quinta-feira, 4 de agosto de 2016

GENTE CONFUSA, FAZENDO CONFUSÃO...


Lucas 12,13-21
“Um homem que estava no meio da multidão disse a Jesus:— Mestre, mande o meu irmão repartir comigo a herança que o nosso pai nos deixou. Jesus disse: — Homem, quem me deu o direito de julgar ou de repartir propriedades entre vocês? E continuou, dizendo a todos: — Prestem atenção! Tenham cuidado com todo tipo de avareza porque a verdadeira vida de uma pessoa não depende das coisas que ela tem, mesmo que sejam muitas. Então Jesus contou a seguinte parábola: — As terras de um homem rico deram uma grande colheita. Então ele começou a pensar: “Eu não tenho lugar para guardar toda esta colheita. O que é que vou fazer? Ah! Já sei! — disse para si mesmo. — Vou derrubar os meus depósitos de cereais e construir outros maiores ainda. Neles guardarei todas as minhas colheitas junto com tudo o que tenho. Então direi a mim mesmo: ‘Homem feliz! Você tem tudo de bom que precisa para muitos anos. Agora descanse, coma, beba e alegre-se’”. Mas Deus lhe disse: “Seu tolo! Esta noite você vai morrer; aí quem ficará com tudo o que você guardou?” Jesus concluiu: — Isso é o que acontece com aqueles que juntam riquezas para si mesmos, mas para Deus não são ricos”.

É surpreendente como ao longo dos anos e no contexto de novas experiências as diversas pasagens do Evangelho vão revelando novos conteúdos e perspectivas. É muito possível que aquilo que estou escutando ou lendo hoje neste texto do Evangelho de Lucas tem muito que ver com o caminhar junto a grupos e pessoas em situação de vulnerabilidade e exclusão social. O problema básico neste diálogo é um problema hermenêutico, uma expectativa equivocada sobre a ação de Jesus de Nazaré e não conseguir fazer claras distinções de planos, além de pretender que deus resolva os problemas que nós mesmos criamos. 
Assim como na mentalidade dos religiosos do tempo de Jesus existia uma compreensão da Lei Mosaica que abarcava sem distinguir temas tão diferentes como a legislação criminal, civil, eclesiástica e a lei moral, se esperava que todo mestre da lei fosse um erudito em todas essas áreas. Ainda hoje existe a mesma confusão sobre a Pessoa de Jesus, o Cristo de Deus, e alguns religiosos gostam de mostrar que são o “sabe tudo”, se metendo e impondo sua opinião em todos os temas. É a confusão daquilo que chamamos de o Reino de Deus e o Reino Secular. Isto é, mesclar e confundir aquilo que faz à essência e núcleo do Reino de Deus, que se modela de acordo à revelação tal como se manifesta no Evangelho de Jesus Cristo, e cujo núcleo é a proclamação das promessas de vida eterna, e confundir o Reino Secular, laico, onde se aplicam em amor que busca a justiça os critérios básicos da Revelação. Este é o Reino da Lei que necessita permanentemente ser adaptada às circunstancias variáveis que exigem agir com esse amor que busca a justiça para todas as pessoas criadas sem distinção na imagem de Deus. Neste espaço tudo se rege pela razão e a razoabilidade. Este não é o lugar do essencialismo, mas sim o lugar de construtivismo, isto é, iluminados pelas afirmações essenciais da revelação de dignidade, justiça, reconciliação, perdão e novas oportunidades para todos e todas, permanentemente estamos modificando critérios que até ontem pareciam adequados, porém que hoje não respondem às novas situações e as novas perspectivas em que vive nossa sociedade e nossa própria Igreja. 


