Onze meses após o golpe,
país afundou em recessão e retrocessos. Não se vê, entre as elites, o
menor arrependimento ou intenção de alterar o rumo. Por que?
O artigo é de Igor Fuser, professor na Universidade Federal do ABC (UFABC), doutor em Ciência Política pela USP, publicado por Outras Palavras, 08-03-2017.
Eis o artigo.
O golpe de estado de 17 de abril de 2016 atropelou as ilusões de quem
acreditava nas virtudes infinitas da política de conciliação de classes
– a ideia de que seria possível superar o apartheid social e o
subdesenvolvimento no Brasil sem confronto com as elites dominantes,
mas apenas por meio do crescimento da economia. No pós-golpe, essas
mesmas elites demonstram plena convicção de que agiram corretamente, em
defesa dos seus interesses.
Tal como ocorreu em tragédias históricas anteriores, como o golpe de
1964, o campo progressista discutirá ainda por muito tempo os fatores e
as circunstâncias da derrubada de Dilma Rousseff,
a começar pelos motivos da espantosa passividade das camadas mais
pobres da população, as mais beneficiadas pelos governos liderados pelo PT.
Outro traço marcante no golpe de 2016 – tema da presente coluna – é o
alto grau de coesão que as classes dominantes demonstraram na agressiva
ofensiva contra o governo legítimo.
Com a óbvia exceção dos empreiteiros da engenharia pesada, enrolados na Operação Lava Jato
(que claramente inclui entre seus objetivos a destruição desse setor
estratégico da economia nacional), o que se viu na mobilização golpista
foi um verdadeiro quem-é-quem da burguesia brasileira.
Lá estavam, unidos pelo “fora Dilma”, os banqueiros, os barões do
agronegócio, os magnatas da mídia, os caciques da indústria brasileira
remanescente, a fina flor do “PIB” nacional de mãos dadas com os
grupelhos fascistas, os políticos picaretas e os pit bulls do
Judiciário. Não faltou nem mesmo a rede de lanchonetes Habib’s, hoje
tristemente famosa pela morte de um menino numa de suas lojas, que deu
um desconto especial aos clientes que comparecessem aos atos
pró-impeachment.
Na vanguarda, para eliminar eventuais dúvidas sobre os interesses de classe em jogo, marchava o patético pato da Fiesp.
Justamente a Fiesp, aquela mesma entidade que,
tradicionalmente, é vista como principal porta-voz de uma burguesia
brasileira, “interna” como dizem alguns teóricos. Por esse termo se
costuma designar um segmento da classe dominante supostamente autônomo e
portador de interesses próprios, contraditórios (dizem) com as
preferências do imperialismo estadunidense e dos seus aliados no país.
De acordo com essa teoria, que não se confunde com a fé ingênua da
cúpula ex-governista na conciliação de classes, as gestões presidenciais
de Lula e Dilma seriam a expressão
política de uma “frente neodesenvolvimentista”, articulada em torno de
uma “grande burguesia interna” que estaria gerindo o país em aliança com
a classe trabalhadora e em conflito com uma chamada “burguesia associada”, neoliberal e pró-imperialista.
Enquanto o primeiro grupo burguês teria o foco dos seus interesses
voltado para o mercado interno e a expansão produtiva, o segundo grupo
agiria a serviço dos interesses externos, do bloqueio a qualquer tipo de
desenvolvimento autônomo.
A “grande burguesia interna” incluiria os maiores grupos econômicos de capital nacional em todas as áreas, desde o agronegócio até empresas financeiras como o Bradesco e o Itaú, gigantes empresariais como a JBS Friboi, a Votorantim, a Ambev, a Gerdau e a Vale, os grandes grupos de ensino e saúde privados, além, é claro, dos colossos da construção civil – Odebrecht & cia.
A “grande burguesia interna” incluiria os maiores grupos econômicos de capital nacional em todas as áreas, desde o agronegócio até empresas financeiras como o Bradesco e o Itaú, gigantes empresariais como a JBS Friboi, a Votorantim, a Ambev, a Gerdau e a Vale, os grandes grupos de ensino e saúde privados, além, é claro, dos colossos da construção civil – Odebrecht & cia.
