Por Juca Guimarães, no R7
“A verdade é que isso não se adequa a sua função” foi o que a enfermeira A. ouviu da chefe durante uma reunião depois que ela passou a usar um penteado com tranças afro. Anteriormente, ela fazia escova e tinha os cabelos lisos, mas quando engravidou decidiu abandonar os produtos de alisamento.
A conversa, que está gravada, aconteceu em uma empresa de serviço particular de ambulância e emergências médicas, com sede no bairro do Bom Retiro, na região Central de São Paulo.
Sentindo-se humilhada, A. acusou a diretora executiva de racismo e injuria racial e registrou o caso no 2º DP do Bom Retiro. O Núcleo de Diversidade Racial da Defensoria Pública do Estado de São Paulo está acompanhando as investigações.
Outros funcionários estavam na reunião em que a enfermeira ouviu da executiva que as tranças no estilo afro não condiziam com o ambiente corporativo e com a imagem que a empresa queria ter. A diretora afirmou também que a moça estava irreconhecível e que ela estava “arrependida” de tê-la promovido.
O Núcleo de Diversidade Racial da Defensoria Pública do Estado de São Paulo está acompanhando as investigações que serão feitas pela Decradi (Delegacia de Polícia de Repressão aos Crimes Raciais e Delitos de Intolerância). Ouça o áudio no final do texto.
A. é enfermeira líder do setor de callcenter da empresa e trabalha orientando as equipes de médicos e enfermeiros, tratando demandas administrativas de hospitais e convênios por telefone ou rádio.
A troca de estilo no penteado, além da opção pessoal e estética, também tem relação com o fato da enfermeira estar no quarto mês de gestação e, por cuidados médicos, deixou de aplicar química nos cabelos.
A. entrou na empresa em janeiro de 2013, como enfermeira reguladora, e foi promovida ao cargo de chefia em junho de 2015. Segundo amigos e funcionários da empresa, ela é uma profissional esforçada, organizada, cumpre os horários, se veste de forma elegante e trata os colegas de trabalho com cordialidade e respeito. Nas atividades cotidianas, ela não tem contato físico com clientes ou parceiros da empresa.
Na reunião onde foi humilhada pela diretora ela ouviu: “A verdade é que isso [penteado] não se adequa a sua função. Se fosse o (nome de outro funcionário negro) tudo bem. Mas na sua função, de líder, não cabe”, disse.
Em outro ponto da gravação, a diretora diz que a empresa tem protocolos, etiquetas que devem ser seguidas. “Não se trata de discriminação, se trata de apresentação, você entendeu?”. Ela ainda completa com a ameaça: “Não deixe que isso estrague o que você conquistou aqui dentro”.
No áudio, a enfermeira retruca dizendo que é um ato de preconceito a diretora rechaçar o seu penteado e usar isso como motivo para questionar sua capacidade profissional. Calmamente, a enfermeira diz que o penteado não interfere no modo como as pessoas se relacionam com ela no ambiente profissional. “Ela achou um absurdo eu não ter me calado como todos que ela humilha há anos na empresa”, disse.
Na réplica, em tom de irritação, a diretora diz que ela não será aceita. Ela também afirma que a restrição ao penteado afro se enquadra nas regras de postura e estética da empresa.
“Me senti muito mal. Não foi a primeira vez que ela me desrespeitou por questões raciais. Ela age com tom severo em público e chama para reuniões particulares onde se sente a vontade para xingar e humilhar as pessoas”, disse a enfermeira.
A empresária Shirley de Souza, dona do salão Afro Zion, especializado em penteados afros, viu as fotos da enfermeira, a pedido do R7, e disse que tranças como as delas estão em alta e são muito usadas por empresárias, modelos, executivas e advogadas. “Vai bem com qualquer tipo de roupa e é muito elegante. Não vejo como um penteado pode atrapalhar o desempenho profissional de alguém em pleno 2016”, disse.
No último dia 20, o presidente Michel Temer (PMDB) disse na ONU (Organizações das Nações Unidas), durante a 17ª Assembleia Geral das Nações Unidas, que “somos um país que se constrói pela força da diversidade”. Em outro trecho ele reforçou “Repudiamos todas as formas de racismo, xenofobia e outras manifestações de intolerância”.
O advogado Estevão Silva avalia que a diretora executiva da empresa praticou um ato de racismo. “É de espantar a teoria diretora sobre a não aceitação da funcionária no mundo corporativo. Não que não exista este pensamento diabólico, mas ao externar essa ideia, a diretora o tira do mundo das possibilidades e assume o papel de autora, ou seja, um agente ativo”, disse.
Silva também destaca o tom usado pela diretora em parte da gravação. “Ela foi bem dissimulada ao falar tudo aquilo, mas em tom de conselho, falando sempre do que o mundo corporativo acha, tentando isentar ela própria e a empresa”.
