segunda-feira, 27 de outubro de 2014

"PARA QUE SERVE UMA NOVELA" POR ÍTALO DAMASCENO


Por Ítalo Damasceno para o Eu tô ficando é velho, não é doido não!  
 
Este é o texto que, desde quando comecei a falar sobre novelas no blog, sempre quis escrever. Estava guardando para um momento especial e este momento chegou!
 
Na terça-feira um amigo passou mal e me pediu que o levasse ao hospital. Já era mais de 20h e eu calculei se conseguiria voltar a tempo para ver a novela – antes que pensem que sou um desalmado, era só umas dores nas pernas, mas ele já está bom. Acontece que esperamos duas horas para ser atendido e, enquanto isso, eu estava com os olhos grudados na TV do hospital, pois passava na novela IMPÉRIO o capítulo em que o cozinheiro Enrico agride fisicamente uma travesti na sua festa de despedida de solteiro a qual havia sido contratada para usar uma faixa escrita Claudete Hétera em referência à forma que o blogueiro e maldoso Téo Pereira se refere a Cláudio (pai de Enrico interpretado por José Mayer). Além disso, ela dizia coisas como “sou eu, seu papai”, tudo feito de propósito para tirar o rapaz do sério, junto com um monte de bebida que o rapaz ingeriu, com o objetivo de culminar na agressão, que foi totalmente fotografada e filmada por um “amigo”, que também recebeu dinheiro do blogueiro para isso.
 
Meu amigo que passava mal não vê a novela, então fiz uma pequena explicação sobre o que estava acontecendo e como as coisas chegaram até ali. Falei que a esposa de Cláudio sempre soube da sua orientação sexual, que se amavam, tinham decidido viver juntos, inclusive estando ciente que ele tem um caso com um rapaz, e, apesar disso, o filho nunca aceitou, chamando a toda a família de depravados e indecentes por viverem em tal situação.
 
Passada esta preleção, iniciou-se um debate na sala de espera que foi desde se era justificável a agressão física à travesti, pois esta havia provocado o rapaz, até à pergunta: qual o papel de uma novela na sociedade?
 
 
Quanto ao primeiro ponto da discussão, defendi que a agressão não seria justificável em hipótese alguma porque ela se deu não por conta das provocações da travesti, mas por Enrico ser homofóbico principalmente. O cozinheiro se recusa a refletir e aceitar um aspecto da vida dos seus pais que não tem nada a haver com ele como filho, atitude que o levou a sair de casa e a desistir do seu casamento. Já meu amigo, apesar de concordar que a agressão não seria justificada, pensa que seria compreensível por ela ter se dado em um momento tão sensível (logo após as brigas dele com o pai e quando ele havia se embriagado por conta da festa) e pela travesti saber que estava sendo contratada para humilhá-lo (pois o caso de Cláudio, mais do que ser revelado para a família, se tornou de conhecimento público). Rebati afirmando que não deveria ser considerado humilhação nenhuma alguém dizer que seu pai é gay e que se ele assim se sentia era mais um indício da sua homofobia e que ele iria continuar a sofrer por ver esta característica de forma negativa, sem por isso mudar em nada a condição de seu pai.  Também destaco que nós, como telespectadores, estamos em um ponto privilegiado de observador, porque sabemos o que acontece na vida do personagem e como ele se sente em relação a isso; no entanto, se você apenas lê uma notícia que diz “fulano agride travesti em despedida de solteiro” o julgamento será sumário em dizer “isso é homofobia”, ou “mas o que ele queria com uma travesti em sua festa?”, ou “é claro que ele sabia que não era uma mulher”, ou no caso específico “o pai já é veado, o filho deve ser também”.
 
