A proposta do senador Magno Malta de barrar discussões políticas, ideológicas ou religiosas na sala de aula, sob o slogan de "Escola sem Partido" está em consulta pública desde meados deste mês. Trata-se de uma oportunidade de os cidadãos dizerem se são a favor ou contra o Projeto de Lei do Senado 193 de 2016. A consulta está disponível no link.
Faço, no entanto, um apelo para que o leitor leve em conta as seguintes considerações antes de votar. São considerações de dois tipos. O primeiro tipo diz respeito ao texto previsto no projeto de lei. Antes de tudo, leia-o. O slogan "Escola sem Partido" gera uma falsa impressão de neutralidade e pluralidade de visões que não é refletida na lei. Aqui, duas situações se destacam.
A primeira delas é o parágrafo único do art. 2º do projeto, segundo o qual:
"O Poder Público não se imiscuirá na opção sexual dos alunos nem permitirá qualquer prática capaz de comprometer, precipitar ou direcionar o natural amadurecimento e desenvolvimento de sua personalidade, em harmonia com a respectiva identidade biológica de sexo, sendo vedada, especialmente, a aplicação dos postulados da teoria ou ideologia de gênero".
O texto literalmente veda a discussão, e consequentemente a reflexão e crítica, sobre uma série de teorias e visões de mundo. Além disso, é nitidamente contrário ao entendimento da maioria esmagadora da comunidade científica sobre a distinção entre sexo biológico e identificação de gênero (daí falar em "opção" sexual ser um erro).
A segunda situação é presente na exposição de motivos da proposta legislativa. Nela, está presente a seguinte redação:
"Finalmente, um Estado que se define como laico - e que, portanto, deve ser neutro em relação a todas as religiões - não pode usar o sistema de ensino para promover uma determinada moralidade, já que a moral é em regra inseparável da religião".
A primeira proposição está correta. O Estado é laico e deve tratar igualmente todas as religiões. A segunda proposição é nitidamente errada.
Moralidade e religião não são inseparáveis, aliás, são conceitos distintos. Isso é algo que a filosofia moral reconhece pelo menos desde Platão, mas que é ilustrado com um exemplo bastante trivial. Se moral fosse realmente inseparável de religião, ateus seriam sempre imorais, e religiosos, morais. É evidente que isso é falso, aliás, estudos empíricos mostram que religiosos e não religiosos são igualmente propensos a "mau comportamento".
Outros exemplos são ilustrativos. Alguns dos maiores filantropos do mundo, Bill Gates, por exemplo, são ateus, enquanto que alguns dos maiores tiranos contemporâneos são religiosos. Se você é ateu (ou agnóstico) e se considera uma pessoa preocupada com as demais e com questões éticas, o próprio texto do projeto de lei deveria ser ofensivo.
Isso basta para desmistificar o caráter "neutro" da proposta. Ela arbitrariamente seleciona visões de mundo sobre sexualidade e gênero e nas entrelinhas chama aqueles que não têm religião de imorais. O projeto de lei não é "sem partido". Ele apresenta compromissos políticos e ideológicos com uma agenda religiosa e conservadora. Se a preocupação do cidadão for com um ensino plural, não será a PL do senador Malta que garantirá isso.
O segundo tipo de considerações é relacionado aos próprios fundamentos da proposta. O discurso de neutralidade e objetividade, supostamente tão valioso para seus defensores, não é tão simples quanto parece. Diferentes áreas do conhecimento apresentam concepções variadas de neutralidade e objetividade. O projeto assume erroneamente que todas as disciplinas possuem os mesmos critérios de objetividade supostamente presentes nas ciências exatas. Digo supostamente presentes porque qualquer físico teórico contemporâneo faria várias ressalvas à ideia de que o conhecimento que temos da natureza do mundo é puramente objetivo.
Exemplos concretos facilitam a compreensão deste ponto. Em uma aula de aritmética, é possível ser objetivo no sentido rotineiro da expressão. Ensinam-se fórmulas e ferramentas matemáticas. Em uma aula de literatura, a própria ideia de objetividade é controversa. José Lozano ilustra como Dom Casmurro, clássico de Machado de Assis, é possível de várias interpretações, dentre elas a de "uma história de adultério" e a famosa versão do "narrador ambíguo e não confiável" . Neutralidade na interpretação literária é virtualmente impossível, uma vez que diferentes interpretações correspondem a diferentes visões do texto (e do mundo).
As coisas tornam-se mais dramáticas quando migramos para disciplinas mais políticas, como geografia ou sociologia. Qualquer curso de sociologia que se preze precisa apresentar os três autores clássicos aos alunos:
Karl Marx, Émile Durkheim e Max Weber. Cada um desses autores tem visões bastante diferentes da sociedade, e é impossível que professores e alunos não se identifiquem em maior ou menor grau com alguma delas. Aliás, vale mencionar que os três autores apresentavam concepções muito diferentes do que viria ser a própria objetividade nas ciências sociais.
Meu argumento não deve ser tomado como uma defesa de posturas relativistas sobre conceitos, mas meramente como um lembrete da complexidade das diversas áreas do conhecimento. O bom educador é aquele que apresenta as diferentes teorias, em seus pontos fracos e fortes, e explora seus limites e aplicação com os alunos. Isso é muito distante da mera repetição de conteúdo e fórmulas prontas, de um professor desengajado.
O projeto de lei também se fundamenta no suposto direito dos pais em censurar e vetar discussões morais que não tenham aprovado previamente nas salas de aula, com base em suas convicções morais e religiosas (isso é presente no art. 2º e no item 14 da justificativa). Esse direito é muito longe de ser absoluto aos moldes do que o texto defende. Nós não queremos que as escolas ensinem somente aquilo que os pais aprovam. A expectativa é que a escola prepare cidadãos conscientes, capazes de pensar de modo autônomo.
Acredito que um exemplo demonstre este ponto: se eu sou um professor de religião e explico à turma que segundo os budistas a iluminação não depende de qualquer Deus, isso certamente vai contra as convicções religiosas mais profundas de certos cristãos. No entanto, é evidente que não reconhecemos o desafio às convicções religiosas dos pais como uma justificativa para barrar a explicação da cosmologia de religiões diversas. Em termos mais gerais, diga-se de passagem, potencialmente qualquer informação passada em sala de aula pode ser ofensiva às crenças deste ou daquele pai. Se quisermos escolas realmente informativas, devemos aceitar - e até mesmo celebrar - os desafios que a educação coloca para as convicções mais profundas.
Neste ponto também a proposta de Malta é longe de ser "sem partido". Em uma sociedade com desigualdades históricas, violência sexual e preconceitos religiosos, submeter o conteúdo do ensino ao controle absoluto dos pais significa reproduzir em sala de aula a realidade social de maneira irrefletida. A proposta tem o cheiro daquela velha anedota de uma mãe que, inconformada com os tempos modernos, reclama que as escolas deveriam ter aula de religião. Outra pessoa então a questiona: "de todas as religiões ou só da sua?".
*Blogueiros do HuffPost Brasil debatem sobre o polêmico projeto de lei que quer implementar a 'Escola Sem Partido'.
Disponível em: http://www.brasilpost.com.br/daniel-murata/escolas-sem-partido-e-edu_b_11099354.html?1469446597=&utm_hp_ref=brazil&ncid=fcbklnkbrhpmg00000004
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