobretudo, à natureza (cf. NATALE TERRIN,
2003, p.89-90). Somos mais consumidores do que cultivadores; exploramos
muito e reciclamos pouco; acumulamos mais do que partilhamos. A crise de
recursos naturais, as anomalias climáticas e a pouca distribuição de
alimentos estão aí, alertando sobre uma espiritualidade desatenta às
conexões entre humanidade e meio-ambiente.
Neste sentido, a releitura ecológica da
Bíblia e a elaboração de uma Teologia da Criação mais dinâmica podem
dialogar com a abordagem conectiva da cosmovisão hinduísta e africana.
Para o hinduísmo, tudo está ligado a tudo na constituição do cosmos, que
é movido pelos princípios de geração e degeneração, ganho e perda de
energia, nascimentos e mortes, personificados pelas divindades Vishnu e
Shiva, respectivamente. O ser humano não se encontra fora deste
movimento, mas dentro, ao lado das demais criaturas, embora se distinga
delas pela racionalidade. Já o culto de Orixás vai às raízes da vida, da
saúde e da fecundidade, conectando as habilidades humanas de plantar,
caçar, forjar metais e preparar remédio à sabedoria dos deuses e
ancestrais.
Para o cristianismo, dialogar com estas
perspectivas não significa negligenciar as fontes bíblicas, nem
disfarçar algum tipo de panteísmo, mas acolher enfoques que otimizam
ainda mais nossa confissão cristã no Deus Criador. Assim, nossas
releituras de Teologia da Criação poderão dialogar com as ciências e
também com as demais religiões, em vista da preservação da vida humana e
planetária. Do ponto de vista da conexão humanidade/natureza podemos
desenvolver melhor a Pneumatologia, tratando da ação do Espírito Santo
na criação, como elo das criaturas entre si e destas com o Criador (cf.
Gn 1,2; Sab 7,22 – 8,1; Rm 8,22-23). Do ponto de vista do cultivo, da
geração e da cura, podemos valorizar o corpo como locus da
experiência de Deus, integrando a dimensão terapêutica na compreensão de
salvação integral do cristianismo (cf. Mt 10,1; Lc 7,24-37; Rm 8,18-25;
Tg 5,13-16). “Ou acaso não sabeis que vosso corpo é templo do Espírito
Santo?” (1Cor 6,19).
2.5 O hábito da oração
A oração é uma constante nas religiões.
Embora tenha diferentes sentidos e modalidades – como disciplina mental
para o budismo zen, ou união amorosa com o divino para o Islã Sufi –
todas as religiões a valorizam. Trata-se de uma prática progressiva e
habitual, rumo à excelência: oração apaziguadora, transformadora e
frutuosa. Enquanto o hinduísmo védico acentua a oração litúrgica
acompanhada de oferendas, o hinduísmo devocional se concentra na
recordação amorosa da Personalidade Divina (Krishna) através
dos mantras e do afeto cordial. O budismo monástico, por sua vez,
desenvolveu métodos e ritos comunitários de oração, sem descuidar da
subjetividade espiritual de cada monge, cuja contemplação atinge níveis
notáveis de sintonia psicossomática: a oração budista segue estrita
disciplina mental, supera o nível das palavras e conceitos, pacifica as
atividades mentais e desenvolve a consciência corporal, com técnicas de
respiração. No judaísmo, temos a poesia dramática dos salmos (tehilim) e as orações feitas na sinagoga ou em família (kidushim).
Como ocorre no cristianismo, encontramos
nas religiões diferentes graus oracionais: desde as orações mais comuns
até as formas elevadas de contemplação. A cabala judaica desenvolveu a
oração solidária e zelosa, pela qual o fiel (hassid) se associa
à graça redentora que envolve todos os homens, ciente de que a centelha
divina que nele arde o aproxima de Deus e das demais criaturas. A prece
do hassid vai da alegria à compunção com lágrimas! (cf.
SHOLEM, 1993, p.333-56). Já os sufis muçulmanos usam do canto e da dança
para orar juntos, rodopiando em sintonia com a órbita dos astros:
movem-se em círculo (sema), ouvindo músicas cadenciadas pela recordação dos Nomes de Deus (zikr), em atitude de total abandono a Allah (cf. NATALE TERRIN, 2003, p.112-22; KÜNG, 2010, p.381-93).
