Publicamos aqui o comentário do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, sobre as leituras deste 4º Domingo da Páscoa.
No tempo da Páscoa, como as outras leituras escolhidas pelo lecionário romano não são paralelas ao Evangelho, comenta-se apenas o trecho evangélico (Jo 10, 1-10).
A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No tempo da Páscoa, como as outras leituras escolhidas pelo lecionário romano não são paralelas ao Evangelho, comenta-se apenas o trecho evangélico (Jo 10, 1-10).
A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
No tempo de Jesus, os pastores estavam presentes por toda a parte na Palestina
e eram encontrados nos campos e nas cidades, nas planícies e nas
montanhas. A figura do pastor era conhecida, e se conheciam os lugares
nos quais, de dia ou de noite, ele estava com as ovelhas, que forneciam
leite, carne e queijo.
Na Bíblia, a figura do pastor está muito presente não só como protagonista da narrativa, mas também como parábola e tipologia. Como Deus, o Senhor, é chamado e reconhecido como “Pastor de Israel” (Sl 80, 2), o seu povo é chamado de “seu rebanho” (cf. Sl 78, 52; 95, 7; 100, 3), ovelhas que são a sua propriedade. As diversas situações em que podem vir a ser encontrados o pastor e o rebanho, portanto, servem para descrever condições históricas concretas, como leitura das relações entre Deus e o seu povo.
Deus é o Pastor, mas, para que essa sua qualidade seja reconhecida pelos crentes, ele envia ao seu rebanho pastores, escolhidos “para que a comunidade do Senhor não seja um rebanho sem pastor” (Nm 27, 17). Mas esses pastores, às vezes, tornam-se infiéis à sua missão, tornam-se “maus pastores”; ao mesmo tempo, outros que não foram enviados por Deus “fazem-se pastores”, assumindo uma função de serviço voltada, na realidade, à busca dos próprios fins. Os profetas repetidamente denunciaram essas situações, nas quais o povo do Senhor geme e sofre, mas também anunciaram a vinda de Deus e do seu Messias como pastor das suas ovelhas (cf. Jr 23, 1-6; 31, 10; Ez 34, 1-31).
Na Bíblia, a figura do pastor está muito presente não só como protagonista da narrativa, mas também como parábola e tipologia. Como Deus, o Senhor, é chamado e reconhecido como “Pastor de Israel” (Sl 80, 2), o seu povo é chamado de “seu rebanho” (cf. Sl 78, 52; 95, 7; 100, 3), ovelhas que são a sua propriedade. As diversas situações em que podem vir a ser encontrados o pastor e o rebanho, portanto, servem para descrever condições históricas concretas, como leitura das relações entre Deus e o seu povo.
Deus é o Pastor, mas, para que essa sua qualidade seja reconhecida pelos crentes, ele envia ao seu rebanho pastores, escolhidos “para que a comunidade do Senhor não seja um rebanho sem pastor” (Nm 27, 17). Mas esses pastores, às vezes, tornam-se infiéis à sua missão, tornam-se “maus pastores”; ao mesmo tempo, outros que não foram enviados por Deus “fazem-se pastores”, assumindo uma função de serviço voltada, na realidade, à busca dos próprios fins. Os profetas repetidamente denunciaram essas situações, nas quais o povo do Senhor geme e sofre, mas também anunciaram a vinda de Deus e do seu Messias como pastor das suas ovelhas (cf. Jr 23, 1-6; 31, 10; Ez 34, 1-31).
No quarto Evangelho, enquanto Jesus se encontra em Jerusalém para celebrar a festa da Dedicação do templo, é descrito um debate entre o próprio Jesus e alguns fariseus, depois da cura por parte dele no dia de sábado de um cego de nascença (cf. Jo 9). Graças à fé em Jesus, o cego passa a ver, enquanto os guias religiosos parecem cegos, incapazes de reconhecer nele a missão de Deus. Jesus, portanto, afirma ter vindo para abrir um processo que manifestará quem é cego e quem, ao invés disso, vê; quem permanece na incredulidade e quem, ao invés disso, chega à luz (cf. Jo 9, 40-41).
Mas isso constitui um êxodo, uma saída do sistema religioso judaico rumo à comunidade que adere a Jesus. A pretensão de Jesus é gritante e escandalosa, como nos é apresentada pelas expressões que a comunidade joanina forjou a partir das suas palavras e ações, contempladas, meditadas e interpretadas.
