Para além da crise política, “o crescimento exponencial do crime organizado (tráfico e milícias) tornou-se, hoje, uma das principais ameaças à democracia brasileira”, diz o historiador Daniel Aarão Reis à IHU On-Line. Segundo ele, “o caos urbano e a violência indiscriminada são incompatíveis com um regime de liberdades democráticas. O assassinato de Marielle Franco
é uma trágica evidência neste sentido, suscitando a convicção de que o
crime organizado faz o que quer, quando, como e onde quer. Esta
situação, aliás, é um dos principais ingredientes no processo de
fortalecimento de uma extrema-direita violenta, excludente, racista e antidemocrática”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Aarão Reis também comenta a conjuntura política e o desenvolvimento da Lava Jato. “A luta contra a corrupção,
embora tenha sido no passado uma bandeira das direitas, tornou-se uma
necessidade, apoiada por diferentes tendências do espectro político
nacional. O desperdício dos dinheiros públicos, a falta de controle
social na aplicação dos recursos, os dispositivos de proteção erigidos
por uma política escandalosa de ‘imunidades’, o esclerosamento do Judiciário com seu emaranhado caricatural de ‘recursos e contrarrecursos’, tudo isto tem suscitado críticas e descontentamento”, avalia.
Para as próximas eleições, adverte, “é preciso evitar a demasiada personalização da disputa política”. E sugere: “É preciso que se elabore uma proposta reformista
clara, abrangendo, entre outras questões, o sistema político, o modelo
econômico, a hegemonia do capital financeiro, o combate ao crime
organizado, a remodelação do sistema de saúde e de educação públicos”.
Daniel Aarão Reis
é graduado e mestre em História pela Université de Paris VII e doutor
em História Social pela Universidade de São Paulo – USP. É professor
titular de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense. É
autor de, entre outros, A revolução faltou ao encontro - Os comunistas no Brasil (Brasiliense, 1990), A Aventura Socialista no Século XX (Atual, 1999), Ditadura Militar, Esquerdas e Sociedade (Jorge Zahar Editor, 2000), Uma revolução perdida: a história do socialismo soviético (Fundação Perseu Abramo, 2007) e Ditadura e democracia no Brasil (Zahar, 2014).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como o senhor tem avaliado o atual momento político do país?
Daniel Aarão Reis - Avalio com muita preocupação. A democracia parece balançar. O sistema político está profundamente desmoralizado. O Judiciário
se deixa envolver em querelas menores. A população desconfia, com
justiça, de um sistema que perdeu toda a credibilidade. Nas cidades, a
violência e a barbárie campeiam. Altos chefes militares, entre os quais o
próprio comandante do Exército,
se permitem dar declarações ilegais e nem sequer são advertidos. Um
candidato de extrema-direita cresce nas pesquisas de opinião pública. É
um desafio maior lidar com estas complexas questões e conseguir
aperfeiçoar a democracia, não a deixando naufragar nas mãos de
aventureiros e salvadores da pátria.
Lula é, sem dúvida, o grande responsável político pela mixórdia em que
se deixou envolver o Partido dos Trabalhadores - Daniel Aarão Reis
IHU On-Line - Qual sua avaliação acerca da prisão do ex-presidente Lula? Qual é o significado histórico e político dessa prisão?
Daniel Aarão Reis - É mais um ingrediente — maior — no processo de desmoralização do sistema político. Dos dois candidatos que disputaram a presidência em 2014, uma, Dilma Rousseff, foi objeto de um impeachment. O outro, Aécio Neves,
sofreu um processo tamanho de desmoralização que sequer seus amigos o
aconselham a se candidatar a qualquer cargo eletivo. Enquanto isso, um
ex-presidente, ainda muito popular, é condenado num processo frágil de
provas, onde se evidenciou um ânimo condenatório muito mais político do
que jurídico.
Lula é, sem dúvida, o grande responsável político pela mixórdia em que se deixou envolver o Partido dos Trabalhadores. A promiscuidade entre empresários, petistas e o próprio Lula,
envolvendo outras lideranças políticas, aliadas, é muito clara.
Entretanto, num processo jurídico é preciso que se aduzam provas
concretas, insofismáveis. Não foi o que aconteceu no recente processo que condenou Lula.
Forma-se, assim, um contexto bastante desestimulante para quem quer acreditar na democracia.
Eu tenho dito que a democracia brasileira está “balançando”. Todos
estes aspectos contribuem, sem dúvida, para que ela “balance”.
