sábado, 6 de dezembro de 2014

RELACIONAMENTOS ABUSIVOS ENTRE HOMENS

Muitos optam por sofrer em silêncio


Um assunto que preferimos não comentar

Descobrir-se em uma relação abusiva é uma possibilidade real para qualquer pessoa que se disponha a participar de um relacionamento, independente de classe, sexo, gênero ou sexualidade. O assunto, no entanto, ainda enfrenta grande silêncio quando se trata de discutir certas especificidades ao acontecer entre homens que se relacionam. Parte desse motivo, desconfio, vem da rejeição às velhas (mas persistentes) representações sobre relacionamentos homossexuais como disfuncionais. Não apenas Hollywood, como aponta o documentário The Celluloid Closet, mas várias referências da ficção à homossexualidade frequentemente não admitiam que ela fosse mostrada de uma forma saudável, deste modo, o universo cinematográfico e literário foi povoado por figuras de vítimas e abusadores homossexuais com os quais ninguém quer, nem remotamente, se identificar.

No entanto, relações abusivas acontecem e muitas vezes homens gays se encontram menos preparados para lidar com elas que outras pessoas. Vale notar que a posição de vítima costuma ser associada a feminilidade, sendo que as poucas campanhas que incluem o tema, normalmente de forma indireta, associam-no a questão da violência doméstica, tendo como foco mulheres agredidas e vitimas de relações que tornaram-se abusivas. Para muitos homens, é mesmo muito difícil imaginar que a situação que está vivendo se equipara a descrita nessas campanhas ou reportagens e até mesmo a possibilidade de conversar sobre isso soa ridículo.

Estou em uma relação abusiva?

Os sinais de uma relação abusiva podem ser, mas não se limitam à: possessividade (o companheiro promove o seu isolamento de outras relações, como  amigos, família e colegas); controle (as atividades que vocês fazem ou mesmo as que você faz sozinho estão sob a gerência dele, que reage mal, às vezes agressivamente, quando vocês não fazem o que ele quer); superioridade (ele precisa ganhar sempre ou estar “certo”, disfarçando seu sentimento de inferioridade); manipulação (ele pode mentir, alegar que a culpa na verdade é sua, ou fazer que você sinta pena dele); mudanças de humor (ele pode ser abusivo em um momento e carinhoso ou humilde em outro); ações não correspondem as palavras  (diz que ama, mas maltrata e não cumpre o que diz); punição/chantagem (priva de sexo como castigo, faz jogos silenciosos, etc); não quer procurar ajuda (nem discutir o assunto com você ou ninguém, embora talvez fale mal de seu comportamento aos outros). Se você identifica alguns desses aspectos como uma constante em seu relacionamento, talvez seja o momento de conversarem sobre isso. No entanto, nem sempre homens gays sentem-se à vontade para discutir esse assunto com ninguém, principalmente quando não assumiram sua sexualidade.

O peso do preconceito e do armário

Viver no armário se torna um fator agravante para que a relação abusiva se perpetue, afinal uma das vias para escapar de uma relação abusiva é buscando suporte da família e amigos, o que fica impossível se a relação for secreta. Mas esse não é o único problema, muitas vezes são os familiares que, com a intimidade que outros não possuem, podem chamar a atenção para comportamentos abusivos de um companheiro. Isso, no entanto, só é possível se o casal gay estiver fora do armário e convivendo com a família com certa proximidade, o que infelizmente não é tão comum quanto poderia ser.
Mesmo entre casais assumidos não é raro existir uma certa barreira de contato entre família e o cotidiano da relação amorosa. Em algumas ocasiões essa blindagem da relação pode ocorrer motivada justamente pelo embaraço de estar numa relação disfuncional, pois existe o temor que a família generalize os problemas que acontecem naquele relacionamento em particular para todas relações homossexuais. O medo que o julgamento moral, contaminado por visões preconcebidas, venha a minar a aceitação parcial da família, faz com que o homem gay empurre para o tapete os pequenos abusos que vão surgindo gradativamente.
O armário ainda pode funcionar como desculpa para muitas situações abusivas em um relacionamento. É fácil cair em raciocínios falaciosos como acreditar que no momento que o sujeito se aceitar homossexual (ou bissexual) irá finalmente apresentar os amigos dele e irá querer conviver com os seus, mas por enquanto ele mantém você escondido de todos (possessividade) e encontra apenas quando ele quer (controle). Ou esperar quando ele finalmente ficará confortável para demonstrar carinho por você mas, por enquanto, um dia está distante e no outro, carente (mudanças de humor). Ele pode até admitir que isso acontece, mas apenas porque está em processo de aceitação e diz que quando puder sairá do armário e esses problemas irão se resolver (manipulação). Nós, que já passamos pela experiência do armário, temos empatia com quem está lá e é possível que seja mesmo apenas uma fase, mas ainda que seja esse o caso, não é motivo para quem estiver ao lado dele, apoiando nesse momento difícil, mereça ser desrespeitado e manipulado.