A coordenadora do SOS Racismo, Eliane Dias, ficou chocada com o conteúdo do áudio. “Os racistas estão cada vez mais abusados. Infelizmente sabemos como essas histórias terminam. O objetivo é mexer com a autoestima, tirar o negro do mercado de trabalho, da faculdade e jogá-lo na margem”, disse.
Sobre o penteado, Eliane diz que não há razão para a empresa proibi-lo. “O problema não é o cabelo. O racista é que tem problema para aceitar a liberdade de cada pessoa. Não aceita a ousadia da moça e sua autoafirmação”, disse.
Outro lado
A empresa, onde a funcionária foi discriminada, existe há 17 anos e tem 500 funcionários. O R7 fez um pedido de entrevista com o representante da empresa para esclarecer a denúncia e explicar quais são as regras de postura.
Em nota, a empresa afirma que “não houve nenhuma prática de injúria racial, discriminação ou qualquer outra conduta contrária aos bons costumes. Jamais houve práticas de racismo contra a pessoa indicada ou qualquer outra, como certamente restará comprovado se houver apuração legal dos fatos”.
No entanto, eles comentam que “exigir posturas, condutas de aparência, apresentação, entre outros, não significa praticar racismo ou injúria, pois não se dá em relação a raça, religião, orientação sexual e afins, mas sim a todos os empregados de maneira igual”.
A empresa também exigiu que não tivesse o nome citado na reportagem e que “qualquer dano à imagem do Grupo (nome da empresa), fundada em fatos negados e não provados judicialmente, será objeto de questionamento e responsabilização judicial”.
Essas são as perguntas sobre o caso que a empresa não quis responder:
. Desde quando existe um “protocolo” de racismo e discriminação velada dentro da empresa?
. Qual o impacto do penteado de uma funcionária no atendimento aos clientes? Num call center?
. Foi mesmo contratada uma empresa para treinar os funcionários? A diretora que discriminou a funcionária fez o curso?
. A “xx” é uma empresa da área de saúde, correto? Existe alguma etnia ou grupo social que a empresa recusa como cliente?
. Quais os critérios de promoção e plano de carreira adotados pela empresa?
. Existem canais internos para as reclamações dos funcionários? A empresa tem alguma política de melhoria da relação/colaboradores?
. A funcionária discriminada pela diretora está gravida, no quarto mês de gestação, e por recomendação médica não pode fazer tratamento químico no cabelo. A empresa sabe disso?
A conversa, que está gravada, aconteceu em uma empresa de serviço particular de ambulância e emergências médicas, com sede no bairro do Bom Retiro, na região Central de São Paulo.
Sentindo-se humilhada, A. acusou a diretora executiva de racismo e injuria racial e registrou o caso no 2º DP do Bom Retiro. O Núcleo de Diversidade Racial da Defensoria Pública do Estado de São Paulo está acompanhando as investigações.
Outros funcionários estavam na reunião em que a enfermeira ouviu da executiva que as tranças no estilo afro não condiziam com o ambiente corporativo e com a imagem que a empresa queria ter. A diretora afirmou também que a moça estava irreconhecível e que ela estava “arrependida” de tê-la promovido.
O Núcleo de Diversidade Racial da Defensoria Pública do Estado de São Paulo está acompanhando as investigações que serão feitas pela Decradi (Delegacia de Polícia de Repressão aos Crimes Raciais e Delitos de Intolerância). Ouça o áudio no final do texto.
A. é enfermeira líder do setor de callcenter da empresa e trabalha orientando as equipes de médicos e enfermeiros, tratando demandas administrativas de hospitais e convênios por telefone ou rádio.
A troca de estilo no penteado, além da opção pessoal e estética, também tem relação com o fato da enfermeira estar no quarto mês de gestação e, por cuidados médicos, deixou de aplicar química nos cabelos.
A. entrou na empresa em janeiro de 2013, como enfermeira reguladora, e foi promovida ao cargo de chefia em junho de 2015. Segundo amigos e funcionários da empresa, ela é uma profissional esforçada, organizada, cumpre os horários, se veste de forma elegante e trata os colegas de trabalho com cordialidade e respeito. Nas atividades cotidianas, ela não tem contato físico com clientes ou parceiros da empresa.
Na reunião onde foi humilhada pela diretora ela ouviu: “A verdade é que isso [penteado] não se adequa a sua função. Se fosse o (nome de outro funcionário negro) tudo bem. Mas na sua função, de líder, não cabe”, disse.
Em outro ponto da gravação, a diretora diz que a empresa tem protocolos, etiquetas que devem ser seguidas. “Não se trata de discriminação, se trata de apresentação, você entendeu?”. Ela ainda completa com a ameaça: “Não deixe que isso estrague o que você conquistou aqui dentro”.
