Completados 30 anos da CF de 1988, que consagrou a natureza pluriétnica do Estado brasileiro, os povos indígenas vivem o cenário mais grave de ataques aos seus direitos.
Confira o documento final do Acampamento Terra Livre 2018 publicada por Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB.
Eis a nota.
Depois de 518 anos, as hordas do esbulho, da acumulação e do lucro continuam massacrando e exterminando os nossos povos
para tomar conta de nossas terras e territórios, dos bens comuns e de
todas as formas de vida que, milenarmente, soubemos proteger e
preservar.
Completados 30 anos da Constituição Federal de 1988, que consagrou a natureza pluriétnica do Estado brasileiro, os povos indígenas do Brasil vivem o cenário mais grave de ataques aos seus direitos
desde a redemocratização do país. Condenamos veementemente a falência
da política indigenista, efetivada mediante o desmonte deliberado e a
instrumentalização política das instituições e das ações que o Poder
Público tem o dever de garantir.
O direito originário sobre nossas terras, assegurado como cláusula pétrea pelo Artigo 231 da Constituição,
vem sendo sistematicamente violado pelos poderes Executivo, Legislativo
e Judiciário, não apenas com a completa paralisação das demarcações das
terras indígenas, mas também mediante a revisão e a anulação dos
processos de reconhecimento dos nossos direitos territoriais.
Ao negociar nossos direitos com bancadas parlamentares anti-indígenas, especialmente a ruralista, o governo ilegítimo de Michel Temer publicou o Parecer AGU nº 001/2017, que, de forma inconstitucional e contrária à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF),
tenta impor a tese do marco temporal, uma das mais graves violações
contra os nossos povos. Sua condenável utilização tem servido para o
retardamento dos já morosos processos de demarcação e, em determinados
casos, para a anulação de demarcações já efetivadas e consolidadas. A
tese desconsidera o histórico de expropriação territorial e de violência
a que muitos dos nossos povos foram submetidos, durante séculos,
inclusive na ditadura militar, como denuncia o relatório da Comissão Nacional da Verdade.
No âmbito do Poder Judiciário, tramitam milhares de
ações propostas pelos nossos inimigos, estimuladas nos últimos tempos
pela tese do marco temporal, e que tem o objetivo de suprimir o nosso
direito territorial sem que possamos exercer o direito de acesso à
justiça para a defesa dos nossos direitos.
Não aceitamos o loteamento político da FUNAI,
especialmente para atender interesses da bancada ruralista e demais
setores anti-indígenas, como as últimas nomeações de presidentes,
incluindo a do Sr. Wallace Moreira Bastos,
cujo currículo denota completa ignorância das questões indígenas.
Igualmente, condenamos o intencional desmantelamento do órgão
indigenista, com reduções drásticas de orçamento, que inviabiliza o
cumprimento das suas atribuições legais, especialmente no que toca a
demarcações, fiscalização, licenciamento ambiental e proteção de povos isolados e de recente contato. Na mesma toada, foram extintos espaços importantes de participação e controle social, principalmente o Conselho Nacional da Política Indigenista (CNPI).
Não bastasse isso, denunciamos o fisiologismo entre o governo federal e o Congresso Nacional e o desmonte deliberado do Estado brasileiro provocado pela Emenda Constitucional 95, que congela o orçamento por 20 anos. Destacamos a absoluta falta de implementação da PNGATI nos territórios, a extinção do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e da Assistência Técnica Rural (Ater Indígena).
Tais omissões impedem as imprescindíveis ações de etnodesenvolvimento,
gestão ambiental e proteção das terras indígenas, resultando na
intensificação da presença de atividades ilegais e danosas, como
garimpo, exploração madeireira, arrendamento, loteamento,
comercialização e apossamento de terras já demarcadas por não indígenas;
tráfico de conhecimentos tradicionais e outras ameaças.
Denunciamos, ainda, a situação de calamidade da saúde indígena,
fruto da precariedade do atendimento básico, do desrespeito às
particularidades de cada povo indígena, da desvalorização da medicina
tradicional, da falta de acesso a medicamentos e ao transporte para a
realização de tratamentos, situação agravada pela utilização
político-partidária da política e das instâncias responsáveis pela
gestão da saúde indígena. Da mesma forma, denunciamos o descaso com a
educação escolar indígena, manifesta na falta de respeito ao projeto
pedagógico de cada povo, no não reconhecimento da categoria de professores indígenas,
na falta de apoio à formação continuada desses professores, incluindo
as licenciaturas interculturais, e na má qualidade das estruturas das
escolas, ou na falta destas nas comunidades, bem como a falta de
material didático compatível com as especificidades.
