Biografia premiada com o Pulitzer revela como o papa e o ditador firmaram um pacto que favoreceu o fascismo e o nazismo.
Com fotos proibidas, encontro dos dois
só existe na ilustração
Pio
XI foi eleito papa em 6 de fevereiro de 1922. Oito meses depois, Benito
Mussolini tornava-se primeiro-ministro da Itália. Pelos 17 anos
seguintes, os dois só se encontrariam uma única vez, na biblioteca do papa, no ano de 1932. Na ocasião, Il Duce,
título criado pelo próprio ditador italiano, não se curvou nem beijou a
mão do pontífice. Não houve registro fotográfico dessa reunião.
A escassez de imagens conjuntas, contudo,
oculta uma intensa troca de correspondências e comunicados entre
emissários dos dois lados. Um precisou do outro para exercer o poder e,
enquanto foi conveniente, ambos se beneficiaram dessa relação. A
biografia O Papa e Mussolini, que
acaba de ser lançada no Brasil pela Editora Intrínseca, apresenta um
retrato bastante diverso do que até hoje a narrativa católica procurava
vender ao mundo.
O historiador e antropólogo David I.
Kertzer, especialista em estudos italianos na Universidade Brown, nos
Estados Unidos, é o autor dessa reveladora biografia vencedora do Prêmio
Pulitzer em 2015. A partir da investigação minuciosa sobre arquivos
secretos, liberados parcialmente em 2002 por João Paulo II e depois,
integralmente, em 2006, por Bento XVI, Kertzer mostra que “a Santa Sé
desempenhou papel central no estabelecimento e na manutenção do regime
fascista”.
Kertzer trabalhou durante sete anos sobre 25 mil páginas de
documentos oficiais de diferentes arquivos, que iam dos departamentos de
polícia aos órgãos do Estado fascista italiano, além de cartas
diplomáticas a diários italianos, franceses, britânicos, americanos e
alemães.
Mas foi só com a abertura, em 2006, dos
arquivos secretos do Vaticano que a história completa pôde ser, enfim,
contada. Embora aparentemente fossem figuras bastante diferentes entre
si, Pio XI e Mussolini guardavam a mesma sede de poder e de controle,
sentimento que os uniu historicamente.
O milanês Ambrogio Damiano Achille Ratti, após testemunhar ação do Exército Vermelho, tornou-se convicto anticomunista.
Mussolini também se tornou anticomunista
após a Primeira Guerra Mundial. Mas, antes de fundar o movimento
fascista, em 1919, chegou a ser um destacado socialista radical.
Alcançou o poder político aos 39 anos pelo voto legítimo, num Parlamento
livremente eleito.
Antes mesmo de Mussolini virar
primeiro-ministro, Pio XI percebeu no líder fascista a possibilidade de
ter um “homem forte” no comando da Itália e livre das disputas
multipartidárias que paralisavam o país.
O papa empenhou-se junto aos fiéis pelo
triunfo de Mussolini na eleição de março daquele ano, quando o fascista
conquistou 98,3% dos votos. Mas não sem contrapartidas: o pontífice
indicava para o Parlamento “fascistas de sólida fé católica” ao mesmo
tempo que exigia que judeus e maçons fossem expurgados.
Essa relação era movida pelos interesses de cada um. Pio XI queria ressuscitar um Estado católico, enquanto o Duce via
na influência da Igreja uma forma de consolidar seu poder. “Tanto o
papa quanto o ditador italiano se beneficiaram grandemente da decisão de
estabelecerem uma aliança.
A longo prazo, é claro, essa aliança não salvou Mussolini de seu sórdido destino”, afirma Kertzer a CartaCapital.
“Nesse sentido, o papa e a Igreja provaram ser os beneficiários finais.
Graças ao seu acordo para lançar o apoio da Igreja por trás de
Mussolini, a Cidade do Vaticano foi estabelecida como um Estado soberano
e houve a separação entre a Igreja e o Estado.”
Mas
o exercício de poder, ressalta a biografia, faria com que os atritos
surgissem rapidamente. Foi o que aconteceu já no ano de 1931, quando o
líder fascista mandou fechar todos os grupos de juventude da Ação
Católica, um dos principais instrumentos de Pio XI para recristianizar a
sociedade italiana.
De forma surpreendente, os arquivos
secretos do Vaticano revelam agora, de forma cristalina, que Pio XI
chegou a apoiar brevemente Hitler, logo depois que este virou chanceler
da Alemanha, em janeiro de 1933, e passou a aproximar-se de Mussolini.
O papa não economizou elogios a Hitler em
sua luta contra o comunismo: “É a primeira vez que uma voz de governo
se ergue para denunciar o bolchevismo em termos tão categóricos”. Ele
contrariava, assim, até os bispos alemães que tinham sido unânimes ao
denunciar os nazistas. Mas os planos do Terceiro Reich na luta
antissemita fizeram com que Pio XI e até Mussolini recuassem no apoio ao
Führer.
No começo de 1937, perto de morrer, Pio XI revelou arrependimento por ter apoiado Hitler,
publicando uma encíclica crítica ao nazismo (sem mencionar esse nome).
No documento, ele repreendia aqueles que idolatravam raça e nação.
Para Kertzer, a Itália vive ainda hoje
uma “amnésia histórica” que compra a narrativa de uma Igreja que se opôs
ao fascismo e desconhece o apoio crucial do Vaticano a Mussolini. O
historiador afirma que os últimos dias de Pio XI foram penosos. Como uma
de suas últimas ações, o papa escreveu uma fala de domingo aos bispos
em que abordava os ataques do Duce à Ação Católica, a perseguição
da Igreja na Alemanha e a “ferida infligida à concordata pela proibição
de casamentos entre arianos e não arianos”. O discurso teve cópias
destruídas.
Esse texto só pôde ser visto na íntegra
com a abertura dos arquivos secretos do Vaticano, em 2006. Não por
acidente, Eugenio Pacelli, o menos cotado no universo católico, foi
eleito papa Pio XII em 2 de março de 1939. O jornalista John Cornwell
chamou o sucessor de “o papa de Hitler” (em livro publicado em 2000 pela
Editora Imago).
Os documentos do sucessor Pio XII
continuam secretos no Vaticano para, quem sabe, um dia serem revelados.
“A relação do Vaticano com o regime fascista italiano nos anos de guerra
continua a ser controversa e a abertura desses arquivos deve lançar uma
nova luz importante sobre essa história”, finaliza Kertzer.
Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/revista/952/pio-xi-e-mussolini-unidos-pelo-poder
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