Caso avance na Câmara dos Deputados, o PL 6442/2016 – que altera a regulamentação do trabalho rural
– pode significar o maior retrocesso da história do País quando se fala
em trabalhadores, uma perda de direitos ainda mais severa do que aquela
pretendida pela reforma trabalhista. “Esse projeto revoga a Lei Áurea”, resume o procurador-geral do Trabalho, Ronaldo Fleury.
A reportagem é de Dimalice Nunes, publicada por CartaCapital.
O projeto, de autoria do presidente da bancada ruralista na Câmara, deputado Nilson Leitão
(PSDB-MT), foi protocolado em novembro na Casa e constituído para não
“sobrecarregar” o texto da já polêmica reforma trabalhista. É uma
espécie de filhote do PL mãe.
O principal ponto é a possibilidade do trabalhador rural
receber "remuneração de qualquer espécie", o que significa que o
empregador rural poderá pagar seus empregados com habitação ou comida, e
não com salário. A remuneração também poderá ser feita com parte da
produção e concessão de terras.
“Esse projeto de lei significa uma volta ao passado, significa levar o
trabalhador de volta ao século XIX, quando se trabalhava em troca de
comida”, compara Antônio Lucas, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores Assalariados e Assalariadas Rurais (Contar).
Assim como a reforma trabalhista,
este projeto de lei reforça pontos como a prevalência do negociado
sobre o legislado, a jornada intermitente e a exclusão das horas usadas
no itinerário da jornada de trabalho.
Casa e comida?
Ronaldo Fleury, que atua há cerca de 20 anos no
combate ao trabalho escravo, explica que o projeto de lei tenta
legalizar requisitos que hoje são considerados justamente para
determinar se um trabalhador está em condição análoga à de escravo.
“Fazer pagamento com comida e moradia é uma das condições que a gente coloca como escravidão moderna, a escravidão por dívida”, compara.
“Evidentemente, fazer um pagamento só com casa e comida não faz sentido”, concorda Otávio Pinto e Silva,
sócio do setor trabalhista do escritório de advogados Siqueira Castro e
professor de Direito Trabalhista na Universidade de São Paulo. Ele
lembra que a Constituição Federal trata dos direitos
dos trabalhadores urbanos e rurais e, em seu artigo sétimo, enumera uma
série de direitos, incluindo o salário mínimo. “O salário mínimo não é
definido pela lei do trabalho rural e o que esse PL muda é exclusivamente a lei do trabalho rural”, reforça.
Segundo o advogado, o salário mínimo, por sua vez, é definido pela CLT
e tem que ser composto por uma série de benefícios que estão atrelados a
esse valor, entre eles, alimentação e moradia. Mas esses são alguns dos
componentes. A CLT, quando fala no pagamento em bens e produtos, afirma
que pelo menos 30% da remuneração tem que ser em dinheiro. “Por uma
combinação do que está na CLT e do que está no texto da Constituição, eu
entendo que não é possível estabelecer uma remuneração só com casa e
comida”, reforça o advogado trabalhista.
O PL, porém, contempla esses limites, pois afirma que só poderão ser
descontados do empregado rural o limite de 20% pela moradia e 25% pela
alimentação. Isso torna, então, o projeto constitucional?
Fleury, procurador-geral do Trabalho, diz que não. “O que a CLT
fala é que a remuneração pode se dar, além do pagamento em espécie, com
produtos e outras formas de benefício. Agora, quando o fornecimento da
moradia e da comida são condições essenciais para a realização do
trabalho, não pode ser uma forma de remuneração”, explica.
Um exemplo é o executivo que tem como parte de sua remuneração um
carro. “Ele ganhou o carro para fazer o trabalho ou por ser diretor? Não
é condição essencial”, compara o procurador-geral. “A realidade do meio
rural é o latifúndio. Há fazendas em que a cidade mais próxima fica a
300 quilômetros, não tem como o trabalhador ir para casa. Então a
moradia é condição para que a pessoa trabalhe lá”, conclui.
