quinta-feira, 9 de março de 2017

CONHEÇA A EMOCIONANTE HISTÓRIA DE JACQUELINE GALIACI, A 1ª BRASILEIRA TRANSEXUAL A PASSAR PELA REDESIGNAÇÃO GENITAL


Por Neto Lucon Pesquisa: historiadora Astrid Beatriz Bodstein
Conhecer a história das suas antecessoras é fortalecer as raízes e o orgulho de fazer parte de uma luta pelo direito de ser. Embora hoje em dia pouca gente ouça falar dela ou saiba de sua história, na década de 50, 60... existia uma mulher transexual muito famosa no Brasil. Uma vedete pioneira, que desafiava a sociedade: Jacqueline Galiaci.
Num período de extrema repressão, ela sofreu muito, foi expulsa de casa, presa, estuprada, até conseguir ser oficialmente a mulher que sempre foi. Em 1969, passou pela primeira vez pela cirurgia de redesignação sexual (genital) em Casablanca, Marrocos e defendia a sua mulheridade com plumas, ousadia e sabedoria.
Nos anos 50, adotou o nome feminino em São Paulo, capital, andava cheia de joias e tinha deixado o cabelo crescer. “Usava uma boina e colocava o cabelo todo dentro dela, porque se a polícia nos pegasse na rua com o cabelo grande nos prendia. A repressão era muito grande. Naquele tempo não existia nem travesti”, contou ela em um livro de memórias que ficou por lançar e em entrevista à Marie Claire.
Foto de Jacqueline na revista Marie Claire
Em 1952, foi levada por uma amiga – a Miss América, que costurava para as artistas Elvira Pagã e Bibi Ferreira – para a boate Ok. Lá, conheceu o dono e logo estava entre as artistas. Aos 22 anos, cantava sambas de Isaura Garcia e Dalva de Oliveira e logo viu o seu nome crescer. 

Passou a viver para trabalhar, pois só comprava roupas femininas, vestidos e plumas, e não poderia ser vista assim durante o dia. Ou seria presa.

“Passei uma fase muito difícil. Dormia de dia e trabalhava à noite. Só trabalhava, não tinha direito a cinema, teatro, nada. Não podia sair na rua que todo mundo queria minha pele. Veado, mata esse veado, era a gritaria geral. E eu era entendida dessa forma”, relata ela que desafiava não só os preconceitos, como a própria lei, cantando em boates com elegantes vestidos.

PRISÕES

Saindo da boate onde ela trabalhava, resolveu ir a outra casa de espetáculos. O que ela não poderia imaginar – ou poderia – é que fosse abordada pelos policiais. “Fui detida. Meu amado interpelou o policial dizendo ser meu noivo. O guarda disse: Você é o noivo? Então vai ter que nos acompanhar. Fui levada para a carceragem. Sofri todas as baixezas. O carcereiro queria me tirar de lá uma vez que eu dormisse com ele”.

Naquela noite, a os repórteres publicaram as fotos de Jacqueline com o rosto colado com o de Antonio Carlos Acquaviva – metalúrgico com quem se casou e viveu uma vida inteira juntos. As publicações anunciavam a existência de Jacqueline na rua como uma bomba, falavam sobre ela, dos seus trajes e até do seu decote!
Em algumas de suas apresentações

Foi presa inúmeras outras vezes. Em uma delas, após o golpe militar de 1964, foi estuprada por quatro investigadores nas dependências do DOPS. Ela chegou a entrar com um pedido de habeas corpus para ter o direito de andar nas ruas em trajes femininos. Outro escândalo, noticiado pelo então jovem jornalista Ferreira Neto.

Em entrevista à Fiesta, ela disse que aquele tempo era muito difícil. Que às vezes sentia uma vontade imensa de gritar, queria ser ela mesma e que lutava contra ser considerada uma “aberração da natureza”. E é por isso que mesmo correndo o risco de ser presa outras vezes, o que aconteceu, continuava a fazer seus shows, nem sempre sem um tom irônico e despeitado da mídia.