Daqui a discussão seguiu um outro caminho, o da situação dramatúrgica. Meu amigo achou que a forma apresentada no folhetim, mais do que denunciar a homofobia da sociedade, é um desserviço pois apresenta a vítima da violência também como provocadora. Se o autor tivesse colocado para uma mulher sair do bolo e fazer as provocações ou se estas tivessem sido feitas por algum dos amigos – héteros todos – que estavam na festa, demonstraria que o problema era com ele, Enrico, mas ao pôr a travesti agindo desta maneira o telespectador pode dizer:
 
- Está vendo? São eles próprios que provocam.
 
Comparando a um caso real, dos três garotos que apanharam no Bar Simpsons aqui em Brasília, temos uma boa perspectiva. Se os garotos estivessem dando pinta, ou comentando que os caras da mesa ao lado eram gatos, isto poderia ser lido como provocação também. Se a pessoa tem uma questão bem resolvida – qualquer questão da sua vida -, não importa o que alguém diga, ela não se sentirá ofendida por aquilo. Se, suponhamos, a noiva fosse gorda e a piada fosse em referência a isso, se o personagem tivesse problemas em aceitar esta característica da moça poderia dizer “não aceito que diga isso da minha noiva, você a está ofendendo”. Não quero, neste momento, afirmar que concordo com Pelé quando ele diz que a atitude de Daniel Alves estava errada e que ele deveria apenas fazer ouvido de mercador para os que o chamavam de “macaco”. Não! O uso da palavra “macaco”, “gorda”, ou “Claudete hétera”, como ofensa deve ser denunciado, mas o ódio não pode ser direcionado ao alvo da pretensa ofensa como o provocador por ser o que se é.
 
Neste ponto, não entramos em acordo. Continuei achando que era um serviço contra a homofobia, ele achava que era um desserviço.
 
 
Finalmente chegamos à questão de qual é o papel de uma novela na sociedade brasileira e consequentemente do novelista. Na minha opinião, a novela e seu escritor tem antes de tudo um papel artístico, ela não precisa levantar bandeira ou cumprir uma função social. Ela até faz estas duas coisas, mas não como uma cartilha de moral e ética que vai elencar exatamente o que é certo e o que é errado. O escritor tem o papel de forçar os limites da sociedade para que ela se questione sobre suas regras, além de gerar a polêmica e o contracenso que fazem tão bem aos números da audiência. A produção artística tem um maior valor não ao afirmar o que já é certo, mas ao expor situações que abalem as estruturas e as convenções. No caso específico de Aguinaldo Silva, acho válido que nesta situação ele arme apontando sua lente para o homofóbico, mas também ao gay que se usa da homofobia – no caso Téo e o travesti. Uma circunstância não alivia a outra e, apesar de o movimento gay ser o ponto frágil da relação, não é por isso que também não pode ser analisado e até mesmo criticado. Já para meu amigo, a novela tem sim um papel social acima do entretenimento. O lugar que ela ocupa na sociedade brasileira faz do folhetinista um responsável do que sua novela diz, portanto ele deve ter muito cuidado do que lá vai aparecer. Até mesmo porque as novelas estão em redes de televisão abertas que demandam de autorização pública para funcionar, logo é imprescindível ter uma contrapartida social, digamos assim. Desta forma, apresentar uma situação em que, além do homofóbico, o gay-vítima também seja criticado é algo que pode ser questionado se deveria ser mostrado assim a uma sociedade que já é basicamente preconceituosa.
 
Neste ponto, desistimos de esperar o atendimento médico (em um hospital particular, diga-se de passagem) e fomos jantar um sushi.
 
Aguinaldo Silva tem, desde sempre, andado sobre um fio de navalha. Muitas vezes acusado de reacionário, noutras de exagerado, pelas situações apresentadas em suas novelas. Eu só posso dizer que ele, como artista, tem minha total admiração por provocar sentimentos tão controversos e por ter gerado este debate tão frutífero em um momento tão ruim.
 
Pela primeira vez concluo um post pedindo a opinião dos meus leitores. O que vocês acham sobre qualquer um desses pontos?

Disponível em:  http://www.homorrealidade.com.br/2014/10/para-que-serve-uma-novela-por-italo.html

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