Para explicar a importância da igualdade entre gêneros para os homens, a socióloga Eva Blay diz
que sempre conta uma historinha. “Eu fazia a conta. Você [homem] ganha
R$ 20. A tua mulher ganha R$ 10. Quanto entrou na sua casa? R$ 30. Então
ficou faltando quanto? Quem ficou com esses R$ 10 [que estão faltando]?
Quando você joga essa pergunta: ‘quem ficou com os R$ 10?’ – e não foi
nem você, nem sua mulher nem sua casa – era fantástico”, disse, em
entrevista dada à Agência Brasil, na semana passada, no campus da Universidade de São Paulo (USP), na sede do escritório da USP Mulheres.
A entrevista é de Elaine Patricia Cruz, publicada por Agência Brasil, 08-03-2017.
Eva prefere não falar de si, mas sua história de luta pelos direitos
das mulheres é longa. Socióloga e professora titular da Universidade de
São Paulo (USP), Eva Blay, 79 anos, foi senadora e atualmente coordena o Escritório USP Mulheres, que trabalha para o enfrentamento da violência contra a mulher, para a garantia da igualdade de gênero no Brasil e conta com apoio da Organização das Nações Unidas (ONU).
Para ela, o feminismo avançou muito ao longo dos anos, mas a
consolidação dos direitos das mulheres no mundo nunca foi, de fato,
consagrada. “Na sociedade não existe, nunca [houve] uma consolidação. O
que existe é sempre um processo”, destacou.
Na entrevista, Eva fala sobre o surgimento do Dia Internacional da Mulher e diz que a data remonta a várias lutas femininas.
Ela destaca que a violência contra a mulher continua em todo o mundo, mas que no Brasil a distorção é ainda pior. “O Brasil está em quinto lugar no assassinato de mulheres”, destaca.
Na entrevista, Eva fala sobre o surgimento do Dia Internacional da Mulher e diz que a data remonta a várias lutas femininas.
Ela destaca que a violência contra a mulher continua em todo o mundo, mas que no Brasil a distorção é ainda pior. “O Brasil está em quinto lugar no assassinato de mulheres”, destaca.
Eis a entrevista.
Como teve início as comemorações pelo Dia Internacional da Mulher?
O dia 8 de março não começou no dia 8 de março. Começou com a Clara Zetkin,
uma socialista que apresentou em um congresso socialista [2º Congresso
Internacional de Mulheres Socialistas], em 1911, uma proposta de um dia
internacional para as mulheres. Então, como socialista, ela queria uma
coisa geral. Naquela época, mais ou menos como agora, havia uma série de
dificuldades. Mas acho que, naquela época, a situação era pior. As mulheres
não tinham horário de trabalho. Então, trabalhava 12 horas, 15 horas,
as crianças trabalhavam. Quando as mulheres, naquela época, saíram às
ruas com essa proposta – ainda era época do czar – elas achavam, e aí já
não eram as socialistas, que podiam conseguir do czar um certo apoio,
uma certa redução da jornada, mas ele mandou a polícia para cima delas e
foi um morticínio total. Depois disso, sempre do ponto de vista
político, as mulheres continuaram a lutar por um dia de reivindicação,
um dia de luta, não festivo. Mas em vez de pensar em luta, o que a
sociedade capitalista inventou? Vamos dar bombons e flores. Ora, nós não
queremos bombons e flores apenas. Venham os bombons e as flores, mas
não só isso. O que nós queremos é a igualdade de direitos e de deveres como está na Constituição de 1988.
E quais foram os avanços conquistados pelas mulheres desde então?
Homens e mulheres são iguais perante a lei. E ser igual significa o
que? As mesmas oportunidades de estudar, de não ter limitações nas
carreiras, de não ter um teto de vidro que limita a ascensão das mulheres nas carreiras.
Enfim, uma mudança geral na estrutura da sociedade. E estou falando
especialmente da brasileira. Mas isso acontece em todas as outras
sociedades. Por volta dos anos 50, essa reivindicação tornou-se o centro
do movimento feminista no mundo todo. Não era só
socialista, era feminista, era suprapartidária. E o movimento feminista
incluiu todas essas reivindicações: a igualdade de direitos, a igualdade
sobre, por exemplo, na família, de a mulher poder dizer quem é seu
filho e quem é o pai do seu filho. Nós não podíamos fazer isso. A
mulher, para trabalhar, precisava de autorização do marido. Para viajar,
precisava de autorização. Ela não podia nem usar o próprio dinheiro. O
movimento feminista começou a trabalhar todas essas questões. E, de uma
certa maneira, avançamos. Avançamos do ponto de vista do direito, do
ponto de vista da educação, as mulheres se tornaram altamente
escolarizadas comparando com os homens e muitas foram para a
universidade. O caminho da universidade é mais ou menos heterogêneo. Nas
carreiras que são das ciências chamadas duras ou exatas, temos menos
mulheres que homens. Mas estamos fazendo muita força para ampliar isso.
E o que falta conquistar?
Qual foi a área que não avançou? A violência. Na
violência, nós não conseguimos avançar. Ela continua. Na pior situação,
há o assassinato de mulheres, a violência dentro de casa, o estupro, o
incesto. Tudo isso continua acontecendo e esta é a área que a gente
menos conseguiu avançar. Não só no Brasil como na América Latina toda e no mundo, de forma geral. Mas aqui a distorção é muito pior.
Por que você diz que aqui é muito pior?
Por causa do número de mulheres. O Brasil está em quinto lugar no assassinato de mulheres.
