Paula Sperb - @paulasperb
De Nova Santa Rita (RS) para a BBC Brasil
O agricultor Isaías Vedovatto tinha
22 anos quando cortou a cerca da Fazenda Annoni, em Sarandi (RS), na
madrugada de 29 de outubro de 1985. Ele foi o primeiro dos 7,5 mil
camponeses, de mais de 30 cidades gaúchas, a pisar na invasão de terra,
marcante na história do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra).
Agora, aos 54 anos, Vedovatto testemunha o MST se tornar
o maior produtor de arroz orgânico (sem agrotóxicos) da América Latina -
em uma nova etapa do movimento, que é alvo de defesas e críticas
igualmente apaixonadas.
O agricultor era um dos 2 mil sem-terra
presentes na 14ª Abertura Oficial da Colheita do Arroz Agroecológico no
RS, em 17 de março, a 25 km de Porto Alegre. Nesta primeira semana de
maio, o movimento organizou, em São Paulo (SP), a 2ª Feira Nacional da
Reforma Agrária, com exposição da produção de acampamentos e
assentamentos.
Para a safra do arroz orgânico de 2016-17, o MST estima a
colheita de mais de 27 mil toneladas, produzidas em 22 assentamentos
diferentes, envolvendo 616 famílias gaúchas. Também serão produzidas
22.260 sacas de sementes, que não são transgênicas.
A Conab
(Companhia Nacional de Abastecimento), órgão do governo federal, não
diferencia a produção orgânica da convencional (com agrotóxicos e outros
aditivos químicos) na sua estimativa atual de safra. Mas o Irga
(Instituto Riograndense do Arroz), do governo gaúcho, confirma que o MST
é, no momento, o maior produtor orgânico do grão da América Latina.
Exportação
O movimento exporta 30% de sua produção, segundo Emerson Giacomelli, coordenador do Grupo Gestor do Arroz Agroecológico do MST.
Um dos responsáveis pela exportação é o zootécnico Anderson Bortoli, 41, da empresa Solstbio, da cidade de Santa Maria.
A
empresa - sem relação institucional com o MST - compra o arroz orgânico
de três assentamentos gaúchos e exporta-o para Estados Unidos,
Alemanha, Espanha, Nova Zelândia, Noruega, Chile e México.
Bortoli
coleta amostras do arroz nos silos e envia para a Bélgica para análises
que garantem que não contenha nenhum agrotóxico e, assim, obtém as
certificações de produto orgânico.
Apenas no município gaúcho de
Nova Santa Rita, a produção do MST faz circular R$ 7 milhões por ano,
movimentando a economia local, diz a prefeita Margarete Simon Ferretti
(PT).
Os 4 mil alunos das 16 escolas municipais consomem alimentos orgânicos adquiridos pela prefeitura diretamente dos agricultores.
E
os produtores de arroz orgânico trabalham no sistema de cooperativa e
recebem, de acordo com Giacomelli, 15% a mais do que agricultores
convencionais.
"Essa valorização é possível porque colocamos um
produto de qualidade no mercado, com preço maior. Isso ajuda a manter os
trabalhadores no campo", explica o gestor.
Agroecologia x agronegócio
"No
início do MST, durante a crise da década de 1980, a meta principal do
movimento era terra para trabalhar e criar as famílias. Naquele âmbito a
visão era até um pouco ingênua: terra para quem nela trabalha. É um
princípio justo, porém insuficiente para resolver os problemas da
produção de alimentos. Na medida em que o MST foi evoluindo, fomos
adequando nosso programa, fomos incorporando a agroecologia", diz João
Pedro Stédile, coordenador nacional do Movimento Sem Terra, em
entrevista à BBC Brasil.
Estudos acadêmicos mostram que o discurso da agroecologia foi incorporado pelo MST a partir dos anos 2000.
"A
agroecologia passa a ser o principal discurso (do MST) para a
viabilidade da reforma agrária e para dialogar com a sociedade civil -
urbana ou rural", opina Caetano De'Carli Viana Costa, professor da
Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) que estudou essa
mudança do MST.
O modelo agroecológico, segundo Stédile, é
antagônico ao do agronegócio porque este último "visa o lucro a qualquer
custo, usando agrotóxicos, transgênicos e maquinário, o que afasta os
trabalhadores rurais do campo".
De um lado, essa nova fase do
movimento gera críticas de quem acha que ele deixou de lado sua pauta
original para sucumbir às demandas do mercado consumidor.
"O MST
abandonou sua pauta de luta para absorver um modelo de produção liberal -
e por que não dizer capitalista - para lograr sucesso", critica Adriano
Paranaiba, mestre em Agronegócios pela Universidade Federal de Goiás
(UFG) e diretor de ensino e pesquisa do Instituto Liberdade e Justiça
(ILJ).
De outro, há quem critique as táticas tradicionais de
invasão de terras, mas veja com bons olhos o avanço na produção de
orgânicos.