Desses exemplos, aprendemos a valorizar a
oração e a desenvolver métodos que a façam mais habitual e frutuosa.
Também nós, cristãos, concebemos a oração como exercício integrador para
a pessoa, no diálogo amoroso com Deus, na forma de louvor, petição,
agradecimento ou adoração. Preservadas as distinções, admitimos que a
disciplina zen e a dedicação sufi à oração nos levam a avaliar a
qualidade da nossa própria oração, já que temos tantos meios e
itinerários para cumpri-la: invocação do Nome de Jesus, recitação dos
salmos, rosário ocidental e bizantino, contemplação dos ícones, oração
de quietude, contemplação dos mistérios de Jesus no Evangelho, leitura
orante da Bíblia (lectio divina), via sacra e oração litúrgica.
Um dos desafios, além da disciplina que gera o hábito, é integrar mente
e coração numa oração menos formalista e mais cordial, que seja
verdadeiramente mistagógica: enraizada na Palavra de Deus, animada pelo
Espírito Santo, integrada à experiência sacramental, inserida no
cotidiano de cada cristão, significativa para o sujeito e animadora da
caridade fraterna.
2.6 A prática das virtudes
As virtudes fazem do sujeito humano um forte – como ensina a raiz latina da palavra virtus (= força). Forte é o labor do solo. Forte é o amor dos genitores. Forte é a alegria dos jovens. Forte é o sacrifício oferecido. Forte é a dignidade dos anciãos. Forte é o cavar poços. Forte é a forja do metal. Forte é a paz sobre a guerra. Forte é a compreensão. Forte é a sabedoria. Forte é a palavra proferida. Forte é a piedade sobre a impiedade. Forte é o caminhar no deserto. Forte é a récita das Escrituras. Forte é a oblação. Forte é a memória celebrada. Forte é a gratidão. Forte é a compaixão. Forte é a prece. Forte é a virtude. Forte é o virtuoso” (MAÇANEIRO, 2011, p.135-6).
Todas essas nuances da virtude são ensinadas pelas religiões:
Fala a verdade. Segue o caminho da retidão. Não negligencies a recitação das lições [os Vedas]. Depois de trazer a riqueza apreciada pelo teu mestre, não cortes os laços. Não negligencies a verdade. Não negligencies a religião [o Dharma]. Não negligencies o bem-estar de teu corpo. Não negligencies a fortuna e a riqueza. Não negligencies o estudo e o ensinamento dos textos sagrados. Não negligencies os rituais para honrar os deuses ancestrais. Considera tua mãe como um deus; considera teu pai como um deus; considera teu mestre como um deus; considera os hóspedes como um deus. Pratica as ações que não merecem censura, e não outras. Leva em consideração apenas o bem que vês nos outros (…). Partilha com fé; não partilhes sem fé. Dá com generosidade; dá com modéstia; dá com temor; dá com pleno conhecimento e compaixão. (Taittirya Upanishad 1. 11. 1-3: Hinduísmo)
Quem faz surgir o amor — sem medidas, cuidadoso (…) — mostrando amor a um ser vivo que seja, sem malícia, já passa com isto a ser virtuoso. Compassivo em espírito com todos os seres, alcança ricos méritos. Aqueles que, depois de vencer a terra com todas as suas multidões, se fazem sábios e reis, e oferecem sacrifícios, não possuem uma décima parte do valor de um ânimo amável e bondoso. Quem não mata, nem faz matar; quem não oprime, nem permite opressão, mostra amor a todos os seres e não teme de ninguém a inimizade. (Itivutaka, 27: Budismo)
O espírito de Adonai repousa sobre mim, porque Adonai me ungiu. Enviou-me para anunciar a Boa Nova aos pobres, a curar os quebrantados de coração e proclamar a liberdade aos cativos, a libertação aos que estão encarcerados; enviou-me a proclamar um ano aceitável para o Senhor. (Isaías 61,1-2: Judaísmo)
A piedade não consiste em voltar a face ao Oriente ou ao Ocidente. Piedoso é aquele que crê em Allah, no juízo, nos anjos, no Livro e nos profetas; que, por amor a Deus, dá de seus bens aos parentes, aos órfãos, aos necessitados, aos peregrinos e aos mendigos; é aquele que resgata os escravos, recita as preces e paga o tributo dos pobres; que cumpre suas obrigações, suportando adversidades, infortúnios e perigos. Assim são os crentes e piedosos (Alcorão 2,177: Islã).