Lula ofereceria uma bela contribuição — um gesto de grandeza — se
renunciasse à sua candidatura, abrindo novos horizontes para a
articulação e recomposição das esquerdas - Daniel Aarão Reis
IHU On-Line - Quais serão as consequências da crise do PT
para a esquerda em geral? Essas consequências já podem ser observadas
hoje?
Daniel Aarão Reis - O PT e Lula devem à sociedade uma autocrítica radical pelos seus “malfeitos”, como dizia eufemisticamente Dilma Rousseff. A própria Dilma
deve esta autocrítica. Como explicar os mais de 300 milhões de reais
que recebeu de empreiteiras e bancos em sua milionária campanha de 2014,
eivada de fraudes, contra a qual havia um “oceano de provas”?
Certamente estas “contribuições” não foram dadas pelo fato de ser ela
uma ex-guerrilheira.
Lula ofereceria uma bela contribuição — um gesto de
grandeza — se renunciasse à sua candidatura, abrindo novos horizontes
para a articulação e recomposição das esquerdas. Mas é pedir muito ao
homem que Lula sempre foi e, sobretudo, ao homem em que
se tornou. De resto, aparentemente, a grande maioria dos petistas
também não o deseja, pois se tornaram, há muito, apêndices e reféns de
sua liderança, inquestionável. Sem embargo, a manutenção da candidatura Lula dificulta, e mesmo impede, articulações mais amplas que poderiam, eventualmente, resultar em caso de sua desistência.
IHU On-Line - Que tipo de rearticulação à esquerda deve ocorrer a partir de agora?
Daniel Aarão Reis - Se ele pode ou não concorrer ainda é uma questão jurídica em aberto e os petistas e Lula
parecem decididos a explorar todas as brechas ainda possíveis. Do que
se trata, porém — e urgentemente — para além de candidaturas pessoais, é
de uma ampla frente em defesa da democracia e de reformas substantivas
que consigam incentivar e encorajar uma retomada de confiança em nossa
combalida democracia. A começar pela reforma política, fundamental para mudar o quadro atual. Lula
teve oito anos como presidente e nada fez no sentido da reforma
política. Ao contrário, preferiu conciliar com o que havia de mais
sórdido na política brasileira, trocando favores e abrindo empresas estatais à ganância dos aliados e de seus próprios correligionários. Dilma foi pelo mesmo caminho, embora, pouco depois das manifestações de 2013, esboçasse, durante pouco tempo, propostas reformistas, logo abandonadas.
Proposta reformista
Nestas eleições, para que a democracia
saia fortalecida, é preciso que se elabore uma proposta reformista
clara, abrangendo, entre outras questões, o sistema político, o modelo
econômico, a hegemonia do capital financeiro, o combate ao crime
organizado, a remodelação do sistema de saúde e de educação públicos. É
preciso evitar a demasiada personalização da disputa política. Que se
explicitem as ideias, que não se fique a reboque de lideranças
personalistas e carismáticas, “salvadores da pátria” que, uma vez
encastelados no poder, só sabem salvar-se a si próprios e a seus
apaniguados.
Lula teve oito anos como presidente e nada fez no sentido da reforma
política. Ao contrário, preferiu conciliar com o que havia de mais
sórdido na política brasileira - Daniel Aarão Reis
IHU On-Line - Como o senhor avalia o desenvolvimento da Lava Jato? Qual diria que será o significado histórico dessa operação?
Daniel Aarão Reis - A luta contra a corrupção, embora tenha sido no passado uma bandeira das direitas,
tornou-se uma necessidade, apoiada por diferentes tendências do
espectro político nacional. O desperdício dos dinheiros públicos, a
falta de controle social na aplicação dos recursos, os dispositivos de
proteção erigidos por uma política escandalosa de “imunidades”, o
esclerosamento do Judiciário com seu emaranhado caricatural de “recursos e contrarrecursos”, tudo isto tem suscitado críticas e descontentamento.
A Lava Jato
insere-se neste contexto e ganhou, por isso mesmo, um certo prestígio.
Contudo, a avidez por notoriedade, a sedução pelos holofotes e a
politização dos processos têm levado muita gente a reconsiderar e a
reavaliar a ação do juiz Moro e dos procuradores que trabalham em associação com ele.
