quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

EIS A BOA NOVA: A VIOLAÇÃO DA DIGNIDADE NÃO DEVE SER RESSARCIDA

Eis a boa nova: a violação da dignidade não deve ser ressarcida 

I. Delimitação do tema

Espalhou-se para todo o Brasil a decisão do Supremo Tribunal Federal, por meio do RE 580.252-MS (relatoria do então Ministro Teori Zavascki, tema 365 da RG), de estabelecer responsabilização civil do Estado em virtude das condições precárias e degradantes do sistema prisional. A tese firmada, para fins de repercussão geral, foi a seguinte:
Considerando que é dever do Estado, imposto pelo sistema normativo, manter em seus presídios os padrões mínimos de humanidade previstos no ordenamento jurídico, é de sua responsabilidade, nos termos do artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição, a obrigação de ressarcir os danos, inclusive morais, comprovadamente causados aos detentos em decorrência da falta ou insuficiência das condições legais de encarceramento.
Muitas manifestações em contrário surgiram, até com possíveis “ampliações” (ou “extrapolações”) da tese. Na verdade, boa parte delas já tem amparo dogmático e legal suficiente, de modo que a analogia e comparação são despropositadas.
Adianto que, em virtude da não publicação do acórdão até a data de publicação deste texto, minhas análises não são do caso julgado pelo STF, mas de um caso fictício e genérico de um indivíduo privado de sua liberdade, sem maiores detalhes. Sei do problema de transcender o caso concreto julgado para uma tese, como se tentando capturar a “essência” dele.
Assim, explico que minha análise está voltada a responder à pergunta a seguir: há justa causa para que o Estado seja responsabilizado civilmente o indivíduo privado de liberdade em virtude de danos ocorridos a este, dentro do sistema prisional, sob a custódia direta do Estado, sejam eles de quaisquer espécie, de forma objetiva? E quais são os limites desta análise? Esse é o objeto estrito do texto.

II. A responsabilidade civil do Estado

É noção elementar de que a responsabilidade civil do Estado é objetiva, nos termos do art. 37, §6º, da Carta da República. Há algumas exceções que a doutrina menciona, mas não é o caso de discuti-las no momento. Dessarte, a responsabilidade do Estado está de acordo com a teoria do risco administrativo (cf., para maiores explicações, Sérgio Cavalieri Filho, “Programa de responsabilidade civil”, cap. IX, n. 74.1).
Na espécie, temos a responsabilidade por uma omissão específica. “[…] a omissão específica pressupõe um dever especial de agir do Estado, que, se assim não o faz, a omissão é causa direta e imediata de não se impedir o resultado.” (idem, n. 74.5, negritos do autor)
Muito bem, a omissão específica do Estado faz surgir sua responsabilidade objetiva, nos termos do art. 37, §6º, da CF/88. Entretanto, não é o único elemento da responsabilidade civil.
Não sem razão, o art. 186 do CC/02 é útil para a análise: “Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”
Em negrito, temos a necessidade de um fato (seja ele comissivo ou omissivo). Grifado em itálico, temos a necessidade de culpa genérica (dolo ou culpa stricto sensu), que não é aplicável ao caso em comento. Por último, sublinhado, a necessidade de haver dano, mesmo que exclusivamente moral.
A relação de causa e efeito entre o fato e o dano causado, embora não explícita, também é elemento: chama-se nexo causal.
Existem inúmeras teorias acerca do tema, levando, efetivamente, a uma flexibilização do nexo causal (cf., por todos, Anderson Schreiber,Novos paradigmas da responsabilidade civil, cap. 2). Não posso retomá-las de forma alongada, em virtude do espaço.
Irei adotar, como paradigma, a chamada teoria do dano direto e imediato (e não atecnias dela e confusões denunciadas por Anderson Schreiber).
Não é possível afirmar que a pessoa diretamente responsável pela guarda de outrem, de forma especificada e determinada, não seja responsável caso não cumpra com as funções estabelecidas nem mesmo por via de contrato, mas por ex lege! Não se pode fazer tabula rasa da LEP.
Caracterizado, pois, o elemento nexo causal.
A própria ideia (criticável, claro) de se ter entendido haver um “Estado de Coisas Inconstitucional” no sistema prisional, no âmbito da ADPF 347 MC/DF, relatoria do Ministro Marco Aurélio, indica uma série de problemas na questão carcerária. O Estado, com efeito, endossa verdadeiras masmorras. Trata-se da contradição entre os discursos e as funções verdadeiramente exercidas no âmbito penal (por todos, cf. Vera Regina Pereira de Andrade, “A ilusão de segurança jurídica”).
Há um descumprimento generalizado do ordenamento jurídico pátrio. E este ordenamento impõe regras especificadas (vide a LEP), de modo que a omissão do Estado (ou mesmo eventuais ações que denigrem e ofendem um preso) são, de fato, omissões específicas, ensejando a responsabilidade objetiva.
Resta evidenciado o elemento fato.
Pois bem, o dano material e o dano moral possuem definições específicas. Não se pode pretender definir, atecnicamente, dano moral como a dor, vergonha e vexame. Trata-se de uma conceituação subjetiv(ist)a, que amplia demasiada e atecnicamente os danos.
O dano material pode ser definido como perda patrimonial. O CC/02, no art. 402, menciona suas modalidades.
Já o dano moral, resume Cavalieri Filho, seria, em definição abrangente, após longa discussão sobre o conceito, “uma agressão a um bem ou atributo da personalidade” (ob. cit., cap. IV, n. 19).
Considerando que integridade física, psíquica, bem como intimidade, privacidade, além do direito fundamental que tem de ver respeitadas as leis (afinal, esse é o preço que se paga por vivermos num Estado de Direito), parece inegável a existência de dano moral, ao menos em tese.
Em havendo dano material, deverá o Estado ressarcir. Naturalmente. Mas isso não vem ao caso agora.
Elemento dano existente.
Saliente-se: isso não significa que toda prisão seja indenizável. Até porque, muito embora se trate de um direito/dever do Estado o de fazer valer a lei penal, porquanto tem o monopólio da violência e o jus puniendi, não pode fazê-lo de maneira arbitrária e ilegal.
Nem mesmo os particulares podem exercer seus direitos livremente. Há, por exemplo, a vedação ao exercício abusivo de direito no art. 187 do CC/02.
Com base nisso, pode-se perceber que a atuação do Estado no direito de punir pode ser visto a partir de duas perspectivas. A primeira, enquanto ato ilícito genérico, isto é, está se omitindo naquilo que não deveria se omitir, causando dano a outrem, e há uma relação causal no feito. Por outro lado, o Estado abusa de seu direito de punir, ultrapassando os limites da razoabilidade e da legalidade.
Em ambos os casos, deve-se indenizar danos oriundos de tais condutas, comissivas ou omissivas. Não é possível negar isso em virtude de uma condição distinta, qual seja, a de preso. O tratamento jurídico não pode ser permeado por (des)valorações de diferentes categorias de seres humanos, portadores de personalidade e em pleno gozo de seus direitos.
Afinal, a própria Constituição veda tratamento desumano ou degradante (art. 5º, III). E não se queira afirmar que isso só vale pra quem não está preso! Cria-se diferenciação, de alta envergadura, que a Constituição não faz (e veda).
Surpreende-me, assim, a defesa de alguns no sentido de não ser cabível a indenização. Ora, por que não seria? Satisfeitos os critérios legais de responsabilidade civil, o preso (como qualquer outra pessoa) tem direito fundamental à indenização (art. 5º, X)!

