A cultura universitária brasileira merece muitas críticas, pertinentes e fundamentadas. Infelizmente, aquela publicada por Hugo Fernandes-Ferreira, neste HuffPost Brasil ("Um exército de Doutores desempregados"), não é uma delas.
A razão é bastante simples: o tom coloquial e supostamente informado da mesma oculta uma preocupante falta de rigor intelectual - algo contraproducente para uma condenação ao próprio modelo acadêmico do País, veiculada em um publicação respeitável.
Para começar, o autor apresenta o 'carinha', seu personagem fictício que, através de uma generalização apressada, passa a representar um brilhante estudante brasileiro, vítima do sistema acadêmico.
Este personagem, de acordo com o texto, parece ter sido obrigado pelo Estado a frequentar um curso que não resultou em alta empregabilidade no mercado de trabalho, e, por isso, o 'carinha' se viu obrigado a continuar na carreira acadêmica, sujeito a baixo retorno financeiro - por mera questão de sobrevivência.
A questão é: onde está a evidência para esta afirmação? Se um sujeito fez um curso universitário em área concorrida, a culpa é do Estado?
O Estado deveria induzir jovens estudantes a se formar em outro curso? O Estado é responsável por abrir vagas de emprego? O Estado deve ser responsabilizado pela ausência quase total de investimento do setor privado na educação do Brasil? Segundo quais dados, que critérios?
Uma universidade que abra cursos apenas para formar profissionais para atender a necessidade do mercado privado é uma universidade sem propósito, imediatista e cara (para fazer o que o Sebrae ou o Senac já fariam).
Imaginemos que hoje é necessário ter mais engenheiros e médicos no Brasil. Se amanhã essa demanda for suprida e surgir a necessidade de termos mais biólogos, o que o autor sugere? Que os cursos de engenharia e medicina sejam fechados e que se criem departamentos de biologia, do nada? Sem profissionais formados anteriormente para atuar nos mesmos? E se esta necessidade mudar depois de amanhã? Percebe-se o custo que isso acarretaria?
Ora! Um dos papéis da universidade pública é ser justamente uma reserva de pensadores capazes de solucionar problemas imediatos e também de longo prazo, ainda não previstos.
Não existe possibilidade de se criar uma universidade-fábrica que sirva tão somente para formar profissionais para o setor privado, na medida exata de sua demanda. Pode surpreender Fernandes-Ferreira, mas esse é um fenômeno global.
O autor se queixa de que estudantes menos qualificados que o magistral 'carinha' também consigam vagas para estudar. Mais uma vez, a sugestão carece de evidência e, pior, levanta mais uma série de questionamentos: qual o problema de alguém, supostamente (uma vez que não há evidência) menos qualificado que o 'carinha' ser aprovado para a continuidade da sua formação e receber uma bolsa para tanto?
Quem vai aferir a qualificação é a instituição, mas quem determina a empregabilidade é a competição - o santo 'mercado' que, ironicamente, muitas vezes tem optado por demitir doutores e contratar mestres 'mais em conta' (para isso, há vasta evidência, bastando que se faça uma busca online).
Se o 'carinha' é tão bem qualificado quanto ele acredita ser, isso não haveria de ser um problema. Na verdade, o que temos escamoteada aqui é uma forma de elitismo não tão distante daquela que reclama da presença de "menos privilegiados" em aeroportos lotados.
Se os problemas do artigo se resumissem a isso, já seria suficiente. No entanto, Fernandes-Ferreira passa a se queixar também do valor das bolsas.
Pode passar despercebido, mas já se trata de um outro assunto. Infelizmente, o propósito do comentário não fica claro: o que o autor pede é um aumento das bolsas? A exclusão de candidatos que ele diz existirem menos qualificados que ele? Ou que o Estado garanta emprego para todos? É impossível deduzir.
A crítica feita ao valor da bolsa de pós-doutorado paga no Brasil resulta de um problema um pouco mais sério. O autor parece desconhecer o quanto é pago para pesquisadores ao redor do mundo, a fim de estabelecer uma comparação pertinente.
Pode parecer surpresa, mas R$ 4.100 reais (aproximadamente 1.000 dólares na cotação de hoje) ainda é um valor competitivo entre bolsas de pós-doutorado no exterior - mesmo com a atual desvalorização do Real e frente a um custo de vida nem sempre tão alto quanto em países europeus.
É preciso chegar à conclusão, então, que o pagamento para pesquisadores de pós-doutorado júnior é baixo no mundo inteiro, se comparado com o salário de professores efetivos.
Pior ainda é sugerir que bolsas de pós-doutorado, curtas, não devam ser consideradas uma forma de emprego (apresentada pelo autor como uma última alternativa), quando esta é a realidade ao redor do mundo. Na Alemanha, por exemplo, o pós-doutorado é uma profissão. Naquele país, aliás, é impensável tornar-se um professor efetivo sem ter livros publicados, e praticamente impossível chegar ao cargo de professor titular sem uma "habilitação", que requer a produção de uma nova tese, mais complexa que a de doutorado (e feita sem orientação). E mesmo depois de passar por essa "habilitação", não há garantia de que o professor seja contratado.
