quinta-feira, 24 de agosto de 2017

MONITORAMENTO PRÉVIO E CENSURA PRIVADA

A opressão social pode se dar inclusive por meio de canais institucionais comumente utilizados para a proteção de direitos fundamentais.

Monitoramento de redes de comunicação nada mais é do que a institucionalização privada da censura e disciplina mental do indivíduo. 
Monitoramento de redes de comunicação nada mais é do que a institucionalização privada da censura e disciplina mental do indivíduo. (Reuters)


Por Marcelo Kokke*

A construção constitucional, ao tratar dos direitos fundamentais, historicamente concentrou suas atenções na figura do Estado como fonte de ameaça a direitos e afirmação do indivíduo. Um dos fundamentos centrais é justamente o poderio de repreensão de fontes de manifestação da individualidade fora de uma requerida neutralidade. O Estado como um agente que fixa níveis de hierarquia da disciplina mental e corporal do ser humano em sua liberdade sempre foi visto como uma ameaça constante à emancipação. Cabe ao indivíduo determinar quais são os valores positivos e negativos em sua vida, sem que seja tutelado pelo poder público na fixação de uma hierarquia de valores próprios do que seja uma boa vida. Não pode o Estado determinar previamente padrões de manifestação ou expressão do indivíduo em suas opiniões e ideias.
Mas e quando a situação de cerceamento, de fixação de tutela ou hierarquia não vem do Estado, mas sim da própria sociedade? O risco de ameaça à autonomia, à emancipação não está somente em atuações do Estado. A sociedade pode assumir posturas opressivas de silenciamento, tutela e tentativa de substituir o próprio indivíduo em sua determinação valores positivos ou negativos no curso de sua vida. Tentativas de controlar as redes sociais, aplicando mascaradamente mecanismos de controle prévio e filtro seletivo de informações não são nada menos do que subjugação da afirmação da liberdade, da autonomia do ser humano. John Stuart Mill, no clássico Sobre a Liberdade, pondera que a própria sociedade pode se tornar tirana, uma sociedade que tenta suplantar os indivíduos que a compõem, sendo que “os meios para tiranizar não se restringem aos atos que possa cometer pelas mãos de seus funcionários políticos”1.
A opressão social manifesta-se quando há uma intrusão de controle sobre a informação, a construção e a manifestação de pensamento. A opressão social pode se dar inclusive por meio de canais institucionais comumente utilizados para a proteção de direitos fundamentais. É o que ocorre quando o Poder Judiciário é acionado para sustentar tentativas de controle e disciplina mentais. O Superior Tribunal de Justiça decidiu recentemente o Recurso Especial 1.641.155, no qual se buscava impor ao Facebook a obrigação de efetivar um monitoramento prévio de informações de postagens e publicações por parte de seus usuários.
Um apresentador de programa televisivo, em razão de rompimento contratual, passou a ser hostilizado, segundo relata, por usuários da rede social de comunicação. Nesse contexto, ajuizou ação pretendendo que o Facebook não só retirasse, mas também impedisse publicações ou manifestações que pudessem ser consideradas a ele contrárias. Inicialmente o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo obrigou a rede social a monitorar perfis que pudessem conter ou se manifestar desfavoravelmente ao autor, sob pena de multa. O STJ reformou a decisão, argumentando inclusive uma releitura constitucional de direitos fundamentais para considerar que “o controle editorial prévio do conteúdo das informações se equipara à quebra do sigilo da correspondência e das comunicações, vedada pelo art. 5º, XII, da CF/88. Não bastasse isso, a avaliação prévia do conteúdo de todas as informações inseridas na web eliminaria um dos maiores atrativos da internet, que é a transmissão de dados em tempo real”.
Controle prévio é mecanismo de cerceamento, monitoramento de redes de comunicação nada mais é do que a institucionalização privada da censura e disciplina mental do indivíduo. Isto não significa um vazio de responsabilidade, pelo contrário, significa uma liberdade responsável e não tutelada. A posição jurisprudencial construída pelo STJ consolida-se nas seguintes linhas de compreensão: “(i) não respondem objetivamente pela inserção no site, por terceiros, de informações ilegais; (ii) não podem ser obrigados a exercer um controle prévio do conteúdo das informações postadas no site por seus usuários; (iii) devem, assim que tiverem conhecimento inequívoco da existência de dados ilegais no site, removê-los imediatamente, sob pena de responderem pelos danos respectivos; (iv) devem manter um sistema minimamente eficaz de identificação de seus usuários, cuja efetividade será avaliada caso a caso”2


Referências:


1) MILL, John Stuart. Sobre a liberdade. Trad. Paulo Geiger. Introdução Alan Ryan. Penguin Companhia: São Paulo, 2017, p. 75
2) STJ – 3ª Turma. PROCESSO ELETRÔNICO REsp 1.641.155 / SP. Números Origem: 10038526520148260344 20787777720148260000. PAUTA: 13/06/2017 JULGADO: 13/06/2017.


*Marcelo Kokke é procurador federal da Advocacia-Geral da União, professor de Direito Constitucional da Dom Helder Escola de Direito, mestre e doutor em Direito, especialista em Processo Constitucional, membro do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública, professor colaborador da Escola da Advocacia-Geral da União Membro da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil (APRODAB). 

Disponível em:  http://domtotal.com/noticia/1180045/2017/08/monitoramento-previo-e-censura-privada/  

Nenhum comentário:

Postar um comentário