No voo de volta de Baku, Francisco explica por que condena a teoria
de gênero nas escolas, mas também porque os homossexuais devem ser
acompanhados e "aproximados ao Senhor": "Hoje, Jesus faria assim". Ele
conta ter recebido no Vaticano uma jovem que mudou de sexo. Entre as
próximas viagens, Índia e Bangladesh, e ainda um consistório para a
criação de 13 novos cardeais. "Eu gostaria de ir para a China, mas não é
preciso fazer as coisas com pressa."
A reportagem é de Andrea Tornielli, publicada no sítio Vatican Insider, 02-10-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
"Também como papa eu continua acompanhando pessoas com tendência e
prática homossexuais." Foi o que disso Francisco ao responder às
perguntas dos jornalistas que, no voo de Baku para Roma, pediam-lhe
explicações sobre a dureza das suas palavras sobre o gênero,
pronunciadas no sábado, 1º de outubro, na Geórgia. O papa contou sobre o
encontro com uma pessoa que mudou de sexo, recebida por ele recebeu no
Vaticano, e falou sobre as próximas viagens, sobre o iminente
consistório, sobre a China, sobre as eleições estadunidenses e sobre o
conflito entre Armênia e Azerbaijão.
Eis a entrevista.
O senhor falou do gênero que destrói o matrimônio. Como pastor, o que
diria para uma pessoa que sofre há anos com a sua sexualidade e que
sente que a sua identidade sexual não corresponde com a biológica?
Eu acompanhei, na minha vida de sacerdote, de bispo e também de papa,
pessoas com tendência e com prática homossexuais. Acompanhei-as e as
aproximei ao Senhor. Algumas, eu não posso... Mas as pessoas devem ser
acompanhadas como Jesus as acompanha. Quando uma pessoa que tem essa
condição chega diante de Jesus, Ele certamente não dirá: "Vai embora,
você é homossexual!". O que eu falei foi sobre a maldade que hoje se faz
com a doutrinação da teoria de gênero. Um pai francês me contava que, à
mesa, ele estava falando com os filhos e perguntou ao menino de dez
anos: "O que você quer ser quando crescer?". "Uma menina!". E o pai se
deu conta de que, nos livros escolares, ensinava-se a teoria do gênero, e
isso é contra as coisas naturais. Uma coisa é que uma pessoa tenha essa
tendência ou essa opção, ou mesmo aqueles que mudam de sexo. Outra
coisa é fazer o ensino nas escolas nessa linha, para mudar a
mentalidade. Estas eu chamo de "colonizações ideológicas". No ano
passado, eu recebi uma carta de um espanhol que me contava a sua
história de criança e de jovem. Antes, era uma criança, uma jovem que
sofreu muito. Ele se sentia menino, mas era fisicamente uma menina. Ele
havia contado à sua mãe, dizendo que queria fazer a cirurgia. A mãe lhe
pediu para não fazê-la enquanto ela estivesse viva. Ela era idosa,
morreu logo. Ele fez a cirurgia, agora é funcionário de um ministério na
Espanha. Ele foi ao encontro do bispo, e o bispo o acompanhou muito. Um
grande bispo, esse. "Perdia" tempo para acompanhar esse homem. Depois,
ele se casou, mudou essa identidade civil, e ele – que ela era, mas é
ele – me escreveu que seria uma consolação ir ao meu encontro. Eu o
recebi. Ele me contou que, no bairro onde ele morava, havia um velho
sacerdote, o velho pároco, e havia o novo. Quando o novo pároco o via,
ele gritava da calçada: "Você vai para o inferno!". O velho, ao
contrário, lhe dizia: "Há tempo tempo você não se confessa? Venha,
venha...". A vida é a vida, e as coisas devem ser tomadas como vêm. O
pecado é o pecado. As tendências ou os desequilíbrios hormonais causam
muitos problemas, e devemos estar atentos para não dizer que tudo é a
mesma coisa: cada caso, acolhê-lo, acompanhá-lo, estudá-lo, discernir e
integrá-lo. Isso é o que Jesus faria hoje. Por favor, agora não digam:
"O papa vai santificar os trans!". Já vejo as primeiras páginas dos
jornais... É um problema humano, de moral. E deve ser resolvido como se
pode, sempre com a misericórdia de Deus, com a verdade, mas sempre com o
coração aberto.
