segunda-feira, 5 de junho de 2017

PRECISAMOS SUPERAR NARCISO PARA ENFRENTAR O DISCURSO DE ÓDIO

“O mito é um nada que é tudo.
 
O mesmo sol que abre os céus

É o mito brilhante e mudo –
 
O corpo morto de Deus,
 
Vivo e desnudo…”
 
Ulisses – Fernando Pessoa
 
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Diálogo. Resgatando a etimologia, ‘através da razão’.
Alteridade. Condição do outro, distinto, contraste, diferença.
Sem nenhuma pretensão ‘moral-filosófica-doutrinária’, os termos acima fazem eco em mim há algum tempo. A autocrítica é pesarosa, pois, é necessário repensar convicções que há muito se instalaram.
Penso: por que ‘X’ escolhe o pretenso candidato ‘Y’ que prega a violência contra mulheres, o grupo LGBT, quilombolas, indígenas e todo àquele que aparentemente represente um ‘perigo’? “Mito”, proclamam seus seguidores.
É na antiguidade clássica que mythos fazia o contraponto a lógos, portanto, a razão e ao discurso racional. O mito não é apenas um relato, mas um tesouro de pensamentos, formas linguísticas, imaginações cosmológicas, preceitos morais, etc, existindo antes mesmo que um contador inicia sua narração, só podendo persistir se contado de geração em geração na vida cotidiana[1]. O mito, rito e a representação figurada são três formas de expressão – verbal, gestual, por imagem – da linguagem mitológica, onde a presença do temor reverencial e o sentimento difuso do divino se apresenta com uma vasta construção simbólica[2].
Consequentemente, o mito representaria uma rede simbólica mais densa. Desnudar esses símbolos é a nossa tarefa, demonstrar que o discurso não é nada além de violência, de permissibilidade para a banalização da vida e da liberdade.
Quando chamo um discurso de ódio de ‘óbvio’, a quem dirijo essa mensagem? Óbvio para quem? A dificuldade de olhar para além do espelho – do outro semelhante em termos intelectuais e sociais – e produzir uma ‘pedagogia-inclusiva-discursiva’ é o grande desafio a nós, todos nós.
Como confrontar esse ‘ser mitológico’ que concentra um rito de ódio, opressão, menosprezo, segregação e vocalização da morte? Desejar e sentir não são crimes – amém! – mas verbalizar as situações acima, sim. As redes sociais potencializaram e vocalizaram nossos desejos mais rasteiros. Falta olhar, expressão facial e tato, gestos simples que revelam a (des)aprovação do que se diz.
A você e a mim que crescemos dotados de orgulho e arrogância, apaixonados pelo próprio reflexo – leia-se, você e seus iguais em termos intelectuais – não há outro destino senão a perda de espaço e a morte ou, ao menos, a retirada de liberdades. A morte foi o destino de Narciso, seria o nosso? Entre tantos mitos, há narrativas de morte, orgulho, triunfo e grandeza. Qual devemos escolher?
Que possamos transcender o sentimento confortável da visão do espelho.
Quando ouvir que “bandido bom é bandido morto”, que se diga que a Lei penal é para todos e no percurso de nossas vidas poderemos passar pelo “democrático” banco dos réus, de forma justa e/ou injusta, ainda que sejamos vigilantes e cuidadosos com nossas ações. Se tomarmos o jargão que “bandido bom é bandido morto”, um “mito” que é réu/investigado pode estar anunciando a própria morte, não é mesmo?!
Quando ouvir que feminismo é uma besteira e coisa de mulher “mal amada”, diga que liberdade nunca é demais, pois, preferimos a vida à morte, apenas isso. O estupro é um ato de barbárie, ódio e violência extrema. Discuta o valor semântico do “sim” e do “não” com seu interlocutor. Diga que o feminismo é sobre liberdade(s) e o ato de escolher é consequência lógica de tudo isso.
Quando ouvir que é necessária a arbitrariedade da força policial e o culto à Ditadura Militar, afirme o quanto é bom caminhar pelas ruas seja qual for a hora e o dia, de mãos dadas, sozinhos ou em grupos. Diga que é super cool ter uma bela barba, mas na asséptica Ditadura Militar isso traria alguns problemas. Negrite que é libertário ser quem você acha que é!
Ainda que o interlocutor do diálogo se torne agressivo, ria e atue com ódio, a tarefa maior é para você que diz que esse discurso é “óbvio”. Deixe óbvio para os outros, seja didático, desconstrua e mostre que há outras vias muito mais interessantes. Devemos trabalhar essa narrativa mitológica de maneira comprometida sem escárnio e indiferença, sob pena de sermos devorados por uma esfinge.
Drummond afirma que lutar com palavras é a luta mais vã, todavia, devemos insistir e sermos escravos de rara humildade das mesmas. Humildade, paciência e abertura para o outro e para o distinto é o que devemos ter em conta nessa peleia.
Vejamos a observação e narração de Hannah Arendt sobre Eichmann em seu julgamento:

