A desinformação leva muita gente a pensar que a insatisfação dos militantes é desproporcional, mas é notável que há sérios problemas de representatividade perpetuados pela Rede Globo e sua programação.
Por Jarid Arraes
Sexo e as Nêgas parece ser uma máquina de gerar controvérsias. A série global de Miguel Falabella já enfrentou protestos de vários grupos, entre eles militantes do movimento negro, ativistas feministas e intelectuais que declararam repúdio aos estereótipos racistas e sexistas reproduzidos pelo programa. Quem pensou que as críticas eram fogo de palha, acabou se equivocando: mesmo diante dos esforços da Globo e de Falabella, os embates permanecem firmes.
Para quem não está habituado com as reivindicações dos coletivos negros e feministas, a forma como Sexo e as Nêga foi alvo de protestos foi impactante. Muita gente se mobilizou, principalmente nas redes sociais, com páginas de repúdio que chegam a reunir mais de 30 mil pessoas. Entre os protestos presenciais, um grupo do Levante Popular da Juventude de São Paulo se reuniu em frente aos estúdios da Globo e, além de fazer um “escracho” com palavras de ordem e cartazes, também pichou a fachada da emissora com a palavra “racista” abaixo de seu logo.
A desinformação leva muita gente a pensar que a insatisfação dos militantes é desproporcional, mas é notável que há sérios problemas de representatividade perpetuados pela Rede Globo e sua programação. São muitos anos de um poderoso império, que vende e dissemina o racismo e o machismo sem enfrentar maiores consequências. Com a série Sexo e as Nêgas, uma nova forma de demandar mudanças vem provando que a internet e a politização coletiva de grupos de mulheres, sejam esses grupos feministas ou não, têm muito a oferecer.
No entanto, as represálias advindas de quem está satisfeito com o status quo não são novidade. Talvez por isso uma ação conjunta tenha sido convocada em defesa de Sexo e as Nêgas, contando com vídeos de vários artistas, atores e personalidades negras do país – dos quais a maioria possui ligação direta com a Rede Globo ou com o diretor Miguel Falabella. Outros, como o deputado Jean Wyllys, surpreendem, porque carregam consigo um histórico de luta e representação dos movimentos sociais e das ditas minorias. Mas, para a perplexidade de muitas pessoas, Jean Wyllys não só declarou sua admiração por Sexo e as Nêgas como criticou a mobilização dos movimentos sociais que protestam contra a série.
No vídeo, o deputado afirma que somente parte do movimento negro se posicionou de forma crítica à respeito da série e não poupa elogios ao diretor, evidenciando que o mesmo está “muito longe” de ser um racista, pois dá espaço para quatro atrizes negras em sua obra polêmica. Outras personalidades também despertaram reações decepcionadas dos ativistas dos movimentos negro e de mulheres; Camila Pitanga, por exemplo, afirma que as críticas contra o seriado são “preconceito às avessas” e ainda “louva” Falabella por assumir uma “trincheira” contra o preconceito, só que de uma forma menos “cansativa” do que o modo como os movimentos sociais atuam.
Os vídeos vêm sendo publicados no canal “Falabella e as Nêgas”, no Youtube, mas, apesar dos depoimentos a favor da série, as gravações acabam também virando palco de comentários críticos. Entre as mensagens deixadas por internautas, alguns sugerem que os artistas se posicionam de forma favorável para não perderem seus empregos na emissora; outros demonstram tristeza e deixam longos textos de desabafo.
De onde vem e para onde vai o apoio?