O senhor falou nesse sábado de uma guerra mundial contra o matrimônio
e usou palavras fortes contra o divórcio, dizendo que ele suja a imagem
de Deus. Mas, nos últimos meses, tinha-se falado de uma acolhida para
os divorciados.
Tudo o que eu disse no sábado, com outras palavras, encontra-se na
Amoris laetitia [a exortação pós-sinodal sobre a família]: quando se
fala de matrimônio como união entre homem e mulher, como imagem de Deus –
homem e mulher, não só homem – que se tornam uma só carne, quando se
unem em matrimônio. Essa é a verdade. É verdade que, nesta cultura, os
conflitos, tantos problemas não bem geridos e tantas "filosofias" levam a
essa guerra mundial contra o matrimônio: devemos ficar atentos para não
deixar entrar em nós essas ideias. Quando se destrói a imagem de Deus,
desfigura-se a imagem de Deus. A Amoris laetitia fala sobre como lidar
com esses casos, as famílias feridas, e aí entra a misericórdia. Há uma
oração muito bonita da Igreja que rezamos na semana passada: "Deus que
tão maravilhosamente criastes o mundo e mais maravilhosamente o
recriastes com redenção e a misericórdia…". O princípio é esse, mas as
fraquezas humanas existem, os pecados existem, mas sempre a última
palavra não é da fraqueza, não é do pecado, mas da misericórdia! Na
igreja de Santa Maria Madalena em Vézelay, há um capitel muito bonito do
ano 1200. De um lado do capitel, está Judas enforcado e, do outro lado,
está Jesus, o Bom Pastor, que o toma e o leva consigo. E, se olharmos
bem o rosto de Jesus, os lábios estão tristes de um lado e com um
pequeno sorriso de cumplicidade do outro. Eles tinham entendido o que é a
misericórdia! No matrimônio, há problemas, e como se resolvem? Com
quatro critérios: acolher as famílias feridas, acompanhar, discernir
cada caso e integrar. Isso significa colaborar nessa recriação
maravilhosa que o Senhor fez com a redenção. Na Amoris laetitia, todos
vão ao capítulo oitavo, mas se deve ler toda ela, do início ao fim. O
centro é o capítulo quarto, serve para toda a vida. Mas se deve ler toda
ela e reler toda ela e discutir toda ela. É um conjunto. Há o pecado, a
ruptura, mas também o tratamento, a misericórdia, a redenção.
Quando o senhor vai criar os novos cardeais e que critérios segue para esse tipo de nomeações?
Os critérios serão os mesmos dos dois consistórios anteriores. Vou
fazê-los um pouco de toda a parte, porque a Igreja está em todo o mundo.
Eu ainda estou estudando os nomes. A lista é longa, mas há apenas 13
lugares. Eu gosto de que se veja no Colégio Cardinalício a
universalidade da Igreja, não só o centro europeu. Por toda a parte, nos
cinco continentes. Poderá ser no fim do ano, mas há o problema do Ano
Santo, ou no início do ano que vem.
Quando o senhor vai se encontrar com as vítimas do terremoto no centro da Itália e qual característica essa visita vai ter?
Foram-me propostas três datas, duas eu não lembro bem, a terceira é o
primeiro domingo do Advento. Assim que eu voltar, vou escolher a data.
Vou fazer uma visita privada, sozinho, como sacerdote, como bispo e como
papa. Sozinho. E eu gostaria de estar perto das pessoas, mas ainda não
sei como.
Quais serão as viagens internacionais de 2017?
