Recém derrotado na corrida
para uma vaga no STF, não querendo sair da mídia e procurando demonstrar
que ainda possui alguma relevância para a lógica golpista instalada no
país, no mesmo dia em que seu algoz Alexandre de Moraes está sendo
sabatinado no Senado, o Ministro Ives Gandra Martins Filho publicou um artigo defendendo as reformas trabalhista e previdenciária propostas pelo (des)governo.
Para
sermos muito honestos, devemos confessar que lemos o artigo em questão
com muita preguiça, pois já sabíamos, de antemão, o que seria dito pelo
Ministro, afinal o seu discurso, envolto em “modernidade”, é o mesmo que
vem expressando desde a década de 90, já reproduzido inúmeras vezes
pelos veículos de grande circulação.
Trata-se
do mesmo discurso que vem servindo, desde sempre, para justificar
falsos enfrentamentos de crises econômicas, que, quando realmente
existentes, são cíclicas e que acompanham a história do capital desde a
sua gênese. É interessante verificar que a palavra crise está presente
em todas as falas que tentam justificar o sacrifício alheio desde quando
se tentava abolir a escravidão no Brasil.
Como
resultado de inversão maliciosa ou irresponsável dos fatos e da própria
funcionalidade real dos institutos, o Direito do Trabalho já foi
inúmeras vezes acusado de culpado pelo desemprego e pelo insucesso
econômico das empresas, quando, concretamente, são as normas
trabalhistas que estruturam e permitem o funcionamento do capitalismo.
O
discurso cansativo, monótono, pouco criativo e sem qualquer fundamento,
segundo o qual os direitos trabalhistas, por meio de uma jurisprudência
protetiva, ao avançarem demais provocaram o desemprego, não se sustenta
sequer pela análise da própria jurisprudência afrontada pelo Ministro
Ives em seu artigo, afinal, a jurisprudência trabalhista tem sido – com
honrosas e não raras exceções – uma das principais vias pelas quais
questões como o negociado sobre o legislado e a terceirização sem peias
tem se tornado a realidade cotidiana de muitos trabalhadores. Basta
pensarmos nas Súmulas 331 e 444 do TST.
É
claro que o Ministro sabe, como sabemos todos, que a Justiça do
Trabalho, embora contribua para uma flexibilização destrutiva, tem
sabido impor limites importantes ao avanço de falsas negociações que
implicam mera renúncia à ordem constitucional vigente.
E
é por isso que muitos, capitaneados pelo Ministro Ives, insistem em
reproduzir a velha cantilena, no sentido de dizer que ao se rejeitar a
validade de cláusulas de negociações coletivas, acaba-se gerando
insegurança para as empresas, o que lhes autorizaria a concluir que é
preciso promover uma reforma trabalhista que privilegie a negociação
coletiva e que imponha a solução dos conflitos por meio da arbitragem.
Esquecem-se,
propositadamente, que negociação coletiva é expressão equivocada,
plasmada na realidade de um contexto de flexibilização que não se
coaduna com a própria razão de ser das normas construídas coletivamente.
Os trabalhadores se reúnem em sindicatos e pressionam o capital para
obter melhorias em sua condição social. E o fazem não apenas porque é
essa a história da luta de classes e da própria construção coletiva do
Direito do Trabalho, mas também porque foi essa a alternativa que lhes
foi concebida como parâmetro de convivência.
O
discurso de que é preciso dar autonomia às negociações para que, por
meio delas, os trabalhadores possam aceitar piores condições de trabalho
do que aquelas já conquistadas no processo histórico que precede a
elaboração das leis, está completamente fora dos parâmetros jurídicos
trabalhistas, representando, até mesmo, uma ofensa direta à Constituição
e, claro, aos trabalhadores propriamente ditos.
O
que está dito, expressamente, na Constituição, afinal, é que os
direitos trabalhistas servem à “melhoria da condição social dos
trabalhadores”.
