Segundo relato de uma das vítimas, policiais abordaram os camponeses gritando “Não corre, porque vai todo mundo morrer”.
"Eu acordo assustada com os gritos, com as torturas e com os momentos que eu passei sozinha no mato", recorda uma das testemunhas / Reprodução/Repórter Brasil
Os relatos dos sobreviventes do massacre que vitimou dez trabalhadores rurais na fazenda Santa Lúcia, em Pau D’Arco, sudeste do Pará, ocorrido na última quarta-feira (24), remontam a um cenário de terror. Em testemunhos obtidos pelo Brasil de Fato,
as vítimas descrevem a perseguição a qual sofreram, em meio a uma ação
conjunta das Polícias Civil e Militar. “Não corre, não, porque vai todo
mundo morrer” e “bota a mão na cabeça para morrer”, diziam os policiais
quando encontraram o grupo dos sem-terra, segundo relato da vítima à
reportagem.
A testemunha relata ter sido a primeira a acordar
naquela quarta-feira e escutou o momento em que os carros dos policiais
chegaram à fazenda Santa Lúcia. “Acordei às 6h. Quando escutei os
carros, vi que estavam todos dormindo e comecei a chamar as pessoas”.
Ainda de acordo com o relato, dois rapazes do acampamento foram
verificar se aqueles homens eram, de fato, policiais. Eles voltaram
correndo, falando que havia muitos deles. Nesse momento, os
trabalhadores começaram a correr para o meio do mato.
Uma outra testemunha, que também aceitou compartilhar
sua versão da história com a reportagem, lembrou que, na ocasião, chovia
bastante. Por isso, os trabalhadores pararam debaixo de uma árvore para
tentar se proteger. De lá, ouviram quando os policias chegaram ao local
onde estavam os objetos dos sem-terra. “A polícia chegou no nosso
acampamento chutando vasilhas, quebrando tudo”, relata.
Segundo as duas testemunhas, os policiais não
apresentaram mandado de prisão. As vítimas contam ainda que a presidenta
da Associação dos Trabalhadores Rurais Nova Vitória, Jane Julia de
Oliveira – que foi assassinada no massacre – pediu ao grupo que
continuasse no mesmo local. Segundo eles, Oliveira acreditava que os
policias não iriam procurá-los debaixo de chuva. Então, estenderam uma
lona por cima deles, para se protegerem da água, mas se enganaram.
“Menos de dez minutos depois que a gente estava debaixo da lona
esperando a chuva passar, a polícia chegou gritando e atirando”, recorda
a vítima sobre o momento em que os policiais diziam para que ninguém
corresse, pois “vai todo mundo morrer”.
As vítimas contam que estavam em um grupo de aproximadamente 25
pessoas e que não houve tempo de reagir, contradizendo a versão
divulgada em nota pela Secretaria de Estado de Segurança Pública e
Defesa Social do Pará (Segup) de que os policias teriam sido recebidos a
tiros na fazenda. No dia do massacre, os sem-terra esperavam a chegada
de cerca de 150 trabalhadores, mas o ônibus que os trazia quebrou no
meio do caminho.
Segundo o MPF, local onde possivelmente as 10 pessoas foram executadas | Crédito: Reprodução/MPF
Silêncio
Os relatos das testemunhas são fortes. Uma delas narra
como conseguiu escapar do cerco: “Eu saí correndo por debaixo da lona e
consegui entrar no mato. Estava correndo, quando me deu uma ‘crise de
nervo’ muito forte. Parei. Travou (sic) minhas pernas. Fiquei
debaixo de uma moita escutando eles baterem e matarem as pessoas, bem
próximo de mim. Estava muito perto. As pessoas gritavam: ‘não faz isso,
pelo amor de Deus’”.
Deitada e escondida na moita, a segunda vítima narra momentos de sofrimento e desespero dos companheiros.
“Eu saí correndo, e ela [Jane, presidenta da associação]
ficou sentada. Eu não sei se eles mataram ela sentada, só lembro que
eles falavam: 'levanta para morrer, velha safada, velha vagabunda,
cachorra'. Xingavam de vários nomes e, ao mesmo tempo, sorriam e
atiravam. Cada pessoa que eles [policias] pegavam, eles atiravam e
xingavam: 'bota a mão na cabeça para morrer'. Outro dizia: 'corre para
morrer. Você não queria correr? Então corre para morrer'. E atirava”.
Além das dez pessoas assassinadas, outras duas ainda estão desaparecidas, segundo CPT .