Para intelectuais como a escritora Ana Maria Gonçalves, os vídeos rendem muitas questões. “Boa parte dos vídeos traz mais ou menos a mesma linha de raciocínio, o mesmo mote, os mesmos argumentos. Então, não foram espontâneos; mas a pedido de alguém com um scriptem cima do qual foram feitas improvisações. Deste modo, vejo que são mais em solidariedade às/aos artistas negros/as da série, que ficarão desempregados com o cancelamento da segunda temporada. Como isso seria um tanto humilhante de se dizer, apelam para o pedido de que Miguel Falabella volte atrás em sua resolução de não mais escrevê-la.” Gonçalves acrescenta que é possível que essa decisão não seja somente do diretor, pois haveria rumores, antes mesmo de a série ir ao ar, de que a Globo não teria gostado do material entregue. Assim, talvez os protestos não tenham sido os causadores do cancelamento, ainda que tenham contribuído.
Segundo Gonçalves, o foco dos artistas negros deveria ser outro, visando um objetivo maior e mais coerente. “Encaro essa campanha, com o infeliz mote de ‘Não deixe passar em branco’ como, na verdade, um grande desserviço a atores e atrizes negros/as. Não seria muito mais digno, justo e producente que fizessem campanha para que uma maior quantidade de artistas negros recebessem papéis (atores, cantores, dançarinos, roteiristas, diretores, etc) relevantes e interessantes em toda a grade da Rede Globo? Estamos falando de uma concessão pública em um país majoritariamente negro e é dessa forma que deveriam estar representados em sua produção artística: majoritariamente. Mas estão brigando para que continuem dependendo de um único – um único! – programa, para se sustentarem.” Se não houver mais episódios de Sexo e as Negas, os atores não terão seus contratos renovados. Por isso, Gonçalves acredita que ao invés de comprarem briga com a concessão pública, os artistas acabam brigando com militantes de movimentos sociais, que estão brigando justamente pela representatividade de negros e negras no Brasil.
Os argumentos apresentados pela escritora também são levantados pela professora Olwa-Seyi Montsho, que acompanhou os episódios de Sexo e as Nêgas e faz um resgate histórico para exemplificar a profundidade do problema. “O Miguel Falabella coloca atores e atrizes negros nas suas obras, isso é fato. Se houvesse uma rebelião da classe, obviamente a posição deles na TV estaria ameaçada, porque seria lida como ingratidão. É o pensamento do negro obediente e satisfeito que ainda se faz presente na sociedade depois de tanto tempo do fim da escravatura: agradecer a mão branca que lhes dá o mínimo com eterna gratidão, como se aquilo que recebesse não fosse direito. Temos atrizes e atores negros muito talentosos, é absolutamente normal que eles tenham espaço na TV em razão disso.” A professora ainda acredita que muitos não veem o cunho racista da série porque o discurso do Miguel é muito bem estruturado e consegue confundir quem não está condicionado a desconstruí-lo. “A síndrome de Princesa Isabel, do branco salvador dos negros que não sabem se cuidar sozinhos, está muito enraizada nele”, salienta.
Os louros colhidos por Falabella por causa dos vídeos de apoio são então evidentes. “É uma massagem no ego dele, claro, que pode ‘voltar atrás’ nos braços da classe artística, conformada com o fato de somente o programa dele – apenas um, em uma grade enorme, é bom lembrar sempre – empregar um número significativo de artistas negros”, diz Ana Maria Gonçalves. “O apoio desses vídeos também faz com que ele possa continuar desconsiderando as críticas recebidas, chamando de ignorantes todos que ousam levantar problemas em seus trabalhos”.
A existência do racismo: a gente nega por aqui
As causas de toda essa discórdia, no entanto, se encontram profundamente naturalizadas na cultura brasileira e, como tudo o que envolve a discriminação racial, encontra bases históricas para que continue sendo perpetuada. São modelos de conduta, estereótipos e sentimentos que preterem a negritude, seja de forma explícita ou de maneira velada – e tudo isso é muito bem conhecido pelos que protestam contra Sexo e as Nêgas.
