"O pensamento cartesiano-patriarcal — mesmo de esquerda — condena o populismo.
Para ele, o afeto é algo “afeminado” e o jogo político é sempre bruto:
uma disputa pelo poder onde a desconfiança e as disputas devem
imperar", escreve Débora Nunes, arquiteta, doutora em
Urbanismo, com pós doutorado em Extensão Universitária pela Universidade
Lumière Lyon II (2008) e em História das Cidades e Cidades do Futuro
pela Bangalore University, India (2015), em artigo publicado por Outras Palavras.
Eis o artigo.
Na acepção clássica da política, o líder populista é aquele que
procura estabelecer um vínculo emocional com o povo e mantém atitudes
demagógicas ao distribuir “migalhas” para manter seu domínio político. O
populismo sempre foi criticado, à direita e à esquerda. A direita, claro, por seu vínculo histórico com as elites, opõe-se aos líderes de esquerda e às suas políticas sociais.
Classificam de “populista” os líderes que têm o dom de atrair a atenção
e o carinho dos povos com políticas que lhes favorecem. De modo geral,
essas políticas aumentam o gasto público – horror dos direitistas, que só o aceitam se esse contribui para o enriquecimento ainda maior dos já ricos.
A esquerda, por sua vez, sempre combateu líderes de direita que
desenvolveram uma relação visceral com o povo prometendo soluções
mágicas para problemas complexos. Geralmente, questões vinculadas à
segurança do cotidiano (desemprego, violência urbana, supostas ameaças externas ao país, etc.). Interessa aos líderes de direita ditos populistas manter um estado permanente de ameaça no qual eles se apresentam como “salvadores”. Para a esquerda,
a ideia de emancipação popular, que lhe é cara, contradiz frontalmente a
proposta de algum “salvador”: É o povo unido que nunca será vencido.
Mesmo líderes “esquerdistas” que se destacam na atuação política como
“salvadores” são alvo de desconfiança de parte da esquerda, pelos mesmos
motivos.
De modo geral, o populismo foi amplamente combatido
por desenvolver-se fora das instituições, sejam elas partidos (os
líderes tornam-se maiores que esses), ou as instituições democráticas
(quando o líder toma o poder pela força). Em tempos de desmoralização
generalizada dos partidos no mundo inteiro, com as raras exceções de
praxe (como o Podemos da Espanha, a coalizão de esquerda que governa hoje Portugal, o AAP Party, na Índia,
entre outros), resta defender as instituições democráticas. Os partidos
precisam se reinventar para que sejam tão respeitados quanto alguns de
seus líderes. Essa reinvenção, focada na coerência de suas práticas com
os conteúdos de seus programas, fará muito bem à democracia.
O outro modo de ver o “populismo” que se pretende
destacar nesse texto é o caráter desmoralizante que essa expressão
confere à relação emocional de um povo com um/a líder, como se essa
fosse por si só recriminável. Na lógica cartesiana e patriarcal o afeto é
algo menor. Para o cartesianismo, que domina a ciência e o pensamento
“erudito”, apenas o que é objetivo em termos de ser oriundo de um
cálculo racional tem valor. As razões do coração só são válidas para
pessoas ignorantes, que não sabem argumentar racionalmente. Para o patriarcalismo,
o afeto é algo “afeminado” e o jogo político é sempre bruto, uma
disputa pelo poder onde a desconfiança e as disputas devem imperar. As
lutas intestinas no seio da esquerda estão relacionadas a essa visão de mundo patriarcal e da ânsia de dominação que lhe é particular, ignorando a necessidade óbvia de parceria.
Nos dois casos, tanto para o cartesianismo intelectual quando para o patriarcalismo relacional,
o afeto na política é desaconselhado. Felizmente homens e mulheres de
coletivos cidadãos de novo tipo estão valorizando cada vez mais os laços
de amizade e confiança na construção da política e superando os
preconceitos cartesianos e patriarcais. A arte de
associar-se é tão importante quanto o combate ao inimigo político;
praticar o que se prega é tão importante quanto argumentar
magistralmente a necessidade de novas práticas. A palavra e o cérebro
são mais competentes e sábios se associados às práticas e ao coração.
Voltando à política de aqui e agora e lembrando da comoção de milhões
de brasileiros e brasileiras com as injustiças cometidas contra Dilma Rousseff em seu impeachment e com Lula da Silva
em sua apressada prisão, vale considerar as razões do coração na
política e mesmo trabalhar mais “objetivamente” em torno delas. A
inteligência do coração pode discernir muito melhor que os dados
conjunturais valorizados em um momento político: o constante martelar
midiático contra Lula e Dilma mostram
isso, pois não convenceram tanto como esperavam seus autores. Um/a líder
amado por promover a dignidade e não por incitar o medo e o desejo de
proteção é um perigo para quem? Quando o afeto vem de uma experiência
prazerosa de se sentir entendido e respeitado, de perceber a coerência
de um indivíduo nas suas palavras e atos de forma majoritária ao longo
de sua história, isso enobrece a política, ou não?.
Discernir entre as emoções positivas (a admiração, a compaixão, a
cumplicidade, por exemplo) e as emoções negativas (o medo, o ódio, a
vingança) faz toda a diferença. A inteligência afetiva que vem do
coração percebe para além do racional imediato e do visível e isso é
comprovado por inúmeras pesquisas. Ela se revela cada vez mais sábia aos
poucos e o Brasil irá valorizar Dilma e Lula ainda mais que hoje, quando o tempo tomar sua estatura e os ódios, vinganças e medos se abrandarem. A esquerda, se quer se renovar, precisa atentar para os valores do patriarcado que
a cegam. Precisa observar os limites da objetividade cartesiana. A
valorização dos temas “femininos” do cuidado, do afeto, do diálogo e da
parceria poderão ser importantes impulsionadores da ação política da esquerda. No Brasil desse momento, ela poderá ser definidora do futuro, se a esquerda começar por aplicar esses princípios femininos a si mesma.
Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/579233-populismo-e-afetos
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