Vê-se claramente a distinção entre pio (justo e misericordioso) e ímpio
(injusto e perverso). Neste sentido, as religiões convergem nas
virtudes evangélicas e reforçam a convicção cristã na caridade ativa e
profética, em vista do Reino de Deus no mundo. Esta convergência de
valores e atitudes consolida uma espiritualidade centrada no amor, e
favorece a ação conjunta das religiões em benefício da justiça e da paz:
Pois o diálogo inter-religioso, além de seu caráter teológico, tem significado especial na construção da nova humanidade: abre caminhos inéditos de testemunho cristão, promove a liberdade e dignidade dos povos, estimula a colaboração para o bem comum, supera a violência motivada por atitudes religiosas fundamentalistas, educa para a paz e para a convivência cidadã. (Documento de Aparecida n.239)
2.7 A iniciação e o discipulado progressivo
Quando se trata de espiritualidade, as
religiões alertam sobre os riscos do individualismo e das pretensões
desmedidas de quem pensa poder avançar sozinho. Daí os graus de
iniciação e os estágios a serem percorridos pelo neófito (discípulo iniciante) sob a assistência de um mistagogo (mestre iniciador). O hinduísmo védico valoriza a disciplina mental e corporal, com uma série de passos: abstinências (yama), observâncias ascéticas (niyama), posições do corpo (asana), controle da respiração (pranayama), controle dos sentidos (pratyahara), treino da concentração (dharana), meditação (dhyana) e êxtase contemplativo (samadhi). Esses passos são acompanhados pelo estudo das Escrituras (Vedas),
para que o discípulo reconheça sua condição humana, supere a ignorância
e os vícios, treine as virtudes e atinja o estado de libertação, imerso
no Uno cósmico-divino (moksha). Já o hinduísmo devocional se
concentra no conhecimento e adoração de Krishna, professado como
divindade pessoal e misericordiosa: “Eu sou a meta, o sustentador, a
testemunha, a morada, o refúgio e o amigo mais querido. Sou a criação e a
aniquilação, a base de tudo, o lugar onde se descansa e a semente
eterna” (Bhagavad-Gita 9,18). Enquanto o hinduísmo védico se
volta ao Uno cósmico impessoal, o hinduísmo devocional adora Krishna
como divindade pessoal, próxima e benevolente: Amado, Amigo e
Companheiro. O discipulado segue um processo educativo, para aprimorar
os bons hábitos, a não violência e o amor por todas as criaturas vivas (ahimsa), a veracidade de pensamentos, palavras e ações (satya), a pureza mental e corporal (shauca), a misericórdia (daya), com o estudo simultâneo das Escrituras (Bhagavad-Gita).
A finalidade é superar o egocentrismo, e disciplinar a inteligência e
os afetos na adoração a Krishna, mediante a via unitiva: “Não posso
adorar-te em teu templo, nem invocar-te diante de teus símbolos, nem
oferecer-te flores molhadas de orvalho, porque tu mesmo habitas o
coração das flores. Como posso juntar minhas mãos e inclinar-me em tua
honra? Tudo isto é, de fato, um culto imperfeito, porque tu, Senhor,
habitas em mim” (Tayumana Swami, séc. XVII, apud ACHARUPARAMBIL, 1984, p.560).
Em outras coordenadas culturais, o culto
de Orixás pratica um longo período de iniciação, ritmado por semanas de
aprendizado e retiro. O neófito dispõe seu tempo e sua atenção à
eleição por parte dos Orixás: são eles que escolhem o iniciante para
determinados ofícios religiosos, a serviço do culto e da comunidade.
Treina-se o respeito, a abnegação, a atenção e o conhecimento das
narrativas ancestrais. Como não há escrituras, é de suma importância
executar os ritos com precisão e transmitir os conteúdos essenciais na
língua litúrgica (yorubá), através da relação direta com os mestres. Após a primeira iniciação, o adepto vai da função de auxiliar de culto (ogan) até o sacerdócio ancestral, exercido por homens (babalorixás) ou mulheres (yalorixás). No culto africano original havia inclusive o ofício de mestre-iniciador (babalaô), que interpretava os oráculos e transmitia a sabedoria às novas gerações (cf. GONÇALVES DA SILVA, 1994).