Certamente, irei para Portugal e irei apenas para Fátima. Neste Ano
Santo, foram suspensas as visitas ad limina dos bispos. No ano que vem,
devo fazer as visitas ad limina deste ano e do próximo. Quase certamente
vou à Índia e a Bangladesh. Na África, não está certo, depende da
situação política e das guerras. Na Colômbia, eu disse que, se o
processo de paz tiver sucesso, quando tudo estiver blindado, se o
plebiscito vencer, quando tudo estiver seguro e não se puder voltar
atrás, eu poderia ir... Mas, se estiver instável, não. Tudo depende do
que o povo disser, que é soberano. As formas democráticas e a soberania
do povo devem caminhar de mãos dadas. Tornou-se um hábito em certos
países que, depois do segundo mandato, aquele que o termina tenta mudar a
Constituição para obter um terceiro mandato. E isso significa
subestimar a democracia, contra a soberania do povo.
Por que o senhor não falou sobre uma viagem para a China? Que dificuldades políticas e eclesiais impedem uma visita do papa?
Vocês conhecem bem a história da China: há a Igreja patriótica e a
Igreja escondida. Falam-se, há comissões, eu estou otimista. Agora eu
acho que os Museus Vaticanos fizeram uma exposição na China. Há muitos
professores que vão lecionar nas universidades chinesas. Muitas irmãs e
muitos padres que podem trabalhar bem lá. As relações entre o Vaticano e
a China devem se fixar em uma boa relação, é preciso tempo. As coisas
lentas vão bem, aquelas feitos com pressa não vão bem. O povo chinês tem
a minha estima. Outro dia, na Academia das Ciências, houve um congresso
sobre a Laudato si', e havia uma delegação chinesa. O presidente me
enviou um presente. Eu gostaria muito de ir, mas acho que ainda não...
O bispo Lebrun disse que o senhor autorizou a dispensar a espera de
cinco anos para prosseguir com o processo de beatificação do padre
Jacques Hamel, o sacerdote da diocese de Rouen morto na igreja pelos
fundamentalistas...
Eu falei com o cardeal Amato [prefeito da Congregação para as Causas
dos Santos]. Vamos fazer os estudos. A intenção é de fazer as pesquisas
necessárias para ver se há as razões para torná-lo bem-aventurado. Devem
ser buscados os testemunhos, não perder os testemunhos recentes, aquilo
que as pessoas viram.
A história entre a Armênia e o Azerbaijão é uma história feia: o que
deve acontecer para se chegar a uma paz permanente que proteja os
direitos humanos?
O único caminho é o diálogo sincero, face a face, sem acordos por
debaixo dos panos. Uma negociação sincera. E, se não se puder chegar a
isso, é preciso ter a coragem de ir a um Tribunal Internacional, em
Haia, por exemplo, e se submeter ao julgamento internacional. A outra
forma é a guerra. Mas com a guerra se perde tudo! Os cristãos devem
rezar para que os corações tomem o caminho do diálogo, da negociação ou
ir a um tribunal internacional. Mas não é possível ter problemas assim: a
Geórgia tem um problema com a Rússia, a Armênia é um país sem
fronteiras abertas, tem problemas com o Azerbaijão. É preciso ir ao
tribunal internacional se não houver outra forma.
Para o próximo Prêmio Nobel da Paz, há vários candidatos, 300
indicações. O povo da ilha de Lesbos, ou os capacetes brancos da Síria,
os voluntários que removem as pessoas dos escombros pagando com a vida,
ou ainda o presidente da Colômbia e o comandante das Farc. Quem o senhor
espera que vença?