TENTEI SUICIDIO AOS SETE E FUI EXPULSA AOS 14

Nasceu em 1933 no município de Bocaina, naquela época uma cidade com 10 ruas no interior de São Paulo. Filha de um pai boiadeiro e de uma dona de casa, teve uma infância muito pobre e muito reclusa. Ela se via diferente dos demais, meninos, mas não sabia o que era. Aos 7 anos, num jogo de futebol, viu que um rapaz chamou o outro de viado. Dias depois, perguntou ao tio Erasmo o que era. Ele respondeu: “viado é o homem que serve de mulher para outro homem”.

“Fiquei assustada. Pensava comigo: Puxa, gosto de homens, acho tio Erasmo lindo. Fui para casa pensando e entrei direto no porão. Minha mãe tinha uma latinha de formicida. Subi no caixote, peguei a latinha e estava pronta para beber, quando minha mãe entrou e me deu uma cabada de vassoura. Cai desmaiada. Aos sete anos, pensei pela primeira vez em suicídio”, revelou.

Antes da transição de gênero, se apaixonou por um rapaz, Elemir, na adolescência. Um dia, no clube, ele a convidou para ir ao campo de futebol. Teve medo do que poderia acontecer, mas acabou indo. “Fui e ele estava lá. Não teve nem conversa. Ele foi me agarrando e tirado as minhas roupas. De repente, ouvi um barulho e vi mais quatro colegas dele”. Elemir só queria provar para os amigos que Jacqueline “era fresco”

Seu maior medo era que o pai descobrisse. “Parecia que a cidade inteira estava... Joga bosta na Geni. Quando saiu essa música, me lembrou todo o meu passado”. E certo dia a história caiu nos ouvidos do pai, que chegou em casa com um facão na mão. “Ele me jogou no chão, se ajoelhou em cima de mim e disse: ‘É verdade que você é mariquinha? Eu estou com esse facão e não sei por que não te abro agora. Respondi: ‘Abre a minha cabeça, papai. É um favor que o senhor me faz. Foi terrível”.

Mas o pai mandou a mãe arrumar as malas e a expulsou de casa aos 14 anos.

UMA VEDETE

"Cheguei a tomar mais de 2.500 injeções
de hormônios
“No dia seguinte estava chegando a São Paulo. Uma caipirinha do interior, perdida na cidade grande”.Sem um tostão no bolso e com uma dúvida maior ainda: sentia atração por homens, mas não se entendia como homossexual. O que ela queria era ter um par de seios. E chegou a ter. À base de hormônios (chegou a tomar 2.500 injeções, diz).

Foi ser atendente de enfermagem na Santa Casa. E acabou lendo uma matéria na revista Mundo Ilustrado sobre Cristine Jorgensen, a primeira transexual que passou pela CRS. Conversou com um médico, dr. Eduardo, que lhe deu o primeiro vestido. Chorou a noite inteira de emoção, desejo auto transbordamento. E teve muito incentivo de Miss América para se tornar artista.

Trabalhou ao lado de Mara Rúbia, Elvira Pagã, Lima Duarte e Renata Fronzi. Com o tempo, estava cada vez mais feminina. E em 1964, o jornalista José Magalhães publicou uma reportagem na renomada revista "Fatos e Fotos" afirmando que ela havia se submetido ao que chamavam de cirurgia de “mudança de sexo”. A notícia foi mais um escândalo, mas era mentira. Ainda não havia realizado. Ainda.

“Eu sou Jacqueline ousada e atrevida. Registrada na Ordem dos Músicos como atriz e cantora. A mulher que agitou os anos 60, época em que as fotografias eram censuradas e carimbadas para poderem aparecer na porta das casas de espetáculos. Trabalhei em todas as casas de show da cidade de São Paulo e do Brasil. Fui capa de revista, gravei discos. Figura constante nos jornais e revista da época”, se definiu à Fiesta.

UM AMOR DE VERDADE

Antonio e Jacqueline se conheceram em uma boate. E foi amor à primeira vista, que durou 32 anos de uma paixão arrebatadora. Todos estavam contra: a sociedade, a polícia e obviamente a família do noivo. “Meu pai chegou a ir com a polícia no apartamento dela, pressionando para que não nos encontrássemos mais. Meus irmãos diziam que ia matar minha mãe de desgosto”, disse a uma antiga reportagem da Marie Claire. 