Não tenhamos ilusões: a corrupção não surgiu ontem
nem acabará amanhã. Mas é possível estabelecer um regime que iniba
corruptores e corruptos de todos os bordos e a corrupção sistêmica. Para
isto é inadiável, além da referida reforma política, uma reforma do sistema judiciário,
em alto e profundo. Neste âmbito, os juízes ganhariam incentivo para
cumprir com autonomia suas funções, mas “falando nos autos” e não para
os holofotes da mídia, atentos às provas e não se deixando seduzir por
preferências político-partidárias. Além disso, precisamos de um sistema de controle social, público, em todas as empresas e entes estatais e paraestatais, incluindo-se, naturalmente, o próprio Judiciário. A sociedade precisa tomar a si a fiscalização dos poderes públicos e a da atribuição e da gestão dos recursos orçamentários.
Precisamos de um sistema de controle social, público, em todas as
empresas e entes estatais e paraestatais, incluindo-se, naturalmente, o
próprio Judiciário - Daniel Aarão Reis
IHU On-Line - Desde que a crise política se iniciou no país,
muitos analistas cogitaram a possibilidade de não haver eleições
presidenciais neste ano. Este receio já passou? Qual deve ser a
característica marcante das eleições deste ano?
Daniel Aarão Reis - No momento atual, estes perigos
parecem diminuídos. Entretanto, fatores de crise trabalham
subterraneamente. Se eles se desencadearem, a curto ou a médio prazo,
podem-se atualizar subitamente tentações golpistas. Os militares
brasileiros, por exemplo, como nunca se viram como funcionários públicos
uniformizados, mas como “anjos da guarda” da república (na verdade, e
mais de uma vez, agiram como “anjos exterminadores” dos valores
republicanos), podem se apresentar, em caso de crise grave, como
“salvadores”. A seu favor, contam com dispositivos constitucionais que,
por incúria ou inconsequência, mantiveram, apenas disfarçada, a tutela
das Forças Armadas sobre as instituições democráticas.
A “corrida” presidencial,
até o momento, infelizmente, parece muito mais marcada por disputas
entre personalidades e siglas do que por ideias e programas.
IHU On-Line - Como avalia o possível cenário eleitoral das
eleições presidenciais? Algum partido parece ter uma proposta para o
país?
Daniel Aarão Reis - O cenário mais previsível aponta no sentido de uma grande fragmentação. O crescimento da extrema-direita é preocupante. O Brasil
sempre foi uma sociedade profundamente conservadora, mas a ascensão de
uma extrema-direita agressiva, abertamente racista e violenta, é um dado
novo. Ela tem explorado, com algum sucesso, a descrença no sistema
político e o medo das gentes ao crescimento da violência e do “caos”
urbano.
O desafio é a construção de uma alternativa reformista, democrática, que poderia reunir o que de melhor existe no PDT, na Rede, no PSB, no PT, no PSOL e no PC do B, além de lideranças que ainda se salvam no PSDB e no PMDB.
Em termos imediatos, esta ideia parece inviável, já que quase todos
estes partidos têm candidatos próprios e disputarão o primeiro turno das
eleições. Trata-se de, entre eles, manter um debate de ideias, que não
se rebaixe à desmoralização de uns pelos outros, como houve no primeiro
turno de 2014. Se esta linha de comportamento prevalecer, num eventual
segundo turno poderia se constituir uma grande aliança, reformista e
democrática, capaz de aperfeiçoar decisivamente nossa frágil democracia.
IHU On-Line - Muitos analistas têm chamado atenção para o
risco que a democracia está correndo por causa do atual cenário político
nacional. O senhor, de outro lado, tem enfatizado que a proliferação
das milícias e do tráfico no país, especialmente no Rio de Janeiro, é o
que de fato está colocando a democracia em xeque. Pode explicar seu
ponto de vista, ou seja, por que considera que a democracia está em
risco diante da solidificação desses grupos?
Daniel Aarão Reis - O crescimento exponencial do crime organizado (tráfico e milícias) tornou-se, hoje, uma das principais ameaças à democracia brasileira. O caos urbano e a violência indiscriminada são incompatíveis com um regime de liberdades democráticas. O assassinato de Marielle Franco
é uma trágica evidência neste sentido, suscitando a convicção de que o
crime organizado faz o que quer, quando, como e onde quer. Esta
situação, aliás, é um dos principais ingredientes no processo de
fortalecimento de uma extrema-direita violenta, excludente, racista e
antidemocrática.