O discurso de Jesus é organizado em torno da formulação de uma paroimía (Jo 10, 6), ou seja, de um enigma construído por imagens (cf. Jo 10, 1-6), ao qual se segue a explicação que o resolve em mistério de fé (cf. Jo 10, 7-18) e, por fim, uma conclusão (cf. Jo 10, 19-21).
Eis, portanto, o enigma: “Em verdade, em verdade vos digo, quem não entra no redil das ovelhas pela porta, mas sobe por outro lugar, é ladrão e assaltante”. As solenes palavras de Jesus põem em relevo uma oposição: há aqueles que entram no redil das ovelhas não através da porta, que é vigiada, mas pulando a cerca. Estes são os ladrões e assaltantes: as ovelhas não pertencem a eles, mas eles querem se apossar delas. São ladrões porque roubam e são assaltantes que podem entrar no redil apenas com o engano; na realidade, são lobos (cf. At 20, 28-30), falsos pastores que não se importam com as necessidades das ovelhas, mas pensam apenas em si mesmos.
Ao contrário, “quem entra pela porta é o pastor das ovelhas”, e o guardião posto na entrada do redil o reconhece e abre para ele; então, “as ovelhas escutam a sua voz; ele chama as ovelhas pelo nome e as conduz para fora”.
Jesus é
esse pastor, e o Pai é o guardião que abre para ele. De fato, é o Pai
que lhe deu as ovelhas (cf. Jo 17, 6-8), que o enviou (cf. Jo 8, 16.42),
que colocou todas elas nas suas mãos (cf. Jo 3, 35; 5, 22). Portanto, o
Pai reconhece Jesus como pastor único do rebanho, e assim também fazem
as ovelhas: elas reconhecem a sua voz, escutam-na e exultam, sentindo-se
por ele chamadas, cada uma, com o próprio nome.
Jesus tem uma tarefa específica: chamando as ovelhas pelo nome, faz com que elas “saiam”, faz com que elas façam um êxodo do redil às pastagem abertas, à liberdade. Essa ação é mais do que o “fazer sair” de Moisés do Egito rumo à terra prometida, porque é um “fazer sair” da escravidão à liberdade, da morte à vida para sempre.
Nessas poucas palavras, é delineado todo o caminho do discípulo, ovelha do rebanho de Jesus: ele deve escutar a voz do pastor, deve reconhecê-la como palavra para si, deve, portanto, conhecer o pastor e, assim, segui-lo rumo às pastagens da liberdade, em vista a uma “vida em abundância”.
O pastor, depois, também se define como “porta”. O enigma, assim, é explicado mediante duas afirmações: “Eu sou a porta” (Jo 10, 7.9) e “Eu sou o bom pastor” (Jo 10, 11.14). Atenção: Jesus não diz que é a porta do redil, mas a porta das ovelhas! Ele não é uma porta que dá acesso a um recinto, a uma instituição, mas uma porta a serviço das ovelhas.
No Antigo Testamento, a imagem da porta é reveladora de uma passagem para o céu (cf. Gn 28, 17), de uma passagem para ter acesso à presença do Senhor, à sua Shekinah, ao templo (cf. Is 60, 11; Sl 118, 19-20); mas aqui é Jesus que se torna porta pequena e estreita (cf. Mt 7, 13-14; Lc 13, 24), única via de entrada e de saída a Deus, o Pai.
Jesus tem uma tarefa específica: chamando as ovelhas pelo nome, faz com que elas “saiam”, faz com que elas façam um êxodo do redil às pastagem abertas, à liberdade. Essa ação é mais do que o “fazer sair” de Moisés do Egito rumo à terra prometida, porque é um “fazer sair” da escravidão à liberdade, da morte à vida para sempre.
Nessas poucas palavras, é delineado todo o caminho do discípulo, ovelha do rebanho de Jesus: ele deve escutar a voz do pastor, deve reconhecê-la como palavra para si, deve, portanto, conhecer o pastor e, assim, segui-lo rumo às pastagens da liberdade, em vista a uma “vida em abundância”.
O pastor, depois, também se define como “porta”. O enigma, assim, é explicado mediante duas afirmações: “Eu sou a porta” (Jo 10, 7.9) e “Eu sou o bom pastor” (Jo 10, 11.14). Atenção: Jesus não diz que é a porta do redil, mas a porta das ovelhas! Ele não é uma porta que dá acesso a um recinto, a uma instituição, mas uma porta a serviço das ovelhas.