Então,
os direitos trabalhistas precisam, concretamente, avançar e não
retroceder. Além disso, qualquer direcionamento econômico deve respeitar
os “ditames da justiça social”, diz o artigo 170 da mesma Constituição e
a livre iniciativa está vinculada a um valor social (art. 1º. IV),
assim como a propriedade possui uma função social (art. 5º, XXIII).
E,
de fato, a jurisprudência citada pelo Ministro não criou direitos,
apenas impediu que direitos dos trabalhadores fossem negados por
práticas administrativas empresariais, o mesmo se dando com as
invalidações de normas coletivas, afinal, autonomia negocial não é
fundamento para se negarem os parâmetros mínimos da proteção jurídica
social, até porque a proteção não diz respeito aos interesses exclusivos
dos trabalhadores e sim ao modelo de produção capitalista em geral, o
qual requer padrões de concorrência, com limites mínimos de exploração
do trabalho, para que não acelere sua lógica autofágica.
Ora,
se um grande conglomerado econômico, com milhares de empregados,
pudesse usar sua força para coagir, por meio da ameaça de desemprego em
massa, os representantes sindicais para aceitarem condições de trabalho
abaixo do padrão mínimo legal, o efeito negativo dessa situação não
atingiria apenas os trabalhadores, mas a todas as demais empresas que,
sem a mesma força coativa, não conseguiriam chegar ao mesmo patamar de
exploração do trabalho. Essa possibilidade favoreceria os grandes
conglomerados econômicos, providos pelo capital estrangeiro, e
promoveria uma piora na já combalida distribuição da renda produzida,
tudo em detrimento de empresas e empregos, e, claro, com o consequente
aumento do sofrimento cotidiano dos trabalhadores.
O
que o Ministro quer, portanto, é que o grande capital possa fazer o que
quiser com a classe trabalhadora, ainda mais em uma realidade jurídica
que nunca garantiu aos trabalhadores um efetivo direito de greve.
Aliás,
é bastante interessante notar que dentre as diversas propostas
realizadas, que são postas a partir da essencialidade da negociação
coletiva, nada se fala em garantir aos trabalhadores todos os meios
necessários para que exerçam o direito constitucional de greve,
permitindo-lhes, pois, a ocupação, o piquete e não lhes recusando o
recebimento do salário no período da greve.
Nenhum
dos defensores dessa famigerada reforma trabalhista dedica uma linha
sequer ao tema da garantia contra a despedida arbitrária, prevista
constitucionalmente, mas que nunca chegou a ser aplicada, deixando os
trabalhadores em estado de extrema vulnerabilidade. A ADI 1625, na qual,
há décadas, se discute a constitucionalidade da denúncia da Convenção
158 da OIT, ainda não foi definitivamente apreciada e o pior é que o STF
tende a declarar válida a denúncia até a data em que for proferido o
julgamento.
De fato, falta sinceridade nas propostas de “reformas trabalhistas”.
Muito
se fala em efetivação da negociação coletiva, mas nada se fala em
garantir aos trabalhadores o direito de greve, com o alcance expresso na
Constituição Federal (art. 9º). Os argumentos da liberdade e da
modernidade se encerram quando os trabalhadores, para se inserirem com
paridade mínima na negociação, organizam-se coletivamente e realizam uma
greve. Aí só são lembrados, pelos defensores da ampliação da
negociação, os pretensos direitos dos fura-greves e a necessidade de
garantir o regular funcionamento das empresas.
Ora,
se a ideia é fortalecer os sindicatos, comecemos por evitar decisões
como a do Ministro Dias Toffoli, que negou o direito de greve a
servidores públicos. Além disso, é imperioso impedir o uso de força
policial contra grevistas; superar concretamente a discussão sobre a
possibilidade de desconto dos dias parados; e, evidentemente, tratar com
seriedade as questões do dever de motivação e da necessidade de
garantias efetivas contra a perda do emprego.
Apenas
desse modo se poderá atingir o ideal imaginado, pressuposto da
negociação, de sindicatos com força política e social para pressionar o
capital e, com verdadeira autonomia, entabular condições de trabalho que
proporcionem melhoria das condições sociais aos trabalhadores.