A atual conjuntura ainda impõe sérios riscos de retrocesso na
legislação de proteção aos direitos dos povos indígenas. Para além do
sempre presente fantasma da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215,
os esforços da bancada ruralista voltam-se no momento para uma
tentativa de legalizar o arrendamento das terras indígenas, afrontando o
direito constitucional ao usufruto exclusivo dos povos indígenas sobre
suas terras. Recorrem para isso a estratégias de desinformação e
tentativas de divisão de povos e comunidades. Também está nessa agenda
uma série de propostas de flexibilização do licenciamento ambiental
voltadas a liberar empreendimentos em nossos territórios, como o PLS 654/2015, o PLS 168/2018 (ambos no Senado) e o Projeto de Lei (PL) 3729/2004
(Câmara dos Deputados). Não admitiremos a desconsideração de povos
indígenas isolados, a restrição de avaliação de impactos ambientais
apenas para terras indígenas homologadas, o caráter não vinculante da
manifestação da FUNAI e a concessão automática de licença quando superado o prazo para manifestação do órgão indigenista, entre outras.
É esse contexto de hegemonia dos ruralistas
e outros inimigos dos povos indígenas, em todos os poderes do Estado,
que provoca o acirramento sem precedentes da violência contra os nossos
povos e a criminalização das nossas lideranças que estão na frente das
lutas de defesa dos nossos direitos, situação agravada pelo desmonte das
instituições que tem o dever constitucional de proteger e promover os
direitos indígenas.
Diante desse quadro sombrio de extermínio dos nossos direitos, nós,
cerca de 3.500 lideranças indígenas, representantes dos mais de 305
povos indígenas de todas as regiões do país, reunidos no Acampamento Terra Livre 2018, exigimos das instâncias de poder do Estado o atendimento das seguintes reivindicações:
1. Revogação imediata do Parecer 001/2017 da AGU / Temer;
2. Revogação imediata da Emenda Constitucional 95, que congela para os próximos 20 anos o orçamento público;
3. Realização urgente de operações para a retirada de invasores de terras indígenas já demarcadas e a efetiva proteção das mesmas;
4. Demarcação e proteção de todas as terras
indígenas, com especial atenção às terras dos povos isolados e de
recente contato, assegurando o fortalecimento institucional da FUNAI;
5. Dotação orçamentária, com recursos públicos, para a implementação da PNGATI
e outros programas sociais voltados a garantir a soberania alimentar, a
sustentabilidade econômica e o bem viver dos nossos povos e
comunidades;
6. Garantia da continuidade do atendimento básico à saúde dos nossos povos por meio da SESAI, considerando o controle social efetivo e autônomo por parte dos nossos povos;
7. Efetivação da política de educação escolar
indígena diferenciada e com qualidade, assegurando a implementação das
25 propostas da segunda conferência nacional e dos territórios
etnoeducacionais;
8. Arquivamento de todas as iniciativas legislativas que atentam contra os nossos povos e territórios;
9. Garantia por parte das distintas instâncias do
poder Judiciário da defesa dos direitos fundamentais dos nossos povos
assegurados pela Constituição Federal e os tratados internacionais
assinados pelo Brasil;
10. Fim da violência, da criminalização e
discriminação contra os nossos povos e lideranças, assegurando a punição
dos responsáveis por essas práticas, a reparação dos danos causados
inclusive por agentes do Estado e comprometimento das instancias de
governo (Ministério de Direitos Humanos, Ministério da Justiça,
Defensoria Pública) na proteção das nossas vidas;
11. Aplicabilidade dos tratados internacionais
assinados pelo Brasil, de modo especial a Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho (OIT) incorporada ao arcabouço jurídico do
país e que estabelece o direito dos povos indígenas à consulta livre,
prévia e informada sobre quaisquer medidas administrativas ou
legislativas que os afetem.
Brasília – DF, 26 de abril de 2018
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB
Mobilização Nacional Indígena
Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/578386-documento-final-do-atl-2018-o-nosso-clamor-contra-o-genocidio-dos-nossos-povos
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