Viver a humildade corresponde a viver não se colocando em posição superior a nada nem a ninguém, mas no mesmo nível.

Ser humilde significa não dar para si uma importância maior que a que realmente se tem. (Reprodução/ Pixabay)
Por Felipe Magalhães Francisco*
Na piedade católica, muito se repete um mantra-oração: Jesus, manso e humilde de coração, fazei de nosso coração semelhante ao vosso.
Tal prática de piedade, tão comum em rezas do terço e momentos de
adoração ao Santíssimo Sacramento, tem inspiração bíblica. A humildade
de Jesus é um convite a ser assumido por cada discípulo e discípula:
“[...] aprendei de mim, pois sou manso e humilde de coração” (Mt 11,29).
A palavra humildade ganhou um uso recorrente, em nossa semântica
cotidiana, de simplicidade. Fala-se que os pobres são humildes; que os
sem estudo são humildes. Esse uso tem sua razão de ser, quando ampliamos
o alcance interpretativo de tal palavra.
Humildade e humilhação são duas palavras muito próximas, etimologicamente. Ambas estão intimamente ligadas a húmus,
terra, chão. Os empobrecidos e empobrecidas, então, estão nessa
situação de humildade-humilhação: rebaixados em sua dignidade, estão ao
chão. Para além desse lugar usual possível, para a palavra humildade,
interessa-nos, aqui, refletir a partir de outro lugar, que também se
radica no contexto etimológico da palavra: húmus. Curiosamente, também a
palavra homem, do latim homo, pertence à mesma família da
palavra húmus. Para um cristão, a associação com a narrativa bíblica do
Gênesis é inevitável. Do barro, do chão, Deus modela Adão, que,
literalmente, significa o terroso.
Tornar-se humildade,
nesse contexto, corresponde a assumir uma virtude. Esse é o ponto de
partida, aliás, da espiritualidade quaresmal. Na quarta-feira de cinzas,
celebração em que é dada a largada para o caminho de conversão em
preparação à Páscoa, católicos e católicas são marcados, em suas
frontes, com cinza, enquanto são exortados: “Lembra-te que és pó, e que
ao pó hás de voltar”, em clara referência bíblica. Bonita a dimensão
simbólica de tudo isso: ao assumir o caminho de converter-se, isto é, de
voltar para Deus numa mudança de mentalidade, é preciso perceber qual
lugar ocupamos na vida, diante de nós mesmos, dos outros e de Deus. Ser
humilde significa, então, não dar para si uma importância maior que a
que realmente se tem. Não se trata de modéstia, definitivamente, mas de
reconhecer a si mesmo, num processo profundamente espiritual, de dar-se o
valor que realmente se tem.
Importante a associação com a palavra
húmus: no pó, a identificação de nossa pertença à criação. Da terra,
essa mãe-sustento, nasce nossa participação em igualdade de importância
com todo o mundo criado. Nem mais nem menos importantes. Recordar de
nossa pertença ao chão, ao pó, isto é, ser humilde, é assumir nosso
lugar no mundo, em relação a ele e a tudo o que nele contém. Viver a
humildade corresponde, então, a viver não se colocando em posição
superior a nada nem a ninguém, mas no mesmo nível. É preciso que não nos
esqueçamos do que significa o pecado: arrancar nosso rosto humano para
buscar assumir um lugar que não nos pertence, que é o de querer ser como
deuses. Em outras palavras: o pecado é a nossa desumanização, o nosso
esquecimento-negação de que somos terra.
Jesus, que para os
cristãos e cristãs é o paradigma da humanização, ensina-nos o que é
verdadeiramente assumir um lugar existencial que transparece humildade.
Não se colocou superior a ninguém, mas, ao contrário, rebaixou-se ao
ponto de poder elevar quem também estava ao chão. É o que faz na ocasião
em que a mulher iria ser apedrejada, quando acusada de adultério: Jesus
vai ao chão e, lá, no lugar dos humilhados, põe-se a escrever na terra.
Os acusadores, mesmo confrontados com os próprios pecados, são
incapazes de se curvarem numa postura humilde (cf. Jo 8,1-11). Essa
narrativa exemplifica toda uma postura de vida, assumida por Jesus.
Ela manifesta, aliás, toda a teologia da kénosis. Jesus não se apega à sua condição divina, mas se esvazia para assumir a condição de servo. Humilhou-se
ao ponto de assumir a morte de cruz, para prestar um serviço à
humanidade (cf. Fl 2,5-8). Assumindo a vida humana, o Filho de Deus
participa de nossa condição terrosa. E é de lá, da terra, do chão, que
nos eleva à condição de filhos e filhas de Deus; que nos possibilita
sermos elevados à participação na santidade divina, por pura graça.
Quando a santidade divina visita o mais íntimo e profundo de nós,
alcançando-nos desde a terra, na encarnação do Filho de Deus, somos
chamados a assumir nossa dignidade, reconhecendo o que verdadeiramente
somos e o que, por graça, somos chamados e levados a ser: plenamente
humanos.
Diante de tudo isso, deveria causar estranheza o fato de
que cristãos e cristãs cedam ao orgulho. Há uma terrível e real
tentação, dentro e fora das igrejas, de que cristãos e cristãs se
comportem como se fossem melhores que outras pessoas, inclusive melhor
que aqueles e aquelas com as quais lida na vida comunitária. Cristãos e
cristãs devem ser melhores para os outros e, jamais,
pretenderem-se melhor que os outros. A vaidade cristã só nos afasta do
Reino, porque desfigura o lugar propriamente cristão que é o do serviço.
“Entre vocês não deve ser assim: ao contrário, aquele dentre vós quiser
ser grande, seja o servidor [...]” (Mc 10,43) é um imperativo colocado
por Jesus a cada discípulo e discípula: aos passos do Mestre, estamos no
mundo para servir e não para ocupar lugares de importância que sequer
temos direito.
Assumir a humildade tal como a do coração de
Jesus é tarefa espiritual necessária, se queremos nos assumir como
cristãos e cristãs, discípulos e discípulas de Jesus. A humildade é
virtude necessária e irrenunciável àqueles e àquelas que pretendem ser
fiéis à missão dada por Jesus, de anunciadores e promotores do Reino de
Deus. Descer ao chão, para lá tocar as situações de humilhação, de
indignidade, de pecado é atitude urgente para aqueles que querem ser
sinal fecundo do Reino. A religião cristã não é aquela composta pelo
puros e santamente afastados: mas daqueles que, imersos na terra do
mundo, irradiam humanidade, escrevendo ao chão, para solidarizar-se com
quem precisa ser tocado pela libertação própria do Reino de Deus.
Percorrer o caminho da humildade é compreender que, fora do chão, lugar
concreto onde a vida se dá, não há salvação.
*Felipe Magalhães Francisco é teólogo. Articula a Editoria de
religião deste portal. É autor do livro de poemas Imprevisto (Penalux,
2015). Escreve às segundas-feiras. E-mail:
felipe.mfrancisco.teologia@gmail.com.
Disponível em: http://domtotal.com/noticia/1237431/2018/03/a-humildade-de-jesus-e-o-orgulho-dos-cristaos/
Nenhum comentário:
Postar um comentário