Até
lá, invocar a autonomia da vontade coletiva ou a necessidade de um
“Estado menor” é debochar dos milhões de trabalhadores brasileiros, que
conhecem bem as dificuldades que enfrentam para, individual ou
coletivamente, fazer valer qualquer um dos direitos trabalhistas que
lhes estão garantidos pela ordem jurídica vigente.
O
Ministro Ives, defendendo o Estado mínimo, deixa de falar, em sua
análise, da ação historicamente protecionista da Justiça do Trabalho
frente às empresas para impedir os trabalhadores de realizarem greves,
sem a interferência do Estado. Para conter e reprimir os trabalhadores,
na visão empresarial, representada na fala de Ives, não tem essa de
“Estado menor”; é de Estado forte, policial e interventor que se valem.
E
a prática da atuação jurisdicional em diversos outros temas, bem ao
contrário da retórica de Ives, tem sido bastante limitadora dos direitos
trabalhistas e, com isso, o que se tem proporcionado é o aumento da má
distribuição de renda do país.
O
Ministro, que é Presidente do TST, mas que nunca fez uma audiência
trabalhista na vida, demonstrando, pois, que não tem o menor
conhecimento do que efetivamente se passa na Justiça do Trabalho de
primeiro grau, considera que pode fazer análises tomando em consideração
as dores dos empresários, mas o cotidiano das reclamações trabalhistas é
de: horas extras não pagas, muitas vezes com cartões de ponto
fraudulentos; assédio moral estrutural potencializado pela cobrança de
metas e pelo pagamento de salário por produção; de trabalhadores sem
registro em carteira; de pagamento de salários “por fora”; de
trabalhadores dispensados sem o recebimento de verbas resilitórias; de
terceirizados que sofrem todo o tipo de agressão a seus direitos, que já
são bastante reduzidos; de uma multidão de mutilados na guerra do
processo produtivo desregrado, que se desenvolve sem qualquer
fiscalização do Ministério do Trabalho; dos calotes praticados de forma
assumida e autorizados pela Justiça nas recuperações judiciais; da
proliferação de acordos, com cláusula de quitação do extinto contrato de
trabalho, que representam autênticas renúncias a direitos e que acabam
incentivando a reprodução das reiteradas agressões de direitos
trabalhistas.
A
realidade nacional, vinda desde os primórdios da República, sem falar, é
claro, dos 388 anos de escravidão, é a do intenso sofrimento da classe
trabalhadora, dentro de um contexto de uma ordem jurídica trabalhista
que jamais foi aplicada concretamente e que vem se decompondo desde
1965, com a criação sucessiva de diversos mecanismos de retração de
direitos, sempre sob o mesmo argumento da necessidade de se reformar uma
ordem jurídica anacrônica, para favorecer a “saúde das empresas” e
“aumentar o nível do emprego”.
Dentro
desse contexto, vem o Ministro Ives, parecendo que chegou de Marte,
para dizer que a culpa dos problemas sociais e econômicos do país é dos
reclamantes, que vão à Justiça pleitear seus direitos, dos advogados que
formulam judicialmente essa pretensão, e de juízes do trabalho, que a
acolhe!
A solução,
apresentada por Ives sob o manto do espírito cristão, seria acabar com
tudo isso e deixar que as empresas, com seu poder, decidam como querem
explorar os trabalhadores, desprezando o dado de que elas próprias se
encontram submetidas à lógica do capital.
O
Brasil para o qual Ives, Temer, Ronaldo Nogueira, Rogério Marinho e
tantos outros propõem o retorno ao século XIX, à livre negociação entre
capital e trabalho, é o país que, em 15 de dezembro de 2016, foi
condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), por “não
garantir a proteção de 85 trabalhadores submetidos à escravidão
contemporânea e ao tráfico de pessoas, além de não ter assegurado a
realização de justiça também para outros 43 trabalhadores resgatados
desta mesma condição”.
É
o país em que a maioria absoluta das demandas trabalhistas versa sobre
rescisão não paga. É o país em que cerca de 554 mil crianças, entre 5 a
13 anos, estavam trabalhando, em 2014, segundo o PNAD.