No campo das religiões abraâmicas, a cabala judaica observa a iniciação tradicional com circuncisão (milá), maturidade (bar-mitzva) e banhos de purificação (mikve), acompanhada do estudo da Lei (Torá), dos Profetas (Nebiim) e dos Escritos Sapienciais (Ketuvim). Há valorização do vínculo com a comunidade, sob a guia de um mestre carinhosamente chamado de rebbe
(= meu estimado mestre). Na fase adulta, abre-se novo ciclo, com o
estudo das doutrinas cabalísticas sobre Deus, a Criação, a Aliança, o
Messias e a Redenção, conforme as diferentes escolas de ensino. Entram
em cena, então, novos textos a serem lidos e comentados, como o Sefer Yetsira (Livro da Criação) e o Sefer ha-Zohar
(Livro do Esplendor). Na prática, a fase adulta do discipulado
ultrapassa a idade de quarenta anos, num percurso contínuo de estudos e
aprimoramento, com os seguintes focos: a oração em estado de união com
Deus (kavana); o mistério do Messias (mashiah); a celebração semanal do sábado, compreendido em sentido místico (shabat); a santidade moral, pessoal e comunitária (tzedaká).
Em suma, todas as religiões valorizam a iniciação e o discipulado,
tendendo à formação continuada de seus adeptos num caminho de
aprimoramento espiritual.
Temos aqui outro aspecto interessante
para o cristianismo: não fixar-se em estágios passados da evangelização,
mas repropor o discipulado progressivo mediante uma “nova
evangelização” (cf. Documento de Aparecida, Parte VI). Neste sentido,
articulam-se as seguintes fases, complementares entre si: kerigma, com anúncio do amor salvífico de Deus e diálogo interpessoal; didaché, com a instrução catequética que aprofunda o kerigma; mistagogia, com a escuta da Palavra de Deus e a experiência sacramental, em comunidade (cf. Documento de Aparecida n.286-300; Evangelii Gaudium n.160-177).
3. Conclusão
Os tópicos de aprendizado dialógico (acima) mostram que cristãos e não cristãos
podem cooperar para a promoção dos valores humanos e espirituais; poderiam, por fim, levar também ao diálogo da experiência religiosa, em resposta às grandes questões suscitadas no espírito humano pelas circunstâncias da vida. Os intercâmbios em nível da experiência religiosa podem tornar as discussões teológicas mais vivas. E estas, por sua vez, podem iluminar as experiências e encorajar relações mais estreitas. (Diálogo e anúncio n.43)
O “diálogo da experiência religiosa”
nos possibilita reconhecer e discernir os valores espirituais das
religiões, pontuando as diferenças e também as convergências, já que “a
maior parte das grandes religiões têm procurado a união com Deus na
oração e também indicado os caminhos para obtê-la” (Carta sobre alguns
aspectos da meditação cristã n.16). Cientes de que “a Igreja católica
nada rejeita do que nessas religiões existe de verdadeiro e santo” (Nostra aetate
n.2), não convém “desprezar, sem prévia consideração, tais indicações,
só por não serem de origem cristã. Poder-se-á, ao contrário, colher
nelas o que contêm de útil, tendo o cuidado de nunca perder de vista a
concepção cristã da oração, sua lógica e suas exigências, porque só
dentro desta totalidade, esses fragmentos poderão ser reformados e
incluídos” (Carta sobre alguns aspectos da meditação cristã n.16).
Uma sugestão importante para os cristãos
“é a aceitação humilde de um mestre experimentado na vida de oração que
conheça suas normas; desse aspecto sempre se teve consciência na
experiência cristã, desde os tempos antigos, particularmente à época dos
Padres do deserto. O mestre – experimentado no sentire cum ecclesia
[sentir com a Igreja] – não deve somente guiar e chamar a atenção sobre
certos perigos, mas, como pai espiritual, introduzir de maneira viva,
de coração a coração, na vida de oração, que é dom do Espírito Santo”
(Carta sobre alguns aspectos da meditação cristã n.16).
De fato, o acompanhamento pessoal e
comunitário dos processos de educação da fé e da espiritualidade em
geral tem sido uma necessidade, ainda mais nos nossos dias.