"É um movimento invasor, próximo de uma atividade
guerrilheira e que, por várias vezes, traz conflitos que ameaçam a vida
das pessoas", opina Paulo Ricardo de Souza Dias, presidente da Comissão
de Assuntos Fundiários da Farsul (Federação da Agricultura do Estado do
Rio Grande do Sul).
"No momento em que eles são produtores, eles
são nossos colegas. A nossa visão crítica é quando estão nesse movimento
de guerrilha."
Procuradas pela BBC Brasil para comentar a posição
do MST, a Sociedade Rural Brasileira (SRB) e a Confederação da
Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), que representam o agronegócio,
não quiseram se manifestar.
Menos desapropriações
Na
teoria, os sem-terra invadem áreas improdutivas e desocupadas, o
governo então indeniza os proprietários das terras, pagando o valor da
área, e, por fim, dá a posse aos camponeses. Esse processo, vale
lembrar, nem sempre é pacífico.
Segundo o Incra (Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária), o Brasil tem 9.355
assentamentos. Nas contas do MST, o país possui 1,1 milhão de famílias
assentadas e 130 mil famílias acampadas (sem a posse legal da terra).
"Durante
os governos Lula e Dilma (2003-2016) a gente tinha uma briga porque
tinha gente que dizia que os dois modelos, agronegócio e agroecologia,
são compatíveis. E foi essa a política de Lula e Dilma, porque eles
apoiavam o agronegócio e apoiavam a agricultura familiar", critica
Stédile.
Stédile é ainda mais crítico ao governo de Michel Temer (PMDB), por causa da extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário.
"Deram a prova concreta de que não querem saber dos pobres do campo", diz o líder sem-terra.
À
BBC Brasil o Incra afirmou que a extinção da pasta não prejudica as
políticas voltadas para os assentamentos porque foi criada a Secretaria
Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário.
Ao
mesmo tempo, os decretos presidenciais que determinam a desapropriação
de terra para destiná-las a assentamentos caíram 86,7% na comparação
entre 2010 e 2016. Em 2010, Lula assinou 158 decretos desapropriatórios,
contra 21 decretos assinados em 2016 (Dilma Rousseff foi afastada em
maio, quando assumiu Temer).
No mesmo período, a quantidade de área desapropriada caiu 89%, de 321.525 hectares em 2010 para 35.089 hectares em 2016.
Por
consequência, o valor pago pelo governo aos proprietários das terras
desapropriadas também caiu, mas não na mesma proporção: 64,62% foi a
redução entre 2010 para 2016, de R$ 326,4 milhões para R$ 115,4 milhões.
Assentamentos x acampamentos
O
decreto presidencial é uma das últimas etapas da criação de um
assentamento. Antes de serem assentados, os sem-terra passam pelos
acampamentos.
É nessa fase que ocorre o maior número de
desistências, conta Cedenir de Oliveira, 38, da coordenação estadual do
MST. Sem água encanada, eletricidade e morando em barracas, algumas
famílias não aguentam esperar pela desapropriação.
Nilce de
Oliveira, de 40 anos, é uma das que aguardam: saiu de Guarujá (SP) com o
marido e dois filhos. Eles são acampados na cidade de Charqueadas, a 40
km de Porto Alegre.
"Estamos debaixo da lona preta. O mais
difícil é o inverno, porque é muito frio, a chuva molha tudo, o jeito é
fazer fogo para se aquecer", conta Oliveira.
"A gente fica abraçado e enrolado nas cobertas", conta a filha Ingrid, de 7 anos, apontando para o irmão Michael, 13.
Além
dessa precariedade, outra questão constantemente envolvendo os
assentamentos é a violência no campo. Lideranças sem-terra dizem
conviver com ameaças de morte e execuções de integrantes.
Em 19
de abril deste ano, nove homens sem-terra foram assassinados em um
assentamento na área de Colniza, no Mato Grosso. As vítimas foram
amarradas e torturadas antes de serem mortas. A suspeita é que capangas
de fazendeiros da região tenham cometido os crimes.
Em 25 de abril, um dirigente do MST foi assassinado em casa, no Assentamento Liberdade, em Minas Gerais.
Relatório
da Comissão Pastoral da Terra (CPT), ligada à Igreja Católica, aponta
que 59 pessoas foram mortas em 2016 por defender a reforma agrária e
também áreas indígenas. O número é maior do que o registrado em 2003,
ano com 71 mortes no campo.
Enquanto a violência no campo
persiste, o MST espera que a produção de orgânicos seja adota em outras
regiões do país. Emerson Giacomelli, de 43 anos, começou a desenvolver a
técnica de manejo do arroz orgânico do MST há 15 anos.
Hoje,
Giacomelli enxerga benefícios que vão além dos assentamentos: "É saúde
para quem produz e para quem consome. Ajuda na permanência dos
camponeses na terra, mas também ajuda quem compra a não ter que se
preocupar com os malefícios dos agrotóxicos".
Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/brasil-39775504
Nenhum comentário:
Postar um comentário