O Brasil miscigenado e religiosamente plural não pode conviver com a perseguição às religiões de matriz africana.
Foto: Camila Souza/Fotos Públicas
Por Franklin Félix , da Carta Capital
Quando era criança, o dia de São Cosme e Damião era um dia de festa. A
gente voltava da escola cheia de doces e nem almoçava. A mãe chegava a
brigar: “Vão ficar doente de tanto comer doce”.
A gente ria e até dava um doce para ela. As crianças mais atentas
corriam para nos avisar que estavam dando doces em outras casas e assim,
no fim do dia, a alegria era separar os doces e guardar para a semana
inteira.
De família espírita, eu sabia que aqueles doces eram oferecidos em
homenagem – gratidão por uma benção alcançada, celebração de uma
conquista – a duas entidades: os santos Cosme e Damião.
Foram irmãos gêmeos e, quando encarnados, acredita-se que foram
médicos. A sua santidade é atribuída pela Igreja Católica por terem
exercido a medicina sem cobrar. No período colonial, negros bantos
identificaram Cosme e Damião como os orixás Ibejis em um sincretismo
religioso.
O Brasil é um país multirreligioso, sincrético e as comunidades de fé
podem caminhar, lado a lado, em harmonia. Não há fé melhor ou pior. A
fé é algo individual, íntimo e pode se complementar, o que chamamos de
dupla ou múltipla pertença.
É mais comum do que imaginamos encontrarmos evangélicos que acreditam
na reencarnação, católicos que “tomam passe” e espíritas que oram por
Maria.
Há quem confunde o espiritismo, codificado por Kardec, com as
religiões de matriz africana e não vejo problema. Doutrinariamente, há
algumas diferenças, mas prefiro focar nas semelhanças, como forma de
valorizarmos o que há de melhor e mais belo nas nossas religiões.
A umbanda, assim como o espiritismo-kardecista, é uma religião jovem,
acredita na reencarnação, em fenômenos mediúnicos, na prática da
caridade, na onipresença de Deus, na evolução dos espíritos e na
pluralidade das existências.
Mas eles também têm alguns preceitos muito particulares, como a
iniciação sacerdotal, a obediência a uma hierarquia, a utilização de
elementos da natureza para a cura dos males materiais e espirituais e,
em alguns casos, como naquele dos adeptos do candomblé, na imolação de
animais, que consiste em uma prática comum entre algumas religiões
afro-brasileiras.
A imolação de animais simboliza a comunicação e a troca de benefícios
religiosos entre os adeptos e as entidades cultuadas. Nas imolações
realizadas pelas religiões de matriz africana, após cada um dos rituais,
a carne do animal é utilizada para alimentação.
Católicos imolam animais em suas festividades sagradas (Semana Santa,
Natal), islâmicos só consomem carnes que tenham sido abatidas
diferenciadamente, conhecido como “halal”, que significa “permitido para
consumo”, tratando de princípios que vão do respeito a todos os seres
vivos até questões sanitárias.
Em menor escala no Brasil, mas seguindo princípios semelhantes
àqueles do halal, a certificação kosher (ou kasher) é feita
especificamente para atender consumidores judeus. O abate de bois e aves
é supervisionado por um rabino e, assim como na religião muçulmana,
denota a conexão entre o homem e Deus por meio da alimentação.
Apresentado tudo isso, se mesmo assim continuar a implicar com as
religiões de matriz africana, sinto lhe informar: seu problema não é com
o abate de animais e sim com racismo, o racismo religioso.
Racismo religioso são ataques fundamentados em práticas de
intolerância religiosa, em geral perpetrados por grupos que se
auto-identificam “cristãos”. São práticas que se inserem no mecanismo
mais perverso do racismo estrutural brasileiro que é o genocídio da
população negra.
Entendemos como genocídio tanto o extermínio físico quanto o
simbólico do povo afrodescendente brasileiro. Os ataques e as tentativas
de intimidação das práticas sagradas de matriz africana são formas de
apagar a presença negra.
O sacrifício animal deve sempre ser reconhecido enquanto um fenômeno
social, espiritual e cultural, que mobiliza diferentes atores com fins
específicos e legitimamente construídos.
A Constituição garante a liberdade de crença religiosa como direito
fundamental por meio de seu art. 5º, VI, sendo assim (e não poderia ser
diferente), também protege a manifestação da cultura afro-brasileira,
indígena e popular no art. 215 §1º.
Com a crescente onda conservadora e reacionária neopentecostal
(católicos, evangélicos, espíritas), alguns adeptos de religiões de
matriz africana são perseguidos, tendo seus terreiros destruídos e seus
objetos sagrados quebrados, queimados, profanados.
Crianças vestidas com roupas especiais para cultos e iniciações são
apedrejadas na rua e mães e pais de santo são obrigados a abandonar seus
terreiros e barracões para sobreviverem.
Recentemente, a pastora luterana Lusmarina Campos Garcia, do
Instituto de Estudos da Religião, que também tem sido perseguida por
conta de sua atuação contra a intolerância religiosa e a favor do
direito das mulheres, mobilizou protestantes para reconstruir um
terreiro carioca que havia sido vandalizado.
O Brasil miscigenado, culturalmente diverso, religiosamente plural e
fraternalmente dialógico não pode conviver com a perseguição às
religiões de matriz africana e deixar se posicionar duramente contra.
Para Kardec, “a nossa felicidade será naturalmente proporcional em relação à felicidade que fizermos para os outros”.
Amém pra quem é de amém,
Axé pra quem é de axé,
Aleluia pra quem é de aleluia,
Awerê, Namastê, Shalom, Assalamu Alaikum.
Disponível em: https://www.geledes.org.br/bem-aventurados-os-que-batem-tambor/
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