A Igreja deverá iniciar os seus membros – sacerdotes, religiosos e leigos – nesta arte do acompanhamento, para que todos aprendam a descalçar sempre as sandálias diante da terra sagrada do outro (cf. Ex 3,5). Devemos dar ao nosso caminhar o ritmo salutar da proximidade, com um olhar respeitoso e cheio de compaixão, mas que, ao mesmo tempo, cure, liberte a anime os irmãos a amadurecer na vida cristã. (Evangelii Gaudium n.169)
Outro resultado valioso do diálogo das
experiências religiosas são as solicitações de releitura e
aprofundamento de nossa fé cristã, em face da outra religião. No
encontro e diálogo sobre os diferentes caminhos espirituais, as
religiões pedem de nós o esclarecimento de pontos tradicionais do
cristianismo, a respeito da Palavra de Deus, da Trindade, da
comunicação/encarnação do Verbo e da mediação sacramental da Igreja.
Além desses pontos tradicionais, há casos em que o diálogo
inter-religioso solicita de nós o desenvolvimento de novas perspectivas
do dado revelado. Afinal,
a plenitude da verdade recebida em Jesus Cristo não dá aos cristãos, individualmente, a garantia de terem assimilado de modo pleno esta mesma verdade. Em última análise, a verdade não é algo que possuímos, mas uma Pessoa por quem nos devemos deixar possuir. Trata-se, portanto, de um processo sem fim. Embora mantendo intacta a sua identidade, os cristãos devem estar dispostos a aprender e a receber dos outros e por intermédio deles os valores positivos de suas tradições. (Diálogo e anúncio n.49)
Dentre essas perspectivas, elencamos oito:
- a) Pneumatologia: desenvolver a Teologia do Espírito Santo a partir da Palavra de Deus e da Teologia da Graça, considerando a ação universal do Pneuma nos sujeitos, culturas e credos, inclusive seus indícios na exemplaridade dos mestres de outras religiões (cf. CTI, 1997, 50-52 e 82-84).
- b) Antropologia da “imago Dei”: examinar os dados da fenomenologia e teologia das religiões, com foco na humanidade em geral e na pessoa humana, em particular, como creatura Verbi e capax Dei, interlocutora do diálogo de salvação aberto pela Trindade e, portanto, intérprete da Revelação universal (cf. CTI, 1997, 48, 51, 88-92 e 110-112).
- c) Cristologia do Verbo: esclarecer a dimensão cósmica e trans-histórica da presença do Verbo no universo e na humanidade, em cotejo com a cosmovisão das demais religiões, particularmente o hinduísmo e o budismo (cf. CTI, 1997, n.36 e 41-47).
- d) Teologia da Criação: ampliar e tematizar a teologia bíblica da Criação, do Primeiro e do Novo testamentos, em diálogo com as narrativas criacionais/cosmogônicas das religiões, individuando as distinções e as convergências.
- e) Teologia da Revelação: pontuar os elementos de Revelação presentes nas narrativas, ritos e escrituras das religiões não cristãs, à luz da dogmática cristã (cf. CTI, 1997, n.88-92).
- f) Fenomenologia da interioridade humana: sistematizar o quanto as religiões registram sobre a interioridade humana (consciência, vontade, busca da verdade, memória, autoconhecimento, conversão) numa perspectiva comparada, para dialogar com a teologia da graça e a teologia espiritual (cf. Diálogo e anúncio n.15-18).
- g) Soteriologia: ponderar as linguagens de salvação do cristianismo (redenção, libertação, cura, nova criação, reconciliação, justificação, recapitulação) em diálogo com os conceitos e as linguagens de salvação das diversas religiões, como libertação/moksha, plenitude/nirvana, despertar/bodhi, benevolência divina/rahmat (Diálogo e anúncio n.29).
- h) Escatologia: aproximar a escatologia pascal cristã da perspectiva escatológica das religiões, considerando seus emblemas de mundo, suas doutrinas ecológicas e suas prospectivas quanto ao futuro e aos fins, seja do cosmos, seja da humanidade (cf. CTI, 1997, n.113).
Marcial Maçaneiro, PUC Paraná. Original em português.
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Disponível em: http://theologicalatinoamericana.com/?p=1146
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