A senhora tem escrito artigos destacando esse momento que o
mundo vive com Trump [Donald Trump, presidente dos Estados Unidos] e
Putin [Vladimir Putin, da Rússia]. Como a senhora enxerga épocas como
essa que parecem de retrocesso?
Acho que vivemos um momento em que há várias forças em atuação.
Evidentemente, quando você pega alguns grupos religiosos ou alguns
indivíduos conservadores e muito conservadores, eles não admitem os
avanços que nós conseguimos. Tem um aí que acha que a mulher tem que ser
subserviente ao homem. Ou ele acha que o casamento entre homossexuais é
uma aberração. Não concorda com o aborto mesmo em caso de anencéfalos.
Até em coisas que já avançamos existem aqueles que querem voltar atrás.
Por isso, acho muito importante a gente nunca perder de vista que o
feminismo avançou, mas não consagrou os avanços. Você tem que estar
sempre alerta porque senão volta para trás. Vide o Trump que, nos Estados Unidos, quem imaginaria que ia fazer as propostas tão retrógradas como ele está fazendo?
Há como recuperar o Dia Internacional da Mulher como um
evento de luta? Esse ano parece um ano especial, de mobilização e de
greves, em nível internacional. Tem como voltar a marca do dia de luta e
não do dia de bombons?
Acho que hoje em dia ninguém ousa pensar o Dia Internacional da Mulher
como o dia do bombom. Eu não vejo mais isso não. Se você andar pela rua
ou mesmo aqui pelo campus [da USP], o que você vê? Frases e cartazes
assim [ela mostra postais com frases que pedem o fim do assédio e da
violência contra a mulher], de que isso tem que parar. A violência sexual tem
que parar. Elas podem ser chefes no trabalho, elas podem andar como
quiserem. Você deve apoiá-las. Isso nós estamos fazendo. Agora, elas
podem sair à noite sozinhas. Hoje você pega uma adolescente e ela não
aceita mais vir com essa conversa. Ela quer andar de shorts sim,
decotada sim e ninguém tem nada a ver com isso. Elas já absorveram esse
feminismo.
Esse é o momento que você falou que está faltando, da consolidação do feminismo?
Na sociedade não existe, nunca [houve] uma consolidação. O que existe
é sempre um processo. É um processo que pode ir e voltar. Se você
comparar hoje com, por exemplo, quando conquistamos o direito ao voto,
quando a Bertha Lutz [bióloga]
lutou pelo direito ao voto, em 1920. Sabia que ela jogava panfletos por
avião? Quem tinha avião naquela época? Ela fez todo um trabalho de
direito ao voto. Então já era uma coisa forte. Havia muitas jornalistas
feministas. Se você pegar de 1850 para frente, o número de mulheres
jornalistas e feministas era muito grande. E depois teve um retrocesso.
As adolescentes podem ser um novo [avanço]?
Acho que estamos avançando. Por exemplo, na violência, a gente não superou os limites. Mas a gente tem a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio. Mas agora é uma questão de cultura. Você tem a lei, mas não tem ainda a cultura para implantar isso.
Tem alguma lei que pode ajudar?
Lei não adianta. A lei ajuda. Ela pune. Isso é importante. Mas nós
vivemos em uma cultura patriarcal, uma cultura machista. Então, enquanto
você viver em uma cultura machista, você não consegue
acabar com isso. Vou dar um exemplo. Tem um fulano, que não quero citar,
que matou a mulher e era uma pessoa notória porque ganha dinheiro. Dois
dias depois, o que vejo nos jornais? A seguinte frase: ‘fulano de tal
[ela não diz o nome, mas ela está falando do goleiro Bruno,
condenado por assassinato] está muito magoado com seus companheiros que
não foram visitá-lo na prisão’. Eu acho que os companheiros não foram
visitá-lo na prisão porque não estavam de acordo por ele ser um
assassino. Mas a mídia não está passando isso. A mídia
está passando ‘coitado, ele pagou o seu crime, então agora ele tem que
ser recepcionado’. Você colocar na mídia essa tentativa de dizer vamos
recuperá-lo? A moça sumiu. Nunca se achou o corpo dela.
E as transgêneras?
Gênero
significa o seguinte: quando você está pensando em uma pessoa, em um
corpo, até agora a gente pensava apenas do ponto de vista biológico.
Hoje não pensamos mais do ponto de vista biológico. Hoje pensamos mais.
Você vive em uma sociedade e é a sociedade que tem uma cultura que vai
ensinar para você a ser mulher, a ser homem. Isso é gênero. Gênero é o
contexto dentro do qual as pessoas estão. Ao lado disso você tem homens
que podem ser biologicamente homens, mas não se sentem homens, se sentem
mulheres. E vice-versa. Homens que são bissexuais, mulheres que são
bissexuais. Hoje tem os crossdresser [termo que designa pessoas
que se vestem com roupas associados ao sexo oposto], que é uma coisa
muito interessante, que são homens que se vestem como mulheres. É
raríssimo o caso contrário, mas tem também. Você vive em uma sociedade
que, felizmente, as coisas agora estão aparecendo. Em vez de o cara
ficar enrustido ou se suicidar, em vez de ele ficar sofrendo, hoje em
dia não. Claro que não é todo mundo que hoje em dia aceita essa decisão.
Porque a pessoa é o que ela é. Não importa. Desde os 3, 4 anos de
idade, ela já começa a se definir. Ela não está escolhendo. Faz parte
dela essa atuação, essa maneira de ser.
O 8 de março é um dia de luta também para a mulher trans?
Elas podem, por que não? Acho que sendo um dia internacional, cada um vai para a rua fazer o que quer.
Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/565558-o-feminismo-avancou-mas-nao-consolidou-os-avancos-entrevista-com-a-sociologa-eva-blay
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