É inadiável, além da referida reforma política, uma reforma do sistema judiciário, em alto e profundo - Daniel Aarão Reis
IHU On-Line - Que tipo de tratamento político tem se dado ao
fortalecimento das milícias e do tráfico no Brasil? Quais serão as
consequências desse tratamento no futuro?
Daniel Aarão Reis - Não há, infelizmente, uma política definida e consequente para tratar do assunto. O crime se estrutura nacional e internacionalmente. A polícia,
desaparelhada e se ressentindo de parcos investimentos em Inteligência,
além de corrompida até a medula, sobretudo a polícia militar, trabalha
com critérios municipais e regionais. Mas não basta investir mais e
reformar as polícias.
Trata-se de abrir a discussão sobre um dos fatores maiores da força do crime organizado: refiro-me à questão do tráfico de drogas frente ao qual a política atual de repressão é completamente inoperante, inconsequente e patética.
As drogas são um problema de sociedade e não de
polícia. Enquanto esta questão essencial não for encarada, o país estará
condenado a enxugar gelo, reforçando, involuntariamente, o crime
organizado.
Observe-se, por exemplo, o sucesso na luta contra o tabagismo.
O cigarro é uma droga nefasta, mas não foi proibida nem declarada
ilegal. Uma combinação de políticas (educação, restrição de uso e de
publicidade positiva, impostos altos, publicidade negativa etc.)
conduziu a uma redução notável de seu uso, sem que fosse necessário
acionar a polícia.
Além disso, é importante frisar que debelar o crime organizado passa também, e principalmente, pela universalização da noção de cidadania. Está escrito na Constituição
mas ficou no papel. Sem que a noção de cidadania se universalize,
haverá sempre ambiente propício para que surja e se dissemine o crime
organizado.
IHU On-Line - Que razões e fatos explicam o poder das milícias e do tráfico e a sua consolidação no país?
Daniel Aarão Reis - Penso que a questão já foi respondida, mas vale insistir: uma polícia corrompida e desaparelhada, trabalhando com critérios amadores e limitados, num contexto onde prevalecem políticas públicas eivadas de preconceitos criaram uma situação amplamente favorável à disseminação do crime organizado.
O assassinato de Marielle Franco é uma trágica evidência da ameaça à democracia representada pelo crime organizado suscitando a convicção de que faz o que quer, quando, como e onde quer - Daniel Aarão Reis
IHU On-Line - A intervenção militar é ou não uma iniciativa adequada para enfrentar as milícias e o tráfico no Rio de Janeiro?
Daniel Aarão Reis - A intervenção militar, em geral, é nefasta. As Forças Armadas não devem ser mobilizadas para exercer tarefas de polícia.
Isto é tão claro que chega a ofuscar. Aliás, elas deveriam ser
formalmente impedidas, legalmente, de fazê-lo. Quanto à atual
intervenção, suas marcas são a improvisação e a politicanalhice. A
prazo, se continuar, pode produzir resultados (diminuição de ações
criminosas), mas sempre estará longe de resolver o problema que a
suscitou. Já temos inúmeros exemplos deste procedimento. As Forças
Armadas “entram”, “pacificam” e, quando se retiram, volta a ser “tudo
como dantes, no quartel d’Abrantes”.
IHU On-Line - Recentemente o senhor declarou que em visita ao
Pará presenciou manifestações de pessoas que estavam deixando suas
residências por conta do avanço das milícias e do tráfico. Que
informações o senhor tem sobre o avanço do tráfico e das milícias na
região?
Daniel Aarão Reis - Fala-se muito na violência desatada no Rio de Janeiro e em São Paulo.
Como são as principais cidades do país, é normal que seja assim. No
entanto, há uma violência endêmica, demencial, em inúmeras cidades do
país. Em viagem recente a Belém, pude constatar isto, através de várias conversas com colegas. Belém pode estar longe para muita gente, mas não para seus habitantes.
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Daniel Aarão Reis - O enfrentamento da crise sistêmica
por que passa o país deve revalorizar a política e o debate político.
Só através de reformas e de acertadas políticas públicas, os problemas
atuais poderão ser superados. As eleições próximas são
um excelente momento para discutir estas questões, para além dos
personalismos e das lideranças carismáticas. A ver se a sociedade
brasileira saberá lidar com estes desafios.
Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/578368-a-democracia-brasileira-esta-balancando-o-crime-organizado-e-uma-das-principais-ameacas-entrevista-especial-com-daniel-aarao-reis
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