No áudio, a enfermeira retruca dizendo que é um ato de preconceito a diretora rechaçar o seu penteado e usar isso como motivo para questionar sua capacidade profissional. Calmamente, a enfermeira diz que o penteado não interfere no modo como as pessoas se relacionam com ela no ambiente profissional. “Ela achou um absurdo eu não ter me calado como todos que ela humilha há anos na empresa”, disse.
Na réplica, em tom de irritação, a diretora diz que ela não será aceita. Ela também afirma que a restrição ao penteado afro se enquadra nas regras de postura e estética da empresa.
“Me senti muito mal. Não foi a primeira vez que ela me desrespeitou por questões raciais. Ela age com tom severo em público e chama para reuniões particulares onde se sente a vontade para xingar e humilhar as pessoas”, disse a enfermeira.
A empresária Shirley de Souza, dona do salão Afro Zion, especializado em penteados afros, viu as fotos da enfermeira, a pedido do R7, e disse que tranças como as delas estão em alta e são muito usadas por empresárias, modelos, executivas e advogadas. “Vai bem com qualquer tipo de roupa e é muito elegante. Não vejo como um penteado pode atrapalhar o desempenho profissional de alguém em pleno 2016”, disse.
No último dia 20, o presidente Michel Temer (PMDB) disse na ONU (Organizações das Nações Unidas), durante a 17ª Assembleia Geral das Nações Unidas, que “somos um país que se constrói pela força da diversidade”. Em outro trecho ele reforçou “Repudiamos todas as formas de racismo, xenofobia e outras manifestações de intolerância”.
O advogado Estevão Silva avalia que a diretora executiva da empresa praticou um ato de racismo. “É de espantar a teoria diretora sobre a não aceitação da funcionária no mundo corporativo. Não que não exista este pensamento diabólico, mas ao externar essa ideia, a diretora o tira do mundo das possibilidades e assume o papel de autora, ou seja, um agente ativo”, disse.
Silva também destaca o tom usado pela diretora em parte da gravação. “Ela foi bem dissimulada ao falar tudo aquilo, mas em tom de conselho, falando sempre do que o mundo corporativo acha, tentando isentar ela própria e a empresa”.
A coordenadora do SOS Racismo, Eliane Dias, ficou chocada com o conteúdo do áudio. “Os racistas estão cada vez mais abusados. Infelizmente sabemos como essas histórias terminam. O objetivo é mexer com a autoestima, tirar o negro do mercado de trabalho, da faculdade e jogá-lo na margem”, disse.
Sobre o penteado, Eliane diz que não há razão para a empresa proibi-lo. “O problema não é o cabelo. O racista é que tem problema para aceitar a liberdade de cada pessoa. Não aceita a ousadia da moça e sua autoafirmação”, disse.
Outro lado
A empresa, onde a funcionária foi discriminada, existe há 17 anos e tem 500 funcionários. O R7 fez um pedido de entrevista com o representante da empresa para esclarecer a denúncia e explicar quais são as regras de postura.
Em nota, a empresa afirma que “não houve nenhuma prática de injúria racial, discriminação ou qualquer outra conduta contrária aos bons costumes. Jamais houve práticas de racismo contra a pessoa indicada ou qualquer outra, como certamente restará comprovado se houver apuração legal dos fatos”.
No entanto, eles comentam que “exigir posturas, condutas de aparência, apresentação, entre outros, não significa praticar racismo ou injúria, pois não se dá em relação a raça, religião, orientação sexual e afins, mas sim a todos os empregados de maneira igual”.
A empresa também exigiu que não tivesse o nome citado na reportagem e que “qualquer dano à imagem do Grupo (nome da empresa), fundada em fatos negados e não provados judicialmente, será objeto de questionamento e responsabilização judicial”.
Essas são as perguntas sobre o caso que a empresa não quis responder:
. Desde quando existe um “protocolo” de racismo e discriminação velada dentro da empresa?
. Qual o impacto do penteado de uma funcionária no atendimento aos clientes? Num call center?
. Foi mesmo contratada uma empresa para treinar os funcionários? A diretora que discriminou a funcionária fez o curso?
. A “xx” é uma empresa da área de saúde, correto? Existe alguma etnia ou grupo social que a empresa recusa como cliente?
. Quais os critérios de promoção e plano de carreira adotados pela empresa?
. Existem canais internos para as reclamações dos funcionários? A empresa tem alguma política de melhoria da relação/colaboradores?
. A funcionária discriminada pela diretora está gravida, no quarto mês de gestação, e por recomendação médica não pode fazer tratamento químico no cabelo. A empresa sabe disso?
Disponível em: http://www.geledes.org.br/apos-adotar-penteado-afro-enfermeira-e-humilhada-por-chefe-durante-reuniao/#gs.null
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