Um povo que não conhece seu passado, que não compreende suas referências
e suas origens, perde a chance de reparar seus erros históricos.
Por Rogério Sottilli*
Funcionários tentam salvar parte do acervo do Museu Nacional
Neste ano iniciamos as comemorações da Semana da Pátria
com uma imagem que ficará marcada na memória de muitos brasileiros: o
prédio histórico do Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, no Rio de
Janeiro, instituição científica mais antiga do País, tomado pelas
chamas.
No mesmo ano em que celebramos o bicentenário do museu, assistimos à
destruição de seu acervo histórico, arqueológico, antropológico,
etnográfico e de história natural, respeitado internacionalmente.
Pelas mãos de funcionários, algumas peças foram salvas, mas nada se
compara ao acervo original de 20 milhões de itens, fruto de anos de
pesquisa. São 200 anos da memória de nosso País que viraram cinzas. Um
patrimônio histórico e cultural que pertencia à humanidade.
O caso não é isolado. Em São Paulo, nos últimos anos foram ao
menos quatro grandes acervos impactados por incêndios: o Instituto
Butantan em 2010, o Memorial da América Latina em 2013, o Museu da
Língua Portuguesa em 2015, e a Cinemateca Brasileira em 2016.
Por que tratamos nossos registros históricos com tanto descaso? A
quem interessa um país sem memória? Um povo que não conhece seu passado,
que não compreende suas referências e suas origens, perde a chance de
reparar seus erros históricos e não é capaz de trilhar seu caminho a um
futuro de respeito aos direitos humanos e à democracia.
O problema de não cuidarmos, enquanto nação, de nossa memória é que
perpetuamos estruturas de violência e opressão. A história do Brasil
continua a ser uma história de apagamentos e silenciamentos.
O desaparecimento foi a lógica da ditadura. Tentaram apagar e silenciar Vladimir Herzog,
jornalista morto sob tortura dos agentes do Estado em outubro de 1975.
Além de Vlado, são centenas de mortos e desaparecidos políticos entre
1964 e 1985.
Se é tempo de celebrar nossa pátria, fazemos questão de lembrar
aqueles que lutaram por nossa democracia e foram silenciados. A omissão e
a falta de reparação também são violências.
Seguiremos a lembrar daqueles que resistiram. Em 4 de setembro,
completamos 28 anos da descoberta das 1.049 ossadas da vala de Perus, na
zona sul de São Paulo.
Em 6 de setembro, 39 anos da volta dos primeiros exilados. E há ainda
os mortos e desaparecidos, também políticos, de grupos cuja perseguição
não acabou com a ditadura: moradores das periferias, indígenas, LGBTs,
negros. Seguiremos lembrando também destes que ainda resistem.
Em tempos como este, é preciso reafirmar que não existe povo sem memória.
Quando nos negam o direito de conhecer o passado, nos tiram também a
possibilidade futura de transformação e de justiça. A destruição do
Museu Nacional não foi um acidente, foi um crime, fruto de uma política
deliberada de apagamento de nossa história e de nossa cultura.
Só um país sem memória pode seguir a homenagear torturadores em ruas e
praças públicas - ou ainda manter uma Lei da Anistia que permite a
impunidade dos crimes contra a humanidade cometidos pelo Estado
brasileiro.
A imagem do Museu Nacional tomado pelas chamas é a cruel fotografia
da realidade em que vivemos: a riqueza e a diversidade de nossa cultura,
ciência e memória, destruídas pela força bruta do fogo,
pela brutalidade do abandono público. É a mais bem acabada obra do
descaso com a memória no Brasil.
* Diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog. Foi secretário de Direitos Humanos da prefeitura de São Paulo
Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/a-quem-interessa-um-pais-sem-memoria
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