No Antigo Testamento, a imagem da porta é reveladora de uma passagem para o céu (cf. Gn 28, 17), de uma passagem para ter acesso à presença do Senhor, à sua Shekinah, ao templo (cf. Is 60, 11; Sl 118, 19-20); mas aqui é Jesus que se torna porta pequena e estreita (cf. Mt 7, 13-14; Lc 13, 24), única via de entrada e de saída a Deus, o Pai.
Tendo vindo a plenitude dos tempos, quando “se adora a Deus em Espírito e Verdade” (Jo 4, 23-24), Jesus é agora o único acesso a Deus, a única via para fazer parte do rebanho do Senhor: é uma porta aberta a um espaço sem limites.
Nos últimos discursos aos seus discípulos, ele dirá: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14, 6), palavras que explicitam a afirmação: “Eu sou a porta”, que expressam e são o caminho que conduz ao conhecimento de Deus e, portanto, à vida para sempre (cf. Jo 17, 3).
Nos últimos discursos aos seus discípulos, ele dirá: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14, 6), palavras que explicitam a afirmação: “Eu sou a porta”, que expressam e são o caminho que conduz ao conhecimento de Deus e, portanto, à vida para sempre (cf. Jo 17, 3).
Essas palavras de Jesus podem nos surpreender e até mesmo desestabilizar: como é possível que um homem tenha se vangloriado de tais pretensões? No entanto, João põe na boca de Jesus tais revelações porque assim quer a fé naquele que é o Filho de Deus, o Messias que veio ao mundo.
Eis, então, o pedido de discernimento sobre aqueles que vieram antes de Jesus, com a pretensão de serem pastores enviados por Deus: muitos já têm vindo, mas eram ladrões, assaltantes, estranhos “que vieram para roubar e sacrificar” (Jo 10, 10) como diz literalmente o texto (verbo thýo). Jesus certamente não deslegitima os “pastores” enviados por Deus – de Abraão até os profetas –, mas os falsos Messias, como Inácio de Antioquia já tinha bem entendido: “Cristo é a porta do Pai, através da qual entraram Abraão, Isaac, Jacó, os profetas, os apóstolos e a Igreja” (Ai filadelfesi, 9).
Em todos os tempos, aparecem no mundo e também na Igreja supostos “ungidos”, falsos enviados que Deus não mandou, homens e mulheres que imputam ao Senhor as suas elucubrações, mas são sempre reconhecíveis por aqueles que são crentes atentos em Jesus: não estão no meio do rebanho, mas acima; não conhecem as ovelhas pelo nome, mas só querem comandá-las; não protegem a ovelha fraca, mas a abandonam; não vão em busca da ovelha perdida, mas preferem estar com as outras dentro do redil.
Portanto, Jesus é a porta a se
atravessar em liberdade para ir e vir, para ir rumo às pastagens do céu e
voltar para o abrigo quando sobrevier a ameaça. É uma porta de salvação,
que dá uma salvação não transitória, como a que, às vezes, os seres
humanos se dão na história. Consequentemente, é também o pastor que
deseja para as ovelhas uma coisa só: “a vida em abundância”. Por isso,
faz com que elas saiam em liberdade, para caminhos de êxodo nos quais se
abrem horizontes novos e se conhecem novas pastagens. Eis a liberdade
dos filhos de Deus, na qual há também proteção, porque – diz Jesus –
“ninguém pode roubar as minhas ovelhas da minha mão” (Jo 10, 28).
A outra explicação do enigma consiste na autorrevelação de Jesus como “pastor belo e bom”: “Eu sou o pastor belo e bom (kalós), que dá a própria vida por suas ovelhas” (Jo 10, 11). A manifestação da vinda “pastoral” de Jesus não consiste nas ideias, na doutrina, apenas no ensinamento, mas em dar e gastar a vida pelas ovelhas.
Se Deus era cantado no Salmo como Pastor do crente ao qual não falta nada (cf. Sl 23, 1), Jesus diz de si que ele mesmo dá a sua vida pelas ovelhas. E se nos Evangelhos sinóticos o pastor da parábola estava cheio de amor, até ir procurar a ovelha perdida para trazê-la novamente para casa (cf. Mt 18, 12-14; Lc 15, 4-7), aqui o pastor dá a sua vida tanto pela ovelha perdida, quanto por aquela que permanece no redil.
