Sei que tenho que falar de aroma nesta coluna porque a Vertigem me contratou para isso, afinal, sou especialista em aromas e sofro de sinestesia olfativa, mas, antes disso, sou historiadora, mulher e de pele branca, e este texto surgiu da discussão em um grupo de bolsistas pós-graduandos no Facebook. Infelizmente, o que li lá é o corriqueiro nos comments em sites do grande público, mas é inadmissível que comentários desse naipe ocorram em grupos de acadêmicos e cientistas. Sim, o racismo está ali, bem naquela nata que recebe bolsa e que, dizem por aí, seria a tal “elite pensante do país”.
Fiz uma simples pergunta sobre como continuariam as bolsas agora, que o vice-presidente tomou o poder, e o que achavam, não só da continuidade das mesmas, como também, intrinsicamente, do nosso futuro como pesquisadores, já que Temer pretende, por exemplo, colocar um bispo como ministro da Ciência e Tecnologia. Logo a ciência, que precisa da laicidade para manter-se.
Vai e vem comentário, todos muito políticos, cada um com suas opiniões, até que surge o já tão esperado comentário racista! Ele sempre chega e, depois de apontado, é minimizado, ou com uma resposta de “racismo reverso’’, ou com um “vocês são chatos’’, ou com um “é só a cor da pele’’. Notem, se esses comentários fossem dos fãs do Bolsonaro, eu não ficaria surpresa, mas eles saíram de bolsistas que frequentam mestrados e doutorados de universidades federais do país.
Eu posso esperar que o Brasil seja um país ético, democrático e estabilizado socialmente? Os bolsistas que teceram os comentários racistas, claramente apresentam, de todos, o preconceito mais difícil de se lidar: o dissimulado. Há o racismo declarado e o dissimilado, estou desenhando! O dissimulador é racista, mas não admite que é, afinal, ele “até tem amigos negros”. Mas está nas entrelinhas, no deboche e ironia com que trata o tema, e, quando vê que aquilo pode dar em processo, ele diz que era brincadeira, que foi mal interpretado e que você é que não entendeu. Não vou descrever aqui o que é “racismo reverso”, porque há textos perfeitos em sites maravilhosos, escritos por negros, explicando de forma cuidadosa o que isso significa.
Creio também que quem escreve em um grupo próprio de bolsistas “desculpa, sou elite branca opressora’’ não precisaria ter bolsa, certo? E as cotas para negros? Será que eles aceitam? Eu não tive coragem de perguntar. Chega uma hora em que o cansaço bate na gente, cansa ouvir que “negro é vitimista’’, que “ter orgulho de ser negro pode, mas falar que é branca não pode’’ (sentiram o Bolsonaro aí?). Aí eu canso, mas eu, como branca, posso me dar ao luxo de cansar-me e retirar-me, o negro, não! O negro vai ter que lutar até o fim dessa dissimulação toda, dessa ironia, desse deboche mesquinho e miserável.
Eu, que sou branca, que sou uma privilegiada por poder me cansar, por receber os sorrisos dos seguranças das lojas, a cordialidade do PM na rua, eu, que sou branca, que sou mimada e só entendi que tais mimos sociais eram privilégios quando comecei a observar o tratamento dado às minhas amigas negras, eu, que nunca sou travada na porta de um banco, que nunca fui confrontada pelo estilo do meu cabelo, que nunca fui olhada com nojo e para quem, em 33 anos de vida, nenhum táxi negou-se a parar, eu seria um ser deplorável se ousasse falar de vitimismo negro.
E, já que eu tenho que falar sobre aromas aqui, quero te convidar a sentir o cheiro do seu racismo: imagine-se agora, nu, completamente nu, seu suor e seu sangue se misturam, sua urina e suas fezes ainda estão no seu corpo, você não tem como se limpar, porque está amarrado em um tronco no sol a pino. Se você é mulher, está grávida. Seus outros filhos olham, horrorizados, a mãe ser torturada (isso se seus filhos estão com você e não foram vendidos para um outro dono). Você começa a ser açoitado (talvez porque, sem querer, teve a ousadia de olhar nos olhos de um branco), o cheiro da sua pele começa a subir, você grita de dor, chora pela humilhação, o aroma do seu sangue, por alguns minutos, vira nota principal, você está em carne-viva. E se você é mulher, após o seu corpo semimorto ser retirado do tronco, ainda é estuprada por dois, três, seis homens. Tudo o que você deseja é morrer, para sair desse inferno, mas não pode, porque, em alguns minutos, será açoitado, novamente, para trabalhar, não por oito horas, mas até você cair. Misture urina, fezes, sangue, trabalho forçado, violação do seu corpo, da sua dignidade, humilhação e tudo que eu não consigo mais pensar de degradante, e sinta o cheiro! Imaginou? Esse é o cheiro do seu racismo, toda vez que você abre a boca para dizer que preto é vitimista. Você chora por muito menos, chora porque o dólar está a quatro reais e não pode mais ir comprar as suas muambas em Miami. Você chora por tão pouco diante do que foi a escravidão que seria cômico se não fosse trágico. Quer um biscoito?
A escravidão acabou! Será? Por que as comunidades têm mais moradores pretos que brancos? Por que a maioria dos bolsistas de pós-graduação nas federais é branca? Por que a juventude assassinada no Brasil, em grande maioria, é negra? Por que as mulheres que mais morrem em partos e em abortos clandestinos são negras? Por que o feminicídio é maior para as negras? Por que há mais negros do que brancos no sistema carcerário? Olha, se você não consegue concatenar as respostas para todas essas perguntas com a escravidão, precisar voltar para a escola correndo. Por que bolsistas fazem piada com racismo em suas páginas e ninguém se manifesta? Só eu? Talvez seja expulsa de lá por causa desse texto! #somostodosracistas? Somos todos dissimulados?
Eu quero mais cota para negro, sim, eu quero ver negro no doutorado, sim, porque história atual do país está aí para mostrar que todo esse pensamento retrógrado vem dando substrato para essa gente racista (homofóbica, misógina) falar e fazer o que deseja e sair impune. Todos os bolsistas são assim? É lógico que não, mas tem sempre aquele 1%, infelizmente, creio que seja mais que 1%. Incomoda-me saber que em breve, racistas sentarão em importantes cadeiras, mantendo esse rastro de cheiro pútrido que é o preconceito. Elite pensante de quem, cara pálida?
Palmira Margarida é historiadora e pesquisa a história dos cheiros, é a pisciana mais ariana de que se tem conhecimento. Descende de italianos e adora uma massa, mas fala sem gesticular. Ama viajar e captar os aromas das trilhas, das culturas e das ideias. Está em busca do profundo perfume do Ser. Escreve neste espaço às quintas-feiras. Para saber mais sobre atendimentos e produtos com aromas naturais: palmira.margarida@revistavertigem.com
Imagem: ‘Todos negros’, de Luiz Morier, 1983. Quando a equipe de um jornal chegou em uma blitz da PM na estrada Grajaú-Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, se deparou com seis moradores negros de uma comunidade que foram presos e amarrados pelo pescoço como nos tempos de escravidão.
Disponível em: http://www.revistavertigem.com/artigo/qual-e-o-cheiro-do-seu-racismo/
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