Ele afirma que o preconceito foi tão grande que chegaram a combinar um suicídio juntos. “Entramos no meu carro e fomos para a serra de Santos. Havíamos combinado de jogar o carro despenhadeiro abaixo. Fomos até lá, mas acabamos desistindo. Achamos que o melhor era lutarmos pelo nosso amor”.

Antonio afirma que o mais se sentiu atraído em Jacqueline foi a boca, mas que também gostava do cheiro, do jeito, de tudo. “Não conseguíamos ficar um sem o outro. Ela chegou a cancelar temporadas no Rio, a interromper pela metade, porque não conseguia ficar longe de mim”, lembrou.

Viajaram o Brasil todo para espetáculos e tinham uma cumplicidade única – além de “muito amor, e muito, muito sexo”. “Nós passamos por muitos sofrimentos, mas tivemos muita alegria também. Era uma atração louca inexplicável”.


A CIRURGIA NO MARROCOS

Foi esperando por uma vida inteira que Jacqueline foi a Casablanca, Marrocos, em 1969 para realizar a CRS – cirurgia de redesignação sexual (genital). “Gastara o que não podia, destruíra minha infância e parte da minha vida presa dentro de um apartamento. Agora estava naquela sala de operação, esperando que minha vida mudasse em relação ao meu sexo”.

Ela revela que pouco antes da cirurgia sentiu medo e que não conseguia colocar as ideias no lugar. “Quando o anestesista se aproximou com a máscara de oxigênio, senti rolar no meu rosto uma lágrima, que não sabia distinguir se era de alegria ou de medo”. A artista disse que a cirurgia foi bastante dolorosa e que teve um considerado efeito psicológico.

“Todos os dias eu era levada à sala de operação para dilatação do canal vaginal. A dor é tão grande que a gente se morte, se descabela, uiva feito animal. Na colocação do bico-de-pato, a dor é tão horrível que cheguei muitas vezes a me arrepender”. Mas uma coisa estava certa em sua cabeça: ou era isso ou morrer.

VOLTA AO BRASIL

Depois da recuperação, Jacqueline passou por Paris antes de voltar ao Brasil. Havia morrido o Costa e Silva (sétimo presidente brasileiro e segundo do regime militar) e o aeroporto de São Paulo estava cheio de oficiais do Exército. Um deles a reconheceu, disse que ela não poderia andar vestida de mulher e decretou a sua prisão. E já que naquela época a mulheridade estava veiculada ao genital, chamaram uma policial feminina para examinar.

“Ela me levou para uma sala, eu abaixei a calcinha e ela atônica exclamou: “Ai, meu Deus, como fazem a gente passar vergonha”. Ela foi até o guichê da polícia e disse que eu era mulher. O oficial respondeu: como? É homem. A policial feminina: “Não, é mulher. E ficou aquela confusão até que me liberaram”.


Na televisão, o costureiro Clodovil Hernades (1937-2009) teria dito no programa Flávio Cavalcanti que ela não era homem nem mulher. Ela exigiu uma retratação pública do costureiro. Até porque tempos depois ela foi uma das primeiras a conseguir mudar os documentos – depois de muita briga na justiça - com o nome e sexo feminino por meio do advogado Giulio Bartolucci. 

A SEGUNDA PRIMEIRA VEZ

Após o tempo de resguardo da cirurgia, ela conta que a primeira noite de sexo com o marido a deixou com muito medo. “Como seria?” era a sua maior dúvida. “Ele terminou o banho, eu me pus bem provocadora na cama. Diante de mim, com os olhos fixos no meu corpo, ficamos alguns instantes imóveis... Então ele se adiantou num movimento rápido e beijou-me como um apaixonado”, conta.

Jacqueline e o marido
“Apertando levemente meus seios, ele me deixava tonta de prazer. Sua mão foi se colocar entre minhas penas e começou a me acariciar levemente, fazendo-me retornar numa excitação louca. Então, ele pegando minhas pernas e dobrando os joelhos, com o corpo todo em cima de mim, sentia que as pernas tremiam. Eu não sabia que era assim e queria esticá-las. Senti que ele começou a romper minha carne. Só havia aquela deliciosa sensação de estar recebendo dentro de mim pela frente, de saber que nossas bocas se uniam frente a frente. Nossos corpos estavam tão unidos que pulsavam juntos na ânsia do prazer”.

Jacqueline afirma que chegou ao orgasmo duas vezes e que dormiu abraçada ao marido. Mas no outro dia acordou desesperada, com medo de ter comprometido a cirurgia. “Quando me banhei, ainda agachei em cima de um espelho para ver se não tinha estragado nada. Confesso que tinha medo que estragasse alguma coisa, pois tanto era o carinho que eu tinha com essa parte do meu corpo que tanto me custou, e tanto chorei e sofri para consegui-la”.

Para quem insistia que não haveria prazer após a cirurgia, ela rebatia: “Tudo depende da cabeça. Há muitas travestis que vão dizer que transexual não tem orgasmo. Acontece que para mim o pênis não faz qualquer falta. Conheço bem as glândulas que compõem o corpo humano, como a hipófase, sei que além de funções fisiológicas, tem também importante trabalho espiritual. Só digo que haveria mais dignidade se cada pessoa cuidasse bem de si e respeitasse mais os outros”.



REVIRAVOLTA

Depois dos anos de fama, Jacqueline preferiu se resguardar na vida de casada e se tornou – vejam só – além de dona de casa, uma das mais importantes e conceituadas criadoras de cães da raça chiuaua em São Paulo.

“Sempre adorei os animais. Eu vivia em tudo quanto era Feira e Exposição, até que numa das viagens aos Estados Unidos, eu trouxe, dentro do bolso do casaco, seis chiuauas”.

Em sua casa chegou a ter 40 cães, que ela cuidava com carinho e atenção, e que estabelecia um contato excelente com os clientes. Ela alega que procurava passar tudo o que aprendeu sobre os cãezinhos, que considerava dóceis e inteligentes.

“Tenho filhotes na Alemanha, Itália, Bolívia, Estados Unidos, Portugal, em mãos do consul da URSS, na família do General Couto e Silva, Nelson Gonçalves, Biro-Biro, etc”, afirma a artista.

Neste período ela dizia não saber mais o que era preconceito. “Se me botar no meio de 50 mulheres com a minha idade, ninguém vai dizer que fui homem. Em qualquer lugar que eu vá, sou uma senhora”.


O ADEUS DA VEDETE

Em 1992, aos 58 anos, Jacqueline faleceu vítima de infarto. O atestado de óbito lavrado pelo escrivão Francisco Fazion dizia: Jacqueline Galiaci, sexo: feminino”.
Acha que todos nascemos com uma missão para cumprir?
Jaqueline: Acredito que sim. E eu mesma faria tudo de novo. Sou libriana e muito corajosa. Todos devemos ter muita paciência e compreensão nesta vida. Confiar em Deus e no amor. E ter fé e coragem.

Disponível em:  http://www.nlucon.com/2017/03/jacqueline-galiaci-transexual-mulher-cirurgia.html

3 comentários:

  1. Conheci pessoalmente esta artista nos anos 60.Ela havia feito a cirurgia recentemente e estava sofrendo muitas dores.Eu praticava patinação artística.Fui ao apartamento de um amigo dela, costureiro,onde ela estava se restabelecendo,para confeccionar uma fantasia para meu irmão que também pertencia à equipe. Conheci também Miss América, fez minha primeira fantasia. Buscando, encontrei o site de vcs. Adorei! Histórias q fazem parte da minha história. Carmen Lúcia, hoje com 70 anos. Abração

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  2. Olá! Tudo bem? Pode entrar em contato comigo no email jmbonassa@gmail.com?

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  3. Li essa reportagem na edição da revista Marie Claire de 1993, durante a edição da reportagem ela faleceu e deixou os manuscritos de memórias que pretendia lançar um livro

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