III. Da “ampliação” (ou “extrapolação”) da tese

Vi algumas pessoas propondo uma “ampliação” da tese. Por exemplo, em virtude da longa espera em alguns locais para atendimento ou solução de problemas. Ora, teoria da perda do tempo útil! Temos até uma decisão do STJ, veja-se o REsp 725.701.
Ônibus superlotado ou em condições desagradáveis. Por que não indenizar? Não vejo óbice a priori. Basta que se ajuize a ação, talvez até uma ação de cunho coletivo. Nada impede.
Reparação de dano oriundo da falta de segurança, por último. Admito, este é problemático. Não se trata de resultado direto e imediato da omissão estatal, enquanto a conspurcação da dignidade do preso é, uma vez que este está sob a guarda direta, específica(da), individualizada do Estado. Talvez, se se tratar de uma omissão de um agente do Estado numa situação particular, é possível trazer à responsabilidade objetiva com o liame causal bem definido.
Se as políticas públicas não funcionam, é preciso, também, assumir o nosso papel na situação atual. Admitir que o voto deve ser valorizado, em vez de querer que o Judiciário tudo resolva, ao arrepio da lei. A função do Judiciário é dar cumprimento ao ordenamento jurídico, ainda que a maioria não queira. O espaço para as maiorias vem das urnas. O Direito é um esforço da razão, não se submete ao comando assistemático de uma maioria – e nem o de uma minoria. Apenas e tão somente ao comando da razão insculpida nas normas.
A política pública é o espaço adequado da segurança pública. O Executivo é. E não o Judiciário.
Como diz o Ministro Marco Aurélio, os poderes da República são o Legislativo, o Executivo e o Judiciário e não o contrário.
Concluo dizendo que me parece acertada a tese pela qual há responsabilização civil do Estado pela mácula da dignidade do preso sob sua custódia (que é direta, constante e imediata – saliente-se novamente), seja por más condições ou instâncias específicas de dano moral.
Entender diferentemente vai, a meu entender, no sentido contrário de toda a dogmática existente acerca da responsabilidade civil, já bem sedimentada no Direito brasileiro, apenas para satisfazer um sentimento popular, independentemente de ser ele justificado ou não (a meu ver, não é), substituindo o ordenamento por juízos políticos e morais de ocasião.
O problema que se segue é o do quantum. Mas esse problema do valor do dano moral (não só nesse caso) requer um estudo diferente, longe dos delírios de uma suposta indústria do dano moral rondando o imaginário jurídico de Pindorama.
Se ainda existir dignidade humana no futuro, falarei sobre isso.

Saulo Gonçalo Brasileiro é estudante da Faculdade de Direito do Recife (UFPE).

Disponível em:  http://justificando.cartacapital.com.br/2017/02/20/eis-boa-nova-violacao-da-dignidade-nao-deve-ser-ressarcida/ 

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