O autor afirma que "o resumo da história é... Temos um exército de graduados analfabetos funcionais e de mestres que não merecem o título. Em um pelotão menor, mas ainda numeroso, doutores cujo diploma só serve para enfeitar a parede. Bilhões de reais gastos para investir e manter um grupo cujo retorno científico é pífio para o País".
O problema aqui é que essa conclusão não está baseada em premissas válidas - que nem sequer foram tratadas no artigo. Afinal, onde foram demonstrados os dados que determinam a população de analfabetos funcionais graduados e mestres?
Quais são os "doutores cujo diploma só serve para efeitar" paredes?
O retorno científico pífio para o Brasil é produzido pelos doutores desempregados ou pelos professores efetivos (a quem cabe esta responsabilidade)?
Escrever uma tese é um retorno pífio para o investimento que o próprio Fernandes-Ferreira diz ser baixo? Percebe-se a fragilidade dessa conclusão? Ela é certamente aceitável como um "desabafo" em um blog pessoal na internet (porque afinal disso não se espera muito), mas certamente está distante do compromisso intelectual que se espera de um cientista.
Curiosamente, Fernandes-Ferreira reclama da "quantidade exacerbada de cursos criados sem demanda profissional", esquecendo-se que várias universidades federais se beneficiaram do projeto de expansão das universidades públicas (Reuni) nos recentes anos, sobretudo no Nordeste.
Esquece-se, ao que tudo indica, da velha máxima tirada de Hamlet: "se todos fossem tratados como merecem, ninguém escaparia ao chicote".
Não se sabe qual seria o critério de Fernandes-Ferreira para a eliminação de cursos: as notas dos mesmos, de maneira indiferente à importância desses cursos no desenvolvimento regional? Se esta for a alternativa imaginada pelo autor, daremos um grande passo para trás na formação superior fora dos grandes centros acadêmicos do País.
Como sugeri acima, o modelo universitário brasileiro necessita urgentemente de uma autocrítica. Mas isso só terá relevância se esta for fundamentada, demonstrável, e puder ser desdobrada em soluções.
Caso contrário, estamos diante de uma muralha de fumaça feita para ocultar problemas bem mais profundos. Nada é mais pernicioso para o desenvolvimento da ciência brasileira, por exemplo, do que a endogenia segundo a qual os cargos para professores são preenchidos por profissionais egressos do mesmo departamento - o que pode indicar um coleguismo inaceitável, em que os candidatos jamais tiveram que provar seu mérito científico e intelectual à comunidade científica mais ampla, bastando tão-somente comprazer seus mentores e quiçá aceitar a perspectiva teórica vigente entre eles.
Além de nem sempre resultar na escolha do melhor profissional, essa endogenia não permite que os departamentos explorem novos domínios do conhecimento, uma vez que novas gerações de professores e pesquisadores se acomodam no cânone feudal estabelecido por seus ex-orientadores.
Outro problema grave é o sistema de avaliação da produção científica que permite, por exemplo, que artigos científicos de menor vulto (e não resultantes de equipes de laboratório) sejam assinados a várias mãos, para que todos se beneficiem de uma verdadeira "pirâmide Telexfree" de pontuação acadêmica que remonta a tradição do quiprocó da política brasileira.
Isso para não falar daquelas revistas científicas departamentais que servem para publicar essencialmente os membros do próprio departamento - sem a necessidade de revisão às cegas por pares (blind peer review) - e mesmo assim, por razões que desconheço, são mais bem avaliadas nos sistemas nacionais que publicações estrangeiras respeitadas.
Apesar de muitos problemas, o Ciência sem Fronteiras (CsF), criticado por Fernandes-Ferreira sem maior profundidade, tem aberto espaço para brasileiros em várias universidades estrangeiras, como eu pude pessoalmente constatar.
Hoje, o Brasil é reconhecido como um almejado parceiro científico, e a presença brasileira nos círculos acadêmicos internacionais aumentou exponencialmente. Isso para não falar do impacto do mesmo no Soft Power brasileiro.
Leve-se em consideração ainda que o Ciência sem Fronteiras tem um programa de atração de cientistas para o Brasil que conseguiu, pela primeira vez - e mesmo que em uma escala diminuta - romper o modelo de endogenia nacional, trazendo pesquisadores ao País para trabalhar estritamente com seus objetos científicos.
Ser cientista não é apenas receber o salário digno de um. É ter o método científico como modelo básico de interação com o universo a nosso redor, para melhor compreendê-lo e explicá-lo. Quando alguém que se apresenta socialmente como cientista não aplica esse método a uma crítica, faz um desfavor ao papel do cientista na sociedade contemporânea - aproximando-se um tanto da histeria lamentável que toma conta do cenário político do Brasil.
Disponível em: http://www.brasilpost.com.br/pedro-germano-leal/modelo-universitario_b_9352266.html?ncid=fcbklnkbrhpmg00000004
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