Banalizar a fome é o auge da desumanização de uma alma corrompida pelo egoísmo.
Uma sociedade com cheiro de morte mantém as aparências em um mundo onde crianças têm a fome como companheira, mas cães e gatos vivem como marajás. (Divulgação/ Pixabay)
Por Élio Gasda*
Pão de cereais com aroma de ervas, arroz de açafrão e pistache,
feijão ao vinho tinto. Sugestões do chef! Programas de gastronomia se
multiplicam nas TVs de todo o mundo. Na internet são milhares os sites
com dicas e receitas. Nem os impressos escapam, sempre indicam um bom
local para petiscar. O marketing da culinária nunca produziu tanto
dinheiro e tanta comida não comida. Estamos na era da gourmetização.
Transformada em espetáculo, a comida virou mercadoria. Alimentar passou a
segundo plano.
Segundo o dito popular, “não vivemos para comer, mas comemos para
viver”. A população mundial ultrapassa a marca de sete bilhões. Um terço
dela vive na miséria, em um mundo que produz o suficiente para
alimentar mais de 12 bilhões de pessoas (ONU). Mais de 1 bilhão de
toneladas de comida são jogadas no lixo por ano em todo o planeta, quase
30% do que se cozinha. Em 15 anos a miséria poderá matar 70 milhões de
crianças (UNICEF). Os estarrecedores dados da fome mundial são a face
mais atroz do século XXI. Estamos vivendo uma das piores crises
humanitárias.
Morte por fome é assassinato (Jean Ziegler), mas quem se importa? Tem
gente que sonha com um prato de sopa, mas procura comida no lixo, é
explorada em troca de pão com água. Feijão com arroz é luxo para gente
que estende a mão no sinal. A fome é a pior das torturas. Leva ao
desespero. Histórias reais de personagens famintos não sensibilizam
mais. Banalizar a fome é o auge da desumanização de uma alma corrompida
pelo egoísmo. Uma sociedade com cheiro de morte mantém as aparências em
um mundo onde crianças têm a fome como companheira, mas cães e gatos
vivem como marajás. Não só as instituições estão apodrecidas. Chegamos
ao fundo poço como civilização?
O Brasil é um dos principais produtores de alimento do mundo. Até
pouco tempo o país era visto como um exemplo de êxito na aplicação de
políticas de combate à miséria. Hoje, porém, o fantasma da fome volta a
assombrar milhares de brasileiros. Relatório do GT da Sociedade Civil
para Agenda 2030 sobre os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS)
mostra resultados preocupantes. A destruição acelerada da rede de
proteção social, avanço do desemprego, exclusão de mais de 1,2 milhão de
famílias do programa Bolsa Família, redução do salário mínimo,
congelamento dos gastos em políticas públicas, desmonte da CLT
contribuem para o crescimento de números alarmantes. A população em
pobreza extrema deverá aumentar entre 2,5 milhões e 3,6 milhões até o
final deste ano (Banco Mundial). O Criança esperança (Globo) é a prova
de que o cinismo dos ricos não tem limites. No Brasil mais de 6 milhões
de crianças vivem na pobreza extrema (Fundação Abrinq), mas os irmãos
Marinho estão entre os 6 homens que detém renda equivalente à metade
mais pobre da população (mais de 100 milhões de pessoas).
Michel Temer é responsável pelo aumento da pobreza e da fome. Em
menos de dois anos, com a destruição de direitos conquistados, a
situação dos pobres se deteriorou consideravelmente. Multiplicação de
moradores de rua, semáforos repletos de jovens tentando vender algo,
aumento da criminalidade. A volta da miséria. O Brasil possui nível de
pobreza elevado e estrutural, necessita de programas que garantam às
populações mais vulneráveis condições mínimas de subsistência. Mas o
corte de investimentos em programas sociais é uma obsessão do
(des)governo.
Todas as medidas impostas nos últimos meses com o pretexto de
“combater a crise” afetam os mais pobres. O resultado de medidas justas
pode ser o aumento da fome e da miséria? A oportunidade de saquear a
nação é tão atrativa. Para que se preocupar com o povo? Tamanha
perversidade afetará gerações inteiras. O Brasil alcançou um novo
patamar de perversão. O (des)governo é a materialização de um povo sem
ideais. Ninguém se sente constrangido em ser governado por uma
quadrilha. Enquanto você lia este pequeno texto, alguém pode ter morrido
de fome e um milionário pode ter ficado mais rico (Neymar ganha um
salário mínimo a cada 4 minutos e 23 segundos).
Para um faminto, o mistério de Deus se traduz num pedaço de pão. Deus
feito comida se torna real em sua vida. E a glória, para Deus, é que o
pobre coma. “Que importa ao Senhor que sua mesa esteja cheia de objetos
de ouro se ele se consome de fome?” (São João Crisóstomo). Cristo sofre a
fome dos famintos. “Vi ontem um bicho na imundície do pátio catando
comida entre os detritos. Quando achava alguma coisa, não examinava nem
cheirava: Engolia com voracidade. O bicho não era um cão, não era um
gato, não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem” (Manuel
Bandeira).
“Tudo é relativo, menos Deus e a fome”
(Pedro Casaldáliga).
*Élio Gasda é doutor em Teologia, professor e pesquisador na
FAJE. Autor de: Trabalho e capitalismo global: atualidade da Doutrina
social da Igreja (Paulinas, 2001); Cristianismo e economia (Paulinas,
2016).
Disponível em: http://domtotal.com/noticia/1182799/2017/08/tudo-e-relativo-menos-deus-e-a-fome/
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