Norma Odara Fernandes da Silva é um excelente exemplo da força feminina que move os protestos contra a série: estudante de Jornalismo pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e estudante de Letras pela FFLCH-USP, sua atuação é ampla e pautada na busca cotidiana por embasamento. Por isso, ela é também militante no Movimento Negro USP, do Movimento Negro AfroMack e da Frente Perspectiva, primeira frente progressista do Mackenzie.Com todo esse “currículo” para apresentar, Norma Odara faz questão de discorrer sobre uma das razões pelas quais muitas pessoas negras não se juntam aos protestos: o problema secular da fragmentação identitária. “Esse triste fenômeno acontece porque falta identidade e educação, formação mesmo. A identidade é conquistada pelo negro paulatinamente numa sociedade que cultua padrões europeus. As crianças não possuem estudos sobre história da África, não sabem de qual origem são, se bantos, crioulos, nagôs. Aprendem desde pequenas que o legal é ter cabelo liso, o legal é ter descendência europeia”, pontifica.Segundo Odara, o negro na contemporaneidade, especificamente o negro brasileiro, tem que buscar suas raízes sozinho e enfrentar a resistência do status quo – um processo difícil, pois pressupõe a resposta do oprimido. “Se alguém que estava sendo oprimido levanta a voz e instiga a ordem vigente, a conjuntura muda drasticamente”.
A identidade negra no Brasil foi construída sobre os alicerces do racismo e uma das formas de manter a negritude como uma qualidade negativa é a animalização da figura das pessoas negras, considerando suas características como socialmente inadequadas. A ideia da “promiscuidade” é uma dessas características, sendo associada às pessoas negras de sob títulos que, por exemplo, relacionam a negritude com “a cor do pecado”. Por isso as mulheres negras protestam com tanta veemência quando são reduzidas ao papel da mulata hipersexual, algo que Sexo e as Nêga não falha em reproduzir.
“Vejo todos esses fatos [em defesa da série] como uma reafirmação de estereótipos, a começar pelo nome. Não estou aqui sendo pudica nem algo do tipo, mas soa, na minha opinião, como uma legitimação do que os negros são. Aquela hipersexualização do negro que vem desde a escravidão e que afirma coisas como “negra é fogosa”, “negro tem o pênis grande”, coloca Norma Odara. “São cacoetes e falácias que ouvimos a todo instante. Não servimos pra dar prazer pra senhor e senhora ninguém, não somos objetos sexuais, somos capazes intelectualmente, queremos voz e vez e não dessa forma”.
Para Ana Maria Gonçalves, a negação do racismo presente em produtos como Sexo e as Nêgas é uma forma de tornar a discriminação mais fácil de lidar, já que o assunto é evitado também dentro das próprias famílias negras. Na ótica da escritora, isso acontece por vários motivos, quase sempre relacionados com o forte fator de sofrimento ligado ao preconceito racial. A falta de informação e a vergonha também podem atuar potencializando a recusa de enxergar e levantar a voz contra o problema. E se isso, por si, já é extremamente difícil, quando outras pessoas negras se voltam contra militantes negros, há muito para se lamentar.
Na opinião de Olwa-Seyi Montsho, tudo faz parte de uma velha estratégia dominante: dividir para conquistar. “Porém, agora, com um toque pós moderno: dividir pra silenciar. Os pretos que são contrários à série se silenciam por terem sua fala deslegitimada pelos irmãos e os que são favoráveis também se silenciam porque estão num ambiente que não possibilita uma discussão acerca do racismo. É nadar de encontro a uma maré, que ganha mais força porque quem deveria ir contra ela está nadando a favor”, explica.
Montsho ainda afirma: “Quando se diz qualquer coisa sobre um provável caso de racismo, o vitimismo é posto em pauta. A resposta é tão internalizada por alguns, que optam pelo silenciamento, ou são silenciados paulatinamente. Há também que se lembrar que existem pretos em ambientes onde o racismo se mascara com perfeição e passa despercebido por algum tempo. É necessário descolonizar a mente”, pontua.
