Centenas de processos para demarcação de terras aguardam conclusão na Justiça.
Inaldo Gamela ainda se recupera do tiro que levou na
cabeça. Ele não sabe exatamente de onde partiu o disparo, mas acredita
ter escapado da morte. "Eu cai depois que fui atingido, eles vieram
atrás de mim. Queriam me matar. Mas consegui fugir", narra um dos
líderes do povo indígena gamela sobre o confronto mais recente com fazendeiros no norte do Maranhão.
A reportagem é de Nádia Pontes, publicada por Deutsche Welle, 04-05-2017.
No dia do ataque, domingo 30, os indígenas faziam por conta própria a
retomada de uma porção de terra que, segundo defendem, é
tradicionalmente ocupada pelos gamela, mas está nas mãos de pecuaristas. A etnia, dada como extinta na década de 1940, quer recuperar sua história.
"Achamos uma certidão que mostra que nossas terras foram ‘doadas' pela Coroa em 1769", conta Inaldo. "Encontramos o registro de um processo dos indígenas contra fazendeiros em 1822 e uma venda das terras fraudada no cartório", adiciona o líder.
O histórico de fraudes, corrupção e grilagem quase calou para sempre
os gamela. Em 2014, as lideranças iniciaram o processo para o
reconhecimento de suas terras tradicionais junto à Funai (Fundação Nacional do Índio), que não progrediu desde então.
"Vemos um Estado anti-indígena, apesar de ter uma Constituição
que garanta nossos direitos", menciona o capítulo 8 da Constituição,
que reconhece os direitos originários sobre as terras tradicionalmente
ocupadas por índios.
Fila de espera
O pedido de demarcação dos gamela, oficialmente, ainda não existe na base de dados da Funai, que acumula centenas de processos na fila de espera. O monitoramento feito pelo ISA
(Instituto Socioambiental), que acompanha as informações divulgadas no
Diário Oficial, aponta 704 pedidos – 480 foram concluídos, com terras
indígenas demarcadas.
"A maior parte dos processos em andamento tem forte concentração no
centro-sul do país. Onde, não por acaso, há maior ocupação do
território, com destinação privada das terras que foi feita à revelia
dos índios, historicamente", comenta Márcio Santilli, sócio fundador do ISA e ex-presidente da Funai. Nessa parte do país, fora da Amazônia Legal, vivem cerca de 40% da população indígena.
Dentro e fora das áreas demarcadas, a disputa pela terra gera violência, aponta o relatório publicado anualmente pelo Cimi (Conselho Indigenista Missionário). Dos 71 confrontos registrados em 2015, a maioria ocorreu no Maranhão. Em todo o país, 137 indígenas foram assassinados naquele ano.
Marcha para trás
Organizações internacionais que acompanham o debate veem um cenário
de retrocesso. "Hoje temos uma conjuntura crítica, que foi se
aprofundando ao longo dos anos. Vários projetos de lei suprimem ou
relativizam de vez os direitos indígenas, por iniciativa do próprio
Executivo", comenta Danicley Aguiar, do Greenpeace.
Ele faz referência principalmente à PEC 215, que
transfere para o Congresso a aprovação das demarcações das terras
indígenas, e ao projeto de lei que permite a exploração comercial por
terceiros de recursos dentro do território indígena. "A nossa união com
os indígenas é natural, pois são eles os maiores protetores das
florestas", diz o coordenador da Campanha Amazônia do Greenpeace.
Na visão de Santilli, que presidiu a Funai
de 1985 a 1996, o país vive seu momento mais crítico desde a
redemocratização. "Vemos iniciativas de retrocessos legais", analisa. A
pressão viria, principalmente, do setor agropecuário e segmentos ligados
a grandes obras de infraestrutura. "O setor agropecuário tem poder
muito grande dentro do Congresso, porque é o segmento da economia que
banca as campanhas eleitorais dos grandes partidos", afirma Santilli.
CPI e intimidação
Para os parlamentares que conduziram a Comissão Parlamentar de Inquérito da Funai,
o problema não seria a falta de terra. "Considerando que a população
indígena do Brasil é composta por 817.963 índios, ocupando 117 milhões
de hectares, 13,7% de todo o território nacional, é difícil imaginar que
a grande condição de indignidade dos mesmos se resuma apenas à questão
da terra", diz o relatório final, de mais de 3 mil páginas.
A CPI, presidida pelo deputado Alceu Moreira (PMDB-RS), foi criada para investigar denúncias de irregularidades na atuação da Funai e do Incra
na demarcação de terras indígenas e quilombolas, mas deputados da
oposição acusam a comissão de proteger grileiros e tentar criminalizar
entidades que lutam em defesa dos índios.
Segundo o relatório final, divulgado no início de maio, a Funai
é influenciada por "interesses escusos" de organizações não
governamentais que recebem dinheiro do exterior. "Assim o fazem com base
em laudos fraudulentos, em conluio e confusão de interesses com
antropólogos e ONGs, muitas vezes, respaldados, juridicamente, por
segmentos do Ministério Público Federal e patrocinado por soberanias
outras que pretendem a nossa relativizar", afirma o texto.
Márcio Santilli cita motivação política, e
inconstitucional, por trás do relatório. "São parlamentares que se opõem
à efetivação do preceito constitucional que determina à União a
demarcação das terras dos índios", defende. "O intuito é intimidar."
Ainda assim, acredita Inaldo Gamela, as lideranças indígenas não vão
recuar. "Numa conjuntura como essa, em que o Estado é nosso inimigo, ou a
gente faz a luta pra retomar nossas terras ou a gente vai ter que
esperar milhares de anos", afirma o indígena, que estudou no seminário e
já foi padre, mas abandonou a batina para defender sua etnia.
Procurada, a Funai não atendeu à solicitação de entrevista da DW Brasil.
Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/567323-o-estado-e-nosso-inimigo-a-luta-dos-indios-no-brasil
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