“Minha única língua é oficialês [Amtssprache]”. Mas a questão é que o oficialês se transformou em sua única língua porque ele sempre foi genuinamente incapaz de pronunciar uma única frase que não fosse clichê. (Será que foram esses clichês que os psiquiatras acharam tão “normais” e “desejáveis”? Serão essas as “ideias positivas” que um clérigo espera encontrar nas almas para as quais ministra? A melhor oportunidade para Eichmann demonstrar esse lado positivo de seu caráter em Jerusalém surgiu quando o jovem oficial de polícia encarregado de seu bem-estar mental e psicológico deu-lhe um exemplar de Lolita para relaxar. Dois dias mais tarde, Eichmann devolveu o livro, visivelmente indignado; “Um livro nada saudável” – “Das ist aber ein sehr unerfreuliches Buch” – disse ele a seu guarda.) Sem dúvida, os juízes tinham razão quando disseram ao acusado que tudo o que dissera era “conversa vazia” – só que eles pensaram que o vazio era fingido, e que o acusado queria encobrir outros pensamentos que, embora hediondos, não seriam vazios. Essa ideia parece ter sido refutada pela incrível coerência com que Eichmann, apesar de sua má memória, repetia palavra por palavra as mesmas frases feitas e clichês semi-inventados (quando conseguia fazer uma frase própria, ele a repetia até transformá-la em clichê) toda vez que se referia a um incidente ou acontecimento que achava importante. Quer estivesse escrevendo suas memórias na Argentina ou em Jerusalém, quer falando com o interrogador policial ou com a corte, o que ele dizia era sempre a mesma coisa, expressa com as mesmas palavras. Quanto mais se ouvia Eichmann, mais óbvio ficava que sua incapacidade de falar estava intimamente relacionada com sua incapacidade de pensar, ou seja, de pensar do ponto de vista de outra pessoa[3]”.


O óbvio pede que Narciso vá além do espelho! Devemos preencher esse vazio com engajamento para que o mesmo não conduza a situações trágicas. Vencer o vazio – especialmente os discursos vazios – e vencer Narciso é, sem dúvida, a nossa missão.


Andressa Paula de Andrade é Mestranda em Ciência Jurídica pela a Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Especialista em Ciências Penais pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Bacharela em Direito pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). 

[1] Cf. VERNANT, Jean-Pierre. O universo, os deuses, os homens. Trad. Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 10 e ss.
[2] Veja VERNANT, Jean Pierre. Mito e religião na Grécia Antiga. Trad. Joana Angélica D’Avila Melo. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 24-24.
[3] ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 61-62.


Disponível em:   http://justificando.cartacapital.com.br/2017/06/02/precisamos-superar-narciso-para-enfrentar-o-discurso-de-odio/

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