Depois que não se ouviu mais os gritos e os disparos
cessaram, o silêncio tomou conta. Foi quando uma das testemunhas começou
a se arrastar por cima do mato: "Não tinha forças para pular o capim”, e
recorda que atravessou um barraco.
“Ouvi pessoas conversando e outro barulho”, que naquele
momento não conseguiu identificar o que era. “Depois que eu atravessei
esse barraco, eu ouvi um barulho de carro e gente conversando próximo de
mim e fazendo aquele barulho, tipo 'batia fofo'. Na hora, eu não
imaginei que era jogando alguém. Hoje, depois que eu lembro do barulho,
imagino que eram eles jogando os corpos em cima da caminhonete”.
Medo, fome, sede e fé
Depois de ter conseguido escapar dos tiros que foram
disparados pelos policias durante a chacina e de ter ouvido os amigos
serem humilhados e mortos, a vítima narra como conseguiu ter forças para
continuar viva mesmo após o massacre: “Comecei a correr. Corria e
parava para descansar um pouco, sentindo-me triste, aflita, sozinha no
meio do mato. Estava muito machucada, muito cortada do cipó. Estava
deprimida, com muito medo dos tiros que eu tinha ouvido. Não sabia se
tinha alguém atrás de mim. Estava com sede, com fome. Eu me perdi no
meio dos pastos, eu não sabia para que rumo eu ia. Eu andava, andava, ia
para um lado. Não dava certo, eu voltava. Ajoelhava no meio do mato e
pedia a Deus proteção para me tirar daquele lugar”.
A testemunha ficou das 8h às 16h perdida no meio do
mato. Para matar a sede, ela molhava a ponta da blusa em pequenas poças
de água no chão. Espremia o pano na mão e molhava a boca.
“Eu não ouvia mais barulho de nada, só aquele deserto, e
eu no meio do mato. Desesperada, cansada, com os pés inchados, eu só
sentia muita dor nas pernas. Teve parte que comecei a andar de joelho
porque não conseguia mais andar, a dor era muita. Aí eu andava de joelho
no meio do mato, parava em alguma sombra, orava, pedia a Deus para me
tirar. E nisso eu fiquei das 8h até as 4h30 da tarde para conseguir um
socorro”.
A vítima não sabe se voltará a ser a pessoa que era
antes. “O meu psicológico está machucado. Eu não consigo dormir, acordo
assustada com os gritos, com as torturas e com os momentos que eu passei
sozinha no mato”.
Ao final, ela afirma que o mandado de prisão não passou
de um pretexto para matar as pessoas: "Se fosse com mandado [intenção]
de prender, eles tinham prendido. Tinham trazido todo mundo preso e hoje
eu estaria feliz de estar atrás das grades, presa, do que ver os meus
amigos mortos, porque eram minha família, a gente conviveu muito tempo
junto”.
Termo de testemunho colhido pelo MPF
Crédito: Reprodução/MPF
Comando da operação
Uma das testemunhas da tragédia afirmou, em depoimento sigiloso ao
Ministério Público Federal (MPF), que reconheceu a voz do delegado
Antônio Gomes Miranda Neto durante a chacina. Ele é superintendente da
Polícia Civil no Araguaia, com sede no município de Redenção (PA).
A testemunha conseguiu escapar dos policiais e ouviu cada um de seus
companheiros serem humilhados, torturados e mortos. Segundo a vítima,
foi possível reconhecer a voz do delegado Miranda (como é conhecido na
cidade), porque já havia falado com ele anteriormente: “Eu ouvi a voz, a
voz dele é muito conhecida, e não só daquele momento que eu o conheço”.
Este delegado conversou com os trabalhadores rurais em
diversas ocasiões anteriores à chacina. Um desses momentos foi no dia 29
de março, quando os sem-terra, em protesto, fecharam a rodovia BR 155.
Miranda foi quem mediou a negociação para liberação da estrada. Uma das
reivindicações daquela manifestação, segundo ata de reunião, era uma
solicitação à Secretária de Segurança Pública e Defesa Social (Segup)
que assegurasse que a Polícia Militar local parasse de “intimidar as
famílias”.
No entanto, Antônio Miranda dá outra versão. De acordo
com o superintende de Redenção, no dia anterior ao episódio ele viajou
para Belém, retornando à cidade após a tragédia. Outra informação dada
por ele é a de que, na verdade, outro funcionário conhecido como Miranda
era quem comandava a operação; este era Valdivino Miranda da Silva
Júnior, delegado da Delegacia Especializada em Conflitos Agrários de
Redenção (Deca).