Há muitas pessoas que vivem para fazer a guerra, para a venda das
armas, para matar. Mas também há muitas pessoas, muitas, muitas, que
trabalham pela paz. Eu não saberia dizer que pessoa escolher dentre
tantas, é difícil. Você mencionou algumas, existem mais ainda. Eu espero
também que, em nível internacional, haja uma recordação, um
reconhecimento, uma declaração sobre as crianças, sobre os inválidos,
sobre os menores de idade, sobre os civis mortos debaixo das bombas das
guerras. Eu acho que isso é um pecado! Um pecado contra Jesus Cristo,
porque a carne daquelas crianças, daquelas pessoas doentes, daqueles
idosos indefesos é a de Jesus Cristo. Seria preciso que a humanidade
dissesse alguma coisa sobre as vítimas das guerras. Jesus disse, sobre
aqueles que fazem a paz, que são bem-aventurados. Mas devemos dizer algo
sobre as vítimas das guerras: jogam uma bomba em um hospital e em uma
escola e fazem tantas vítimas!
A campanha presidencial nos Estados Unidos: quem um católico deveria
escolher entre os dois candidatos? Um está distante, em muitos pontos,
do ensinamento da Igreja; e o outro fez certas declarações sobre os
imigrantes e sobre as minorias...
Você me faz uma pergunta descrevendo uma escolha difícil. Porque, na
sua opinião, há dificuldades em um e no outro. Em campanha eleitoral, eu
nunca digo uma palavra. O povo é soberano, e apenas direi: estude bem
as propostas, reze e escolha em consciência! Depois, saindo do caso
específico, faço uma hipótese de escola, porque eu não quero falar do
problema concreto. Quando acontece que, em um país qualquer, existem
dois, três, quatro candidatos que não dão satisfação a todos, isso
significa que a vida política desse país talvez seja muito politizada,
mas ele não tem tanta cultura política. Uma das tarefas da Igreja e do
ensino nas faculdades é de ensinar a ter cultura política. Há países –
penso na América Latina – que são politizados demais, mas não têm
cultura política, sem um pensamento claro sobre as bases, sobre as
propostas.
O testemunho para a história é mais importante do que o testamento de
um papa? Pergunto-lhe isso porque João Paulo II havia deixado dito que
queimassem as suas cartas, mas, ao contrário, elas acabaram em um livro.
Você fala de um papa que indicou que se queimassem os seus papéis, as
suas cartas. Mas esse é o direito de cada homem e de cada mulher. Ele
tem o direito de fazer isso antes de morrer. Quem não respeitou essa
vontade deve ser culpado, não sei, não conheço bem o caso. De tantas
pessoas não foi respeitado o testamento...
Depois do encontro com o patriarca, o senhor viu a possibilidade de
uma futura cooperação e diálogo entre as Igrejas ortodoxa e católica?
Eu tive duas surpresas na Geórgia. Uma é a Geórgia. Nunca imaginei
tanta cultura, tanta fé, tanta cristandade. Um povo de fé e uma cultura
cristã antiquíssima, um povo de tantos mártires. Descobri uma coisa que
eu não conhecia: a densidade dessa fé georgiana. A segunda surpresa foi o
patriarca: é um homem de Deus, esse homem me comoveu. Nas vezes que eu o
encontrei, eu saí com o coração comovido, encontrei um homem de Deus.
Sobre as coisas que nos unem e nos separam, eu direi: não nos ponhamos a
discutir as coisas de doutrina, deixemos isso aos teólogos, eles sabem
fazer isso melhor do que nós, discutem e são grandes, são bons, os de um
lado e os do outro. O que devemos fazer nós, povo? Rezar uns pelos
outros. E fazer coisas juntos: há os pobres, trabalhemos pelos pobres;
há um problema, trabalhemos juntos; há os migrantes, trabalhemos juntos
pelos outros. Podemos fazer isso. Esse é o caminho do ecumenismo e, com
boa vontade, é possível, deve-se fazer. Hoje, o ecumenismo deve ser
feito caminhando juntos e rezando juntos. Mas a Geórgia é maravilhosa,
eu não esperava isso: cristã até a medula!
Andrea Tornielli, Vatican Insider
Instituto Humanitas Unisinos
Disponível em: http://amaivos.uol.com.br/amaivos2015/?pg=noticias&cod_canal=41&cod_noticia=36730
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