Grafite celebra visita do Papa à Colômbia, no início de setembro
O Papa Francisco surpreendeu mais uma vez ao proclamar que a reforma
litúrgica estabelecida pelo Concílio Vaticano II “é irreversível” e que
deve ser aprofundada. Foi num discurso
feito na quinta (24) aos participantes da Semana Litúrgica Nacional
italiana. O Papa tocou num ponto sensível da Igreja, talvez o mais
sensível: como os cristãos católicos celebram o mistério de Cristo na
liturgia, especialmente a eucarística (a missa).
Há uma disputa brutal em torno da celebração eucarística que perpassa
a Igreja, apesar dela acontecer sobretudo nos bastidores e textos
teológicos. Os conservadores querem revogar a reforma litúrgica
consagrada pelo Vaticano II (apesar de não expressarem isso
explicitamente na maior parte das vezes). Um de seus líderes, o cardeal
guineense Robert Sarah, ocupa o posto estratégico de prefeito da
Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos do
Vaticano, onde vem colecionando atritos com o Papa e seu grupo. Tudo
indica que depois dos cardeais conservadores George Pell (ex-presidente
do estratégico Departamento de Economia do Vaticano) e Gerhard Müller
(ex-prefeito da mais que estratégia Congregação Para a Doutrina da Fé),
está chegando a hora de Sarah ser defenestrado. O discurso de Francisco
parece indicar que a hora chegou.
Os conservadores sonham com o retorno da missa nos moldes do Concílio
de Trento (por isso chamada de missa tridentina), rezada em latim, com o
padre de costas para a assembleia. O cardeal Sarah tem explicitado sua
adesão à ideia que vagou como fantasma pelos corredores do Vaticano até
que em 2007 o Papa Bento XVI publicou a Summorum Pontificum, uma carta
apostólica que restaurou a missa tridentina em “concorrência” com o rito
do Concílio.
Para Francisco, a liturgia não é do clero, ao contrário do que
apregoam os conservadores, pois ela “é vida para todo o povo da igreja.
Por sua natureza, a liturgia é de fato ‘popular’ e não clerical, sendo –
como ensina a etimologia – uma ação para o povo, mas também do povo”. A
frase tem repercussões profundas. Lida ao lado de outra, com a qual o
Papa anunciou que “hoje ainda há trabalho a ser feito”, pode indicar a
retomada do caminho de criatividade litúrgica abruptamente interrompido
por João Paulo II, que proibiu todas as iniciativas de inculturação,
como as missas Criolla, Terra Sem Males e dos Quilombos.
Confrontando diretamente a concepção conservadora, Francisco anunciou “uma liturgia viva para uma Igreja viva”.
O aprofundamento da reforma litúrgica é mais uma das iniciativas da
primavera franciscana. Todas as outras são igualmente objetos da fúria
da ala conservadora da Igreja, entre elas: a reforma da Cúria romana, os
estudos para o diaconato feminino, o direito à comunhão de casais
divorciados em segunda união, o acolhimento aos migrantes e refugiados,
especialmente o apelo do Papa ao reconhecimento do jus soli (direito
de solo, para que crianças de famílias migrantes tenham direito à
nacionalidade nos países onde nascerem) e, finalmente, a retomada da
trajetória da Igreja com os pobres de todo o mundo, na perspectiva da
teologia latino-americana.
Dissidência e agressões ao Papa
Os conservadores não se cansam de elevar o tom contra o Papa, ora com
exigências estapafúrdias, ora com ameaças cada vez mais explícitas de
dissenção, enquanto agridem Francisco de maneiras cada dia mais
explícitas de baixo nível.
Dois dos líderes do grupo de cardeais reacionários que se opõem ao
Papa tentaram encurralar Francisco nas últimas semanas, mas foram
ignorados e suas iniciativas até agora não prosperaram. Ambos são
signatários das conhecidas “dúbia” (dúvida, em português), que nada têm
de “dúvidas”, mas constituem um ataque à exortação Amoris Laetitia, que
renova a posição da Igreja em relação à família, especialmente quanto
ao direito á comunhão de casais divorciados em segundas núpcias.
Primeiro foi o mais agressivo e itinerante deles, o cardeal Raymond Burke, uma espécie de pop star
ultraconservador. Numa entrevista ao arquiconservador jornal The
Wanderer, dos EUA Burke descreveu como será o “ato formal de correção”
contra o Papa, por conta da Amoris Laetitia. Ele declarou
guerra total a Francisco, insinuou que o Papa é apóstata (um renegado da
fé) e ameaçou com um cisma: “Pode haver apostasia dentro da Igreja e,
de fato, é o que está havendo” (se quiser, leia a entrevista traduzida
para o espanhol aqui).
Depois, o cardeal alemão Walter Brandmüller apareceu com uma ideia
estapafúrdia de exigir que o Papa Francisco seja obrigado a retomar um
costume obsoleto e em desuso há séculos, de recitar o Credo diante dos
cardeais da Igreja em todo aniversário de sua eleição. Para o cardeal
conservador, Francisco deveria adicionalmente fazer um pronunciamento de
fidelidade à doutrina e ao que foi feito pelos papas anteriores. É uma
tentativa que chega a ser pueril de enquadrar o Papa na camisa de força
dos pontificados restauracionistas de João Paulo II e Bento XVI (leia aqui sobre o assunto).
Diariamente os meios de comunicação católicos de matiz conservadora
atacam o Papa com violência. Em muitos deles, Francisco sequer é
nominado como tal, mas como “papa Bergoglio”. Num desses sites, de um
grupo conservador brasileiro, cujos fundadores apoiaram o regime militar
e as torturas contra presos políticos, escreveu-se no início da semana: “O ‘evangelho’ pregado por Papa Bergoglio tem gosto de jornal, não da boa-nova de Jesus Cristo”.
Há um site em língua espanhola, aparentemente sediado no México e que
se anuncia como elaborado por “sacerdotes diocesanos” todos incógnitos,
dedicado exclusivamente a combater o Papa Francisco. Os títulos
de alguns dos artigos mais recentes dispensam esclarecimentos
adicionais: “De afirmações confusas a disparates exegéticos formais:
para Francisco, Jesus foi manchado pelo pecado”; “E agora a virgindade…
novas distorções bergoglianas”; “Francisco, tua paz não é a paz de
Cristo”; “As desonestas citações de Francisco…”.
Nos Estados Unidos, onde há uma gama de publicações e sites católicos
conservadores com recursos milionários que idolatram Trump e odeiam
Francisco, clama-se abertamente pela morte do Papa. Num dos mais ricos e
agressivos destes, o fundador e diretor-executivo comparou o Papa à lua
passando em frente ao sol do cristianismo “puro”, no dia do eclipse no
total visível em boa parte dos EUA. Usando da retórica bélica típica dos
conservadores, o editor atacou:
“Rezemos fervorosamente pela salvação da pobre alma do papa Francisco
e, ao mesmo tempo, pelo milagre do próximo conclave nos dar um papa
tradicional. Quanto mais escuro está ficando em Roma, o mais brilhante
deve iluminar nossa fé e nosso amor por Jesus. É um desafio para a nossa
fé. Deixe-nos estar com toda a humildade soldados e cavaleiros de
Cristo.”
Os conservadores gritam, com estridência e agressividade cada vez maior. Mas a caravana conduzida por Francisco segue em frente.
Mauro Lopes
Disponível em: http://outraspalavras.net/maurolopes/2017/08/25/francisco-aprofunda-reformas-conservadores-radicalizam-dissidencia/
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