A assessoria de comunicação da Polícia Civil confirmou
que o delegado da Deca estava na ação policial. O órgão também informou
que a operação foi formada por duas equipes da Polícia Civil e quatro da
Polícia Militar, sob o comando de dois delegados: Valdivino Miranda e o
delegado da polícia civil Renato Duram.
Enterro
O massacre dos dez trabalhadores rurais gerou uma
segunda violência, agora com os familiares dos camponeses mortos. Para o
agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Igor Machado, todo o
processo de liberação dos corpos no Instituto Médico Legal (IML) e a
chegada na funerária foi “confuso, desumano e indigno”.
Depois de serem assassinados, os corpos dos dez
sem-terra foram amontoados na carroceria da caminhonete e levados de Pau
D’Arco até Redenção, distante cerca de 55 quilômetros, para o Hospital
Municipal Iraci Machado de Araújo, onde ficaram até meia noite.
Para ele, o “primeiro problema estrutural que existe é o
fato de não ter IML em Redenção”. Os corpos, para serem periciados,
foram novamente transportados, agora para o IML de Marabá e Parauapebas –
dois municípios maiores da região sudeste paraense –, onde receberam
cinco corpos cada um.
Como os corpos estavam em outras cidades, e a família em
Redenção, havia muitas dúvidas de como seria o processo para a
liberação para o velório. Outro ponto que preocupava os familiares,
segundo Machado, dizia respeito ao estado de conservação dos corpos
quando chegasse em Redenção, após a perícia, visto o tempo que se levou
para levá-los até o IML das cidades vizinhas.
“Eu me lembro que teve uma representante da secretaria
[Secretaria de Defesa Social] que me disse: 'olha o IML já falou que com
relação a alguns corpos nem embalsamar vai adiantar mais porque alguns
estão em estado avançado de decomposição'”, lembra Machado.
O agente da CPT ainda informa que os corpos, vindos de
Marabá e Parauapebas, chegaram em Redenção no dia 25 [dia seguinte à
tragédia] por volta da meia noite, em carros separados e, novamente,
foram amontados na carroceria da caminhonete, envolvidos em lonas
pretas.
O mal cheiro e o sangue escorrendo pela carroceria
causou revolta e indignação nos familiares, que viram a cena de como
seus entes se encontravam. Machado ainda acrescenta que, pelo estado dos
corpos, não seria possível fazer velório em caixão aberto e muitos
familiares nunca mais iriam ver seus parentes.
“Foi muito desumano. Os familiares, com justa razão, ficaram muito indagados e revoltados”, ressalta.
Os sete sem-terra que eram da mesma família tiveram um
velório rápido por conta do estado avançado de decomposição. Oito
caixões foram enterrados no cemitério de Redenção e dois foram levados
para Pau D’Arco. Durante o enterro, os próprios familiares das vítimas
ajudaram a enterrar os corpos.
“Como eram sete caixões que estavam sendo enterrados, não havia
funcionários suficientes. Então, muitos parentes tiveram que ajudar a
botar terra para cobrir a cova”, conta Machado.
Relembre o caso
Na última quarta (24), 29 policiais – 21 militares e
oito civis – cumpriram 14 mandados judiciais, sendo seis de prisão
preventiva para Antônio Pereira Milhomem, Ronaldo da Silva dos Santos,
Jane Júlia Almeida – presidenta da Associação dos Trabalhadores Rurais
Nova Vitória – Fernando Araújo dos Santos, Genário Neves Miranda e
Antônio Pereira da Silva; e oito mandados de prisão temporária. Dos dez
trabalhadores rurais mortos na fazenda Santa Lúcia, três constavam na
lista dos mandados de prisão preventiva e sete pertenciam à mesma
família.
Os mandados estavam relacionados ao assassinato de um segurança da fazenda Santa Lúcia, que ocorreu no dia 30 de abril.
Segundo o advogado da CPT José Afonso, o que se quer
esclarecer no momento é como o fato ocorreu. Ele acompanhou os peritos
no local do crime, e o MPF ouvi o testemunho das sete testemunhas do
massacre. A partir dos elementos levantados, a tese de que houve
confronto não se sustenta, defende Afonso.
“As pessoas não foram sequer avisadas que os policiais
teriam mandado. Não teve nem tempo para isso. Apenas foi reservado a
elas dez sentenças de morte”, afirma o advogado.
Edição: Vivian Fernades
Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2017/05/30/bota-a-mao-na-cabeca-para-morrer-teriam-dito-policiais-durante-massacre-no-para/
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