A parte mais interessada nessa história, a dos trabalhadores rurais,
ouviu do autor do projeto uma explicação inusitada e que pouco tem a ver
com o que diz a Constituição ou a CLT. “O deputado Nilson Leitão disse que entendemos errado, que o que ele quer é presentear o trabalhador no fim da safra com parte da produção”, conta Antônio Lucas, presidente da Contar.
Para Lucas, um presente real seria a retirada do
projeto de lei. Um segundo presente, uma ação para reduzir a
informalidade, que passa dos 60% entre os trabalhadores do campo.
“Queremos nossos direitos como estão na lei, o salário combinado. Do
jeito que está esse projeto não temos nem como sugerir emendas”, afirma.
Jornada estendida
A perda de direitos não para por aí. O texto prevê jornadas de até 12 horas
e o fim do descanso semanal, uma vez que passa a ser permitido o
trabalho contínuo por até 18 dias. Fica permitida, ainda, a venda
integral das férias para os trabalhadores que residirem no local de
trabalho e o trabalho em domingos e feriados sem a apresentação de
laudos de necessidade.
Hoje, a jornada rural segue a mesma regra da urbana,
limitada a 44 horas semanais. No campo, para essa conta fechar, são
turnos de oito horas de segunda a sexta e de quatro horas aos sábados.
Mas quando se fala em trabalho rural – uma atividade braçal e muitas
vezes ao ar livre – oito horas já são extenuantes. Por isso, como
explica Antônio Lucas, são comuns acordos de jornadas
de 36 horas semanais, especialmente no plantio e na colheita. “Daí ir
para 12 horas é um completo absurdo”.
Para Otávio Pinto e Silva, alterar jornada e
descanso semanal desconsidera segurança e medicina do trabalho. “Fazer
uma prestação de serviços contínua, sem a previsão do descanso e em
longas jornadas é algo que, caso uma lei dessas venha a ser aprovada,
certamente poderia ser contestada no Supremo Tribunal Federal por inconstitucionalidade”.
Isso porque, segundo o advogado, o mesmo artigo sétimo da Constituição,
que trata dos direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, determina a
limitação da jornada, intervalo e descanso semanal remunerado.
Mercado sobre a vida
Na opinião de Pinto e Silva, a existência de um projeto de lei como o 6442/2016
mostra a articulação da bancada ruralista para reduzir o custo do
trabalho no setor rural. “Evidentemente, isso é um recado: existe a
possibilidade desse Congresso, com a composição hoje existente,
estabelecer mecanismos de contratação que se mostrem mais adequados para
atender as necessidades do empregador.”
Uma lei dessas, ainda segundo o advogado, eliminaria a chances de um
trabalhador buscar seus direitos na Justiça. Mesmo mantendo seus
empregados na informalidade, o empregador teria defesa em caso de
reclamação trabalhista, já que a jornada e o descanso, por exemplo,
estariam de acordo com a lei.
“É um processo de desconstrução do direito social. É
tratar a sociedade como uma máquina, apenas sob o ponto de vista
econômico”, defende Ronaldo Fleury. Para ele, sob essa ótica, os
direitos sociais se tornam empecilho para que a máquina funcione.
“Então tira-se aposentadoria, direitos trabalhistas e criam-se formas de contratação que desnaturam totalmente o direito do trabalho. Com isso, se desmonta o direito social até o ponto de alguém ter coragem de apresentar um projeto nesse patamar”, afirma se referindo ao PL do deputado Nilson Leitão. “Primeiro assegura-se a colheita e depois vamos ver se sobrou algum trabalhador vivo. Isso é botar o interesse econômico na frente do interesse da manutenção da vida”, conclui o procurador-geral.
“Então tira-se aposentadoria, direitos trabalhistas e criam-se formas de contratação que desnaturam totalmente o direito do trabalho. Com isso, se desmonta o direito social até o ponto de alguém ter coragem de apresentar um projeto nesse patamar”, afirma se referindo ao PL do deputado Nilson Leitão. “Primeiro assegura-se a colheita e depois vamos ver se sobrou algum trabalhador vivo. Isso é botar o interesse econômico na frente do interesse da manutenção da vida”, conclui o procurador-geral.
Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/567322-pl-do-trabalho-rural-revoga-a-lei-aurea-diz-procurador
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