Outro fator levantado pela professora é a tendência crescente de se colocar opiniões como assuntos encerrados, sem espaço para discussão ou debate. Pior ainda: utilizar opiniões de indivíduos que não compartilham das vivências de grupos oprimidos como verdades absolutas sobre casos de violência. “O problema das opressões em geral é que tudo que é dito de modo a não desconstruí-las é tido como opinião. Torna-se válido ser preconceituoso, porque é apenas o ponto de vista da pessoa. Isso se reforça quando a pessoa que tece sua ‘opinião’ não faz parte do grupo oprimido em questão”, exemplifica. “É necessário saber que, por mais que haja identificação com a causa, empatia com os que sofrem, nunca se terá a real dimensão de vivenciar o problema. No caso dos negros que se posicionam a favor da série e do recorte reducionista que ela faz da mulher negra, isso pra mim se mostra como uma preferência pela cegueira. O mito da democracia racial torna cada vez mais difícil apontar o racismo incutido nas pessoas e, quando alguém tenta fazê-lo, passa por vitimista ou louco. É normalizando que se disfarce as atitudes racistas no Brasil”, finaliza.
Representatividade e mais luta pela frente
No final de tudo, o maior problema de Sexo e as Nêgas é provavelmente a respeito da representatividade. Seja por cair em clichês ou reforçar estereótipos com problematizações rasas e equivocadas, a verdade é que a série só oferece mais do mesmo e segue a linha tão conhecida da Rede Globo: o lugar da mulher negra, naquela telinha, é de mulata, Globeleza, empregada, babá ou coadjuvante. Se a proposta fosse, de fato, desconstruir paradigmas racistas e colocar as pessoas negras em uma posição inovadora na teledramaturgia, muita coisa deveria ser feita de forma diferente.
É possível escrever personagens negras que tenham profissões de prestígio, ou que não sejam reduzidas ao papel sexual – ou ainda debater a objetificação sexual da mulher negra, rompendo com o imaginário da “mulata sem compromisso”. Mas como esperar que uma série global critique as próprias lógicas da casa? Para isso, o próprio Globeleza entraria na berlinda. Nem mesmo os mais otimistas considerariam isso possível atualmente.
Mas a representatividade importa e faz diferença na vida de milhares de crianças negras, que crescem assistindo personagens negros que não lhes despertam a imaginação e nem representam possibilidades realmente diversas para o futuro. A feminista negra Náthalie Louise Oliveira, que também faz parte do Coletivo Negro da Universidade de São Paulo (USP), usa seu próprio exemplo como evidência dessa realidade. “O curioso é que essa questão de representatividade sempre foi determinante no meu entendimento de mundo. Quando eu era criança, pensava que só poderia ser empregada, e se quisesse ser bonita eu teria que ser Globeleza. É essa mensagem que esse tipo de série passa para as nossas meninas pretas, que elas só servem pra sexo, que elas precisam ser sensuais e que elas nunca vão poder ser mais do que isso”.Oliveira se mostra otimista com os próximos passos dos movimentos sociais que protestam contra Sexo e as Nêgas e outros programas na televisão brasileira com conteúdo interpretado como racista. Para ela, os protestos aumentarão. “Aumentam porque é inaceitável que Miguel Falabella e a Rede Globo continuem a subestimar a nossa inteligência”, conclui.Com novas estratégias e outros questionamentos, os coletivos políticos fazem a diferença. “Acho que nossas vozes, juntas e nem sempre ou necessariamente uníssonas, estão começando a incomodar”, diz Ana Maria Gonçalves. “Principalmente vendo aparecer uma geração guerreira, bem informada, barulhenta, unida e disposta a tomar a representatividade em suas próprias mãos. Destaco, por exemplo, o coletivo Blogueiras Negras, que é o movimento mais interessante, inteligente, representativo e diversificado que vi surgir na internet nos últimos anos, e sou do tempo da internet discada”.Os resultados de tudo isso serão vistos em breve e, quem sabe, a luta de hoje seja devidamente reconhecida e respeitada em um futuro próximo.
Foto de capa: Divulgação
Disponível em: http://revistaforum.com.br/digital/174/sexo-e-negas-racismo-sexismo-e-silenciamento/
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