É, portanto, inaceitável que alguma pessoa ou grupo, como a famigerada “bancada evangélica” queiram impor o Levítico, como norma para a sociedade brasileira, ou que o Estado privilegie alguma religião e que a legitimidade do Estado laico seja ameaçada por princípios religiosos que não sejam seguidos por todos os cidadãos.
Neste texto encontramos uma confusão com respeito à relação entre o Evangelho das promessas e as realidades ou ordenamentos deste mundo. Aquilo que está em questão é conhecer a forma em que devemos viver nesta realidade cotidiana aquelas e aqueles que queremos construir o Reino de Deus aqui e agora. 
Deus, tal como o revela nosso Senhor Jesus Cristo, age em ambos os espaço porque age como o criador que sustenta e cuida Sua criação e como Redentor que manifesta Seu amor de inclusividade gratuita. Se não conseguirmos uma clara distinção entre a vida de fé, a vida religiosa e o Estado laico, estaremos comprometendo o Evangelho, pois correremos o grave risco de confundir a graça com a justiça pelas obras e pensaremos, em nosso orgulho religioso, que a Salvação depende de nós e é só para quem se comporta como nós. 
Quando uma pessoa se arvora e se auto proclama mais santo que Jesus Cristo, o Filho de Deus e de Maria, temos um problema.
Esta distinção de esferas, de saber qual é o núcleo e essência do Reino de Deus e aquilo que corresponde à área civil do Reino Secular laico nos permitirá o poder adaptar-nos sem trair a essência do Evangelho às situações deste mundo injusto. Neste mundo decaído, fragmentado, quebrado e dividido temos que saber que o projeto de Deus sempre e em todas as circunstancias será o paradigma que nunca se confunde com nenhuma das realidades que podemos construir os seres humanos. Nunca nenhuma situação na esfera civil conseguirá refletir a plenitude da essência do Evangelho. Sempre vivemos na tensão entre dois tempos: o agora e o ainda não. O Reino de Deus sempre será o paradigma para o qual peregrinamos em todas as circunstancias. Hoje o grande desafio é refletir como, nestes tempos confusos da política que pertence claramente ao espaço civil do Reino Secular podemos refletir o paradigma que nos revela o Evangelho sobre o Reino de Deus, ao qual são convidados todos os seres humanos sem distinção alguma de etnia, situação social ou orientação sexual, pois “Deus não faz acepção de pessoas” (At 10,34). 
Sempre temos que ter cuidado de distinguir sem separar. Essa é a essência do Evangelho que os apóstolos praticavam: “não havia necessitados entre eles” () e eles davam “a cada um conforme suas necessidades” (). Nunca podemos impor na esfera secular respostas que pertencem claramente ao espaço do Evangelho. Porém a revelação da forma de ser e agir de Deus no Evangelho pode nos dar ferramentas para promover no espaço civil uma busca em amor de justiça. Este espaço civil, laico, no qual não entra a revelação nem o dogma, mas sim o serviço em amor que busca a justiça para todos os irmãos e as irmãs, é o lugar, o espaço, no qual se desenvolve nossa vocação cristã. 
Estas reflexões que podem parecer acadêmicas ou teóricas são essenciais para construir uma mensagem de justiça, paz e concórdia no mundo e o questionamento constante deve ser: qual é o papel dos cristãos no mundo? E dos políticos cristãos?, o de defender uma igreja denominacional, de conseguir privilégios para as igrejas ou templos? Ou colaborar, com base no Evangelho, para um mudo melhor, mais justo, para todos e todas, sobretudo para os pobres e os excluídos da sociedade? Quando elegemos políticos cristãos, o fazemos porque eles defendem, no Parlamento nossos dogmas e ideologias, ou porque eles construirão uma nação ou uma cidade melhor para todos e todas? Faço aqui um questionamento: muitos dos que elegem deputados evangélicos e católicos os fazem porque eles dizem “defender a família tradicional”, mas muitos destes eleitos são homens que não respeitam as mulheres, alguns já casaram três vezes, tem várias famílias, e alguns até as ameaçam de estupro publicamente... 
Quando estamos comprometidos com a libertação e a inclusão que o Evangelho nos provoca e oferece devemos anunciar como essência de nossa mensagem que a verdadeira perfeição consiste apenas em ter fé em Deus e amor no coração. O Evangelho não ensina uma justiça externa nem temporal, mas sim um ser e justiça interiores e eternos do coração e da mente. Esta justiça interior e viva no coração é a essência do Reino de Deus que indubitavelmente se manifesta no espaço temporal de múltiplas, variadas e diferentes maneiras. Essa justiça interior necessita adaptar-se a tempos diferentes e a espaços diferentes. O permanente é a autêntica fé e amor a Deus e ao próximo. Isto é o essencial. A partir desta fonte de vida à qual todos e todas são convidados começamos a construir uma imensa diversidade de respostas. 
A autêntica fé em Deus, a correta proclamação do Evangelho e a celebração dos Sacramentos são essenciais e são os elementos que nos dão unidade e nos fazem membros do Corpo Místico de Cristo. A resposta de amor ao próximo em busca de justiça se manifesta de diversas maneiras e não é necessário que todas essas respostas em amor que busca justiça sejam iguais e as mesmas em todos os tempos e em todos os lugares é isto que nos torna Católicos. As circunstâncias nas quais temos que viver nossa autêntica fé exigem que utilizando a razão demos respostas adequadas no arco íris da realidade. 
A parábola que ilustra esta distinção é clara e aquelas e aqueles que temos nos comprometido com o Evangelho livre e libertador, o único Evangelho que há, sabemos muito bem como a morte e a dor coloca as realidades em sua justa perspectiva. A morte e a dor nos revelam aquilo que é essencial e aquilo é completamente supérfluo. Em nossa construção de uma mensagem de vida e cura, com propostas claras de bênçãos temos também que saber fazer esta distinção entre o essencial, os valores, e o circunstancial o acessório: métodos e ferramentas. 
Novamente temos que situar-nos: toda nossa confiança está posta na genuína fé em Jesus Cristo, Único Mediador entre Deus e os homens. Esse é o núcleo do qual não nos queremos mover. Todas as demais propostas e ações, que tem que nascer do amor na busca de justiça, podem variar sem dividir porque conhecemos que é essencial e que é conjuntural. 
Amar a Deus sobre todas as coisas e o próximo como a si mesmo é essencial e quem busca isto não é confuso nem provoca confusões.


Foto do perfil de Dom Antonio Abade
Dom Antônio Piber, Abade
MOSTEIRO DOMUS MARIAE

Disponível em:  https://www.facebook.com/peantonio.piber/posts/1021819391266317

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