O medo coletivo da solidão gay e a crença num amor que vale menos.

Outro fator que pesa sobre a questão é a visão negativa da experiência gay enraizada em nossa cultura. O medo da solidão e a crença na inexistência de pessoas interessadas em manter relações comprometidas e amorosas, faz parecer aceitável se dispor a manter relações onde há sofrimento, jogos e manipulações em troca de um momento ou outro de boa companhia. Afinal, se o que espera lá fora é apenas solidão e rejeição, porque não aceitar alguma tortura emocional em troca de afeto?  Esse pensamento nem sempre é apenas um preconceito internalizado, mas também um conselho vindo de outros amigos que compartilham dessa percepção: “o mundo gay é terrível, você tem sorte de ter alguém”.
A falta de referências positivas ainda constrói um imaginário bastante limitado e deturpado das possibilidades de relações homossexuais, colocando-as num nível inferior as relações heterossexuais ou como cópias mal-feitas. É relativamente comum que as pessoas sejam pouco acolhedoras diante da queixa sobre traições ou negligência/abuso emocional em relações entre homens. Essa queixa é percebida como sendo de menor gravidade, como se fosse assim esperado por essa união ser menos séria/real/sagrada/importante/ respeitável que a outra.
Ora, apenas aquele dentro da relação pode dar a medida do sofrimento que as ações do seu companheiro provocam, mas as intervenções bem intencionadas dos amigos, quando acontecem, costumam passar por cima dessa dor, minimizando sua relevância,  algumas vezes em favor da manutenção da união. Afinal, no mundo onde somos acusados de ter relações instáveis, volúveis e fadadas ao fracasso, ninguém quer testemunhar uma desunião. Já os que aconselham abandonar a relação abusiva, muitas vezes abordam a questão ignorando a complexidade de uma relação, seus apegos, compromissos e expectativas compartilhadas, como parece ser auto-evidente em relacionamentos heterossexuais de longo prazo.

Reparações necessárias

É preciso que a relação amorosa entre dois homens seja compreendida por nossa cultura como um espaço de confiança, respeito e apoio mútuos com igual valor e dignidade que as relações heterossexuais. Só desta maneira é possível evitar as vias que levam a aceitação dos abusos encontrados em relacionamentos específicos como sendo naturais, ou, por medo, vergonha ou conformismo, a ocultação desses problemas para quem poderia ajudar. A existência de abusos em relações entre homens e mulheres não nos faz pensar que uniões heterossexuais são menos dignas e o mesmo deve ocorrer nas relações entre pessoas do mesmo sexo. Isso inclui compreender, também, que esses relacionamentos não vão necessariamente se espelhar em seu equivalente heterossexual, e nem mesmo precisam disso para provar seu valor.

Caminhos possíveis

Se uma pessoa em um relacionamento que tornou-se abusivo decide persistir nele, almejando a construção de uma relação saudável, ou opta por desistir é uma questão particular que deve ser encarada em toda sua complexidade. No entanto, uma vez livre das ideias negativas que cercam o imaginário sobre as possibilidades afetivas entre pessoas do mesmo sexo, um homem gay pode tomar essa decisão de forma realista, sem estar preso a medos, culpas e sabendo que é capaz e merecedor de viver um relacionamento onde há respeito e cumplicidade.

Saber mais:

Filmes que abordam relações abusivas entre homens.
  • Felizes Juntos (Happy Together,春光乍洩, 1997)
  •  Versos de um Crime (Kill Your Darlings, 2013

About Paulo Duarte (48 Articles)
Coordenador do Núcleo UNISex, atua voluntariamente como facilitador e aconselhador em grupos de convivência para LGBT desde de 2007. Também é escritor, pintor e artista gráfico.

Disponível em:  http://nucleounisex.org/ensaios/relacionamentos-abusivos-entre-homens/

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