Essas e outras empresas, favorecidas com linhas de crédito e todo
tipo de apoio oficial, amealharam, de fato, lucros fabulosos no ciclo de
governos progressistas. Porém em momento algum mostraram qualquer
compromisso ou apoio ativo ao projeto político liderado pelo PT.
Aceitaram todas as benesses, pressionaram (em geral, com sucesso) por
vantagens setoriais aqui e ali. Mas no campo político se limitaram, nos
melhores casos, a tolerar os governos “de esquerda” como uma
extravagância temporária numa trajetória histórica de cinco séculos de
poder irrestrito da elite dominante.
Houve quem encarasse essa postura pragmática como expressão de uma
sólida aliança de classes, o que explicaria a relativa estabilidade
política naquele período, apesar da permanente campanha midiática
anti-PT e anti-governo.
Quando surgiu a oportunidade, a burguesia agiu em bloco para golpear a
democracia. Se alguém ainda tem alguma dúvida, recomendo que leia a
bela reportagem da jornalista Aline Maciel, da Agência
Pública, sobre o envolvimento ativo das entidades representativas da
indústria brasileira, em nível nacional e nos estados mais importantes,
para pressionar os parlamentares indecisos nas vésperas da votação na Câmara dos Deputados (25/08/2016).
Muita coisa aconteceu nos onze meses que se passaram depois daquele
dia de infâmia. Ministros do desgoverno golpista caíram e foram trocados
em meio a denúncias de corrupção. Um deles chegou a comparar o núcleo
do poder político em Brasília a uma suruba. A economia
mergulhou de vez na recessão. A soberania nacional está sendo
desmantelada e a imensa riqueza do pré-sal entregue de bandeja às
empresas estrangeiras.
E não se verifica no seio da burguesia brasileira o menor sinal de
arrependimento, a menor intenção de alterar o rumo do retrocesso em
curso. Alguém ousaria, nesse cenário, profetizar a reconstituição da
“frente neodesenvolvimentista”? Difícil.
De concreto, o que se vê nos meios empresariais, além do entusiasmo pela destruição de direitos trabalhistas, pelo desmonte da previdência pública e pelo congelamento dos investimentos sociais, são, no máximo, queixas pontuais, sem maior relevância no cenário político.
A mesma Fiesp que liderou as multidões de verde-amarelo na Avenida Paulista
agora reclama do desmonte das políticas de “conteúdo local” na
exploração do pré-sal. Mas sua insatisfação fica por aí mesmo, sem
qualquer desdobramento prático, sem ao menos a intenção de inserir esse
assunto na agenda política geral (quem quiser conferir, olhe o site da
entidade).
A burguesia, como classe, vê os seus interesses essenciais
contemplados pelo retrocesso histórico que o governo golpista tenta
impor à sociedade brasileira. Nunca teve interesse genuíno no projeto
(neo) desenvolvimentista defendido pelo PT, por setores da burocracia estatal e sindical e por alguns intelectuais independentes, como Luiz Carlos Bresser-Pereira.
Desde sua ascensão à classe dirigente, na primeira metade do século
20, a burguesia brasileira tem clara consciência de que seu futuro está
associado à dominação imperialista e à inserção numa ordem mundial
capitalista sob hegemonia dos EUA.
Os burgueses brasileiros – isto está no seu DNA –
desconfiam dos projetos de desenvolvimento nacional porque sentem que
esse caminho os levaria a se marginalizar do sistema imperialista ao
qual associam sua existência e seu futuro. Odeiam os trabalhadores,
desprezam os pobres e têm dificuldade até mesmo em assumir plenamente
uma identidade nacional brasileira.
“Queremos o nosso país de volta”, gritavam, nas ruas. Agora o têm, espero que não por muito tempo. Dessa gente, nada de bom se pode esperar.
“Queremos o nosso país de volta”, gritavam, nas ruas. Agora o têm, espero que não por muito tempo. Dessa gente, nada de bom se pode esperar.
Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/565592-infamia-o-quem-e-quem-da-burguesia-brasileira
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