Assim, é identificada a relação entre o pastor e as ovelhas: um conhecimento recíproco que se torna amor, um conhecimento penetrante através do qual o pastor conhece as ovelhas em profundidade, na qual elas mesmas não chegam a se conhecer; e as ovelhas chegam a reconhecer o pastor como aquele que cuida delas porque as ama.
Experiência indizível, porém autêntica, na qual se escuta a voz do pastor, chega-se a discernir a sua presença fugaz, mas, sobretudo, sentimo-nos amados, compreendidos, perdoados por um amor que também é sempre misericórdia.
A outra explicação do enigma consiste na autorrevelação de Jesus como “pastor belo e bom”: “Eu sou o pastor belo e bom (kalós), que dá a própria vida por suas ovelhas” (Jo 10, 11). A manifestação da vinda “pastoral” de Jesus não consiste nas ideias, na doutrina, apenas no ensinamento, mas em dar e gastar a vida pelas ovelhas.
Se Deus era cantado no Salmo como Pastor do crente ao qual não falta nada (cf. Sl 23, 1), Jesus diz de si que ele mesmo dá a sua vida pelas ovelhas. E se nos Evangelhos sinóticos o pastor da parábola estava cheio de amor, até ir procurar a ovelha perdida para trazê-la novamente para casa (cf. Mt 18, 12-14; Lc 15, 4-7), aqui o pastor dá a sua vida tanto pela ovelha perdida, quanto por aquela que permanece no redil.
Assim, é identificada a relação entre o pastor e as ovelhas: um conhecimento recíproco que se torna amor, um conhecimento penetrante através do qual o pastor conhece as ovelhas em profundidade, na qual elas mesmas não chegam a se conhecer; e as ovelhas chegam a reconhecer o pastor como aquele que cuida delas porque as ama.
Experiência indizível, porém autêntica, na qual se escuta a voz do pastor, chega-se a discernir a sua presença fugaz, mas, sobretudo, sentimo-nos amados, compreendidos, perdoados por um amor que também é sempre misericórdia.
Mas, ao lado do bom pastor, aparece também “o pastor assalariado”
(Jo 10, 12), que desempenha a sua tarefa e realiza o seu trabalho
apenas pelo salário. Muitos eram os pastores desse tipo no tempo de
Jesus, e muitos ainda o são hoje: não são maus, não fazem mal, não
roubam o povo de Deus nem o maltratam, mas são meros funcionários! Se a
Igreja fosse uma máquina, poderia até seguir em frente assim; mas a
Igreja é o rebanho do Senhor, é uma realidade viva, um corpo no qual, se
não existe o amor gratuito, ocorre uma triste desfiguração.
O pastor assalariado cumpre o seu ofício por aquilo que foi pago; por isso, se vê o lobo chegar, pensa em salvar a si mesmo, não as ovelhas (cf. Jo 10, 12-13). Mas Jesus não! A sua missão de pastor é motivada apenas pelo amor, e o Pai o ama justamente por isso: porque ele sabe dar a vida pelas ovelhas, para depois recebê-la novamente dele (cf. Jo 10, 14-15.17-18). A sua missão de dar e gastar a vida é dirigida a todos os seres humanos, até mesmo àqueles que pertencem a outros redis, não só ao de Israel.
Virá o dia em que até mesmo essas ovelhas provenientes dos gentios poderão escutar a voz de Cristo e, assim, tornar-se ovelhas do rebanho que é seu (cf. Jo 10, 16): dele, o único pastor da humanidade, de toda a criação.
O pastor assalariado cumpre o seu ofício por aquilo que foi pago; por isso, se vê o lobo chegar, pensa em salvar a si mesmo, não as ovelhas (cf. Jo 10, 12-13). Mas Jesus não! A sua missão de pastor é motivada apenas pelo amor, e o Pai o ama justamente por isso: porque ele sabe dar a vida pelas ovelhas, para depois recebê-la novamente dele (cf. Jo 10, 14-15.17-18). A sua missão de dar e gastar a vida é dirigida a todos os seres humanos, até mesmo àqueles que pertencem a outros redis, não só ao de Israel.
Virá o dia em que até mesmo essas ovelhas provenientes dos gentios poderão escutar a voz de Cristo e, assim, tornar-se ovelhas do rebanho que é seu (cf. Jo 10, 16): dele, o único pastor da humanidade, de toda a criação.
Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/567313-jesus-o-pastor-belo-e-bom
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