É,
por fim, o país em que a negociação coletiva é quase sempre uma farsa,
uma autorização para a negação de direitos constitucionalmente
assegurados.
Não é
um acaso, portanto, que essas normas sejam trazidas aos autos, no mais
das vezes, pelas empresas, e não mais pelos empregados para sustentar
suas pretensões.
Enquanto
os empregados recorrem à Justiça do Trabalho para receber salários ou
ter garantida a jornada constitucionalmente assegurada, os empregadores
invocam em seu favor normas coletivas que regulam “banco de horas”,
supressão de horas in itinere, redução de intervalo, além de outras
ilegalidades, sendo que, na maioria das vezes, conforme se verificam nos
processos judiciais, mesmo as normas coletivas, restritivas de
direitos, não são respeitadas.
Segundo
pesquisa realizada pelo DIEESE, publicada em maio de 2015, com o título
“A saúde do trabalhador no processo de negociação coletiva no Brasil”,
muitas cláusulas dos acordos e convenções coletivas apenas reproduzem o
que está previsto em lei. Há poucos avanços e, ainda assim, as poucas
conquistas não são observadas na prática das relações de trabalho. O
estudo evidencia que a negociação coletiva é uma “ferramenta de
intervenção, com o potencial de obter avanços significativos”, mas
apenas se: a) os sindicatos tiverem poder de pressão para fazerem
aprovar normas efetivas de melhoria das condições de trabalho e b) o
Estado garantir sua ampla aplicação.
Nenhuma dessas condições existe no Brasil.
A
notícia fresca de hoje, 21/02/17, é a de que 7 milhões de trabalhadores
foram vítimas de calote de empresas quanto ao recolhimento do seu FGTS.
De que país nos está falando o Ministro Ives, então?
Aliás,
vale ressaltar a contradição insuperável do Ministro de vir a público
repetir a batida versão de que a CLT, de 1943, é anacrônica e, ao mesmo
tempo, invocar, como parâmetro de modernidade, o texto da Encíclica Rerum Novarum,
de 1891, esquecendo-se, ainda, de que ambos os documentos em questão
partem do mesmo pressuposto de que a proteção social é medida de
contenção necessária à exploração do trabalho pelo capital.
O
Ministro Ives expressa, ainda, o argumento ilusionista de que com a
queda do muro de Berlim terminou a luta de classes, como se a paz e a
harmonia sociais tivessem nascido magicamente naquele mesmo instante,
desconsiderando, por completo, a realidade das relações de trabalho que
todos os dias bate a porta da Justiça do Trabalho.
Todos
esses falaciosos e antigos argumentos, já superados pela experiência
histórica, representam uma apologia ao descumprimento dos compromissos
firmados na formação do Estado Social Democrático, que foram, inclusive,
assumidos por nossa Constituição Federal, e, mesmo sem a pretensão de
fazê-lo, acabam reforçando as lógicas escravistas que insistem em
assombrar a realidade das relações de trabalho no Brasil, constituindo,
pois, uma aposta na barbárie. Estão, portanto, muito distantes do
princípio básico cristão, de tratar a todos, sem distinção, como irmãos,
uma vez que meramente alimentam a visualização econômica imediatista de
que os trabalhadores não são nada além do que força de trabalho a
serviço do capital.
Valdete Souto Severo
é Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP. Pesquisadora do Grupo de
Pesquisa Trabalho e Capital (USP) e RENAPEDTS – Rede Nacional de
Pesquisa e Estudos em Direito do Trabalho e Previdência Social.
Professora, Coordenadora e Diretora da FEMARGS – Fundação Escola da
Magistratura do Trabalho do RS. Juíza do trabalho no Tribunal Regional
do Trabalho da Quarta Região.
Jorge Luiz Souto Maior é jurista e professor livre docente de direito do trabalho brasileiro na USP. É juiz titular na 3ª Vara do Trabalho de Jundiaí.
Disponível em: http://justificando.cartacapital.com.br/2017/02/21/mais-uma-vez-ives-gandra-filho-rifa-direitos-fundamentais-alheios-e-justica-do-trabalho
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