Passou relativamente despercebida, mesmo aos católicos, uma frase que o Papa pronunciou na Audiência Geral
da última quarta (7) no Vaticano segundo a qual Deus é “capaz somente
de conjugar o verbo amar”. Com ela, Francisco retoma a formulação mais
original do cristianismo, esquecida/perdida ao longo de séculos pela
Igreja institucional e combatida pelo conservadorismo católico e cristão
em geral.
Deus só sabe conjugar o verbo amar.
A expressão inspira-se naquela que é a tentativa mais ousada na
Bíblia de definir o Divino: “Deus é amor” –a frase aparece por duas
vezes na primeira carta de São João (1Jo 4,8.16).
Deus só pode amar.
Este é o título de um pequeno livro escrito pelo irmão Roger, da comunidade ecumênica dos monges da comunidade de Taizé,
sediada na região da Borgonha, na França. Ela reúne protestantes,
católicos e ortodoxos. Existe desde 1940. No Brasil, há um pequeno
núcleo de Taizé em Alagoinhas (BA), há 50 anos. O irmão Roger, um
protestante que rompeu todas as falsas barreiras das estruturas
religiosas, foi assassinado aos 90 anos, agosto de 2005, quando uma
mulher romena, com distúrbios mentais, apunhalou-o várias vezes durante a
oração da noite.
O livro de irmão Roger é uma pequena preciosidade que deveria
inspirar pessoas de todos os quadrantes de espiritualidade e mesmo
aqueles que, não acreditando na transcendência, tecem a vida pela
bondade e pela busca da essência do ser humano[1].
Muito antes de Francisco e irmão Roger, santo Isaac, o Sírio, no século VII, pontuou: “Deus só pode dar o seu amor”.
O filósofo Paul Ricoeur, ele mesmo um frequentador da comunidade de
Taizé, escreveu na virada do século sobre a mudança do olhar sobre Deus,
da ótica do poder para a do amor: “O único poder de Deus é o amor
desarmado. Deus não quer nosso sofrimento. De todo-poderoso, Deus se
torna ‘todo-amoroso’. Deus não tem outro poder que o de amar e de nos
dirigir uma palavra de socorro quando estamos sofrendo.”[2]
Esse Deus todo-amoroso, desarmado ou, como disse o Papa, um Pai “bom,
indefeso diante do livre arbítrio do homem” não amedronta, pois, como
disse são João na mesma carta, “não há temor no amor; ao contrário, o
perfeito amor lança fora o medo” (1Jo 4, 18).
Um teólogo ortodoxo, Olivier Clément, escreveu um livro sobre a experiência de Taize[3]
anotou com precisão a falsificação da imagem de Deus promovida pelos
rigoristas e fundamentalistas com seus dedos apontados, punições,
penitências: “Em Taizé, as pessoas se libertaram completamente da
caricatura de um Deus que amedronta, de um Deus que condena, de um Deus
que culpabiliza. É uma caricatura terrível, que afasta muitos jovens do
mistério de Deus”[4].
Essa escolha entre Deus-Amor e o deus da culpa está colocada diante
de todos os que creem, cotidianamente. Um exemplo que evoca um tema
central no mundo hoje em dia:
Os católicos conservadores em todo o canto –inclusive no Brasil–
estão numa campanha estridente por uma nova Cruzada contra “os infiéis
muçulmanos” e mal escondem seu desejo de proibições, sanções e
extermínio. Respiram ameaças, ódio e morte (leia um exemplo dentre
dezenas que se reproduzem diariamente aqui).
Enquanto isso, Francisco reza pela paz e busca união, comunhão e
amizade com os muçulmanos, como o fez em seu recente e emocionante
encontro com o Grande Imã de Al-Azhar, Ahmad Al-Tayeb no Egito: “Papa em Al-Azhar: somos chamados a caminhar juntos”. Em Taizé, vivenciou-se, no início de maio, o Primeiro fim-de-semana de amizade islamo-cristã.
Sim, há sempre uma escolha.
Para Francisco e os cristãos que buscam o seguimento nas pegadas de seu Mestre, amor é o nome próprio de Deus[5].
Qualquer apresentação de Deus que se traduza em advertências,
punições, proibições, discriminação, condenações a gays, lésbicas,
trans, mulheres, divorciados e divorciadas, prostitutas, ateus,
comunistas, muçulmanos, protestantes, espíritas, gentes de religiões
afro, mulheres que abortam são falsificações de Deus. Não passam de
projeções dos recalques e desejos de controle e poder daqueles que
condenam, individual ou institucionalmente.
O mesmo Isaac, o Sírio, escreveu ao fim da vida sobre as
mistificações em torno do diabo e do inferno que nenhuma relação têm com
o Deus-Amor: “Como conceber que Deus cria um inferno, um lugar de
aflição, de tortura e de abandono? Deus só pode dar seu amor. Ele dá e
dará seu amor: ele será tudo em todos”[6].
O Papa na Audiência Geral da quarta (7): Deus só sabe amar
Mauro Lopes
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[1] Roger, de Taizé, Irmão. Deus só pode amar. São Paulo, Paulinas, 2003. [2] Ricoeur, Paul. Paris. Revista Panorama, nº 340, 1999, p. 29. Citado por Roger, de Taizé, Irmão, in op. cit. [3] Clément, Olivier. Em busca do sentido da vida. São Paulo, Cidade Nova, 2006. [4] Idem. P. 93 [5] Boff, Leonardo. A oração de São Francisco. Rio de Janeiro, Editora Sextante, 7ª edição, 1999. P. 73 [6] In Clément, Olivier, op. cit. P. 93-94
Disponível em: http://outraspalavras.net/maurolopes/2017/06/09/papa-retoma-formulacao-mais-original-do